Cinema invade a ciência
Digitalização, redes fotônicas e supercomputadores permitem uso cada vez mais aprimorado das imagens para o desenvolvimento de pesquisas, em particular na área da saúde
Valquíria Carnaúba
Artigo publicado no periódico Public Understanding of Science pelo professor Cicero Inacio da Silva, coordenador do Programa Telessaúde Brasil Redes e docente da Universidade Aberta do Brasil (UAB/Unifesp), resume mais de dez anos de estudos sobre a imagem digital em ultra-high definition (UHD ou ultra-alta definição) e os aspectos sociais e científicos relacionados ao aumento significativo da qualidade de resolução dessa imagem a partir de recursos computacionais avançados. Colaboraram com o levantamento os pesquisadores Jane de Almeida (Universidade Presbiteriana Mackenzie), Alfredo Suppia (Universidade Estadual de Campinas - Unicamp) e Brett Stalbaum (Universidade da Califórnia em San Diego – UCSD).
De acordo com o material pesquisado, os autores buscaram na história as condições de produção e reconhecimento do cinema científico, comparando três momentos e contextos distintos: a contribuição do astrônomo brasileiro Francisco Antônio de Almeida ao cinema nacional, no século XIX; a volumosa filmografia do fotógrafo e cineasta brasileiro Benedito Junqueira Duarte em meados do século XX; e as experiências recentes com filmes científicos de alta resolução, transmitidos por redes fotônicas (compostas por fibras ópticas que permitem a transmissão de dados em altíssima velocidade).
Tema ainda pouco explorado no país, o cinema científico poderia ser confundido com a ficção científica pelos desavisados. A denominação, entretanto, engloba a produção cinematográfica originada principalmente nas ciências – no caso, médicas – como suporte para a divulgação de conhecimento científico inédito.
Nos últimos 70 anos, o cenário mudou muito, embora tais produções continuem pouco compreendidas e documentadas. O docente da Unifesp frisa que, durante a pesquisa, foram encontrados apenas três artigos sobre películas científicas no Brasil, em nove bases de dados de periódicos, a partir de termos relacionados. “Não há um entendimento claro sobre o papel de quem filma: ele não é apenas o produtor do conteúdo, mas também um parceiro na construção do conhecimento acerca do tema captado por meio do audiovisual. Por isso, assumimos que a pesquisa brasileira não indica nenhum quadro teórico consolidado no que se refere a essa modalidade cinematográfica”, afirma da Silva.
Origens do cinema científico
Documentarista italiano e historiador de filmes antigos, Virgilio Tosi foi um dos que abordaram de maneira mais expressiva o desenvolvimento da cinematografia de caráter científico. O nascimento desta última, segundo o autor, deu-se no século XIX, a partir do trabalho de profissionais como Eadweard Muybridge (fotógrafo e responsável por experimentos de captação das imagens progressivas do movimento), Auguste e Louis Lumière (engenheiros e divulgadores do cinematógrafo), Thomas Edison (empresário e inventor), Georges Méliès (inventor dos efeitos especiais em cinema), Étienne-Jules Marey (fisiologista e especialista em cronofotografia) e Lucien Bull (discípulo de Marey, que se notabilizou pelo registro de imagens de alta velocidade). Esses pioneiros – que gravaram experiências diversas para fins de análise e compreensão de fenômenos – eram, ao mesmo tempo, fabricantes de equipamentos ópticos e cinemáticos.
Tosi, que em sua trajetória ocupou a presidência da Associação Científica Internacional de Cinema e da Associação Italiana de Cinema Científico, formulou a teoria de que a modalidade em questão nasceu muitos anos antes do que hoje conhecemos como cinema tradicional. Para o historiador, apesar da hegemonia do entretenimento sobre a realidade física, o cinema científico continua a contribuir para a evolução da tecnologia cinematográfica e do conhecimento em ciência.
Ele foi ainda responsável por fazer um levantamento mais aprofundado do que pode ter sido uma das invenções precursoras do cinema: o revólver fotográfico, dispositivo criado pelo astrônomo Jules Janssen. Por sua capacidade de disparar fotos repetidamente, o revólver fotográfico captava uma série de imagens seguidas, dando origem ao conceito de frame.
Além de Tosi, outros teóricos são referidos no ensaio dos pesquisadores. Francisco Antônio de Almeida, cujo trabalho auxiliou o desenvolvimento da produção fílmica em ciência, foi o primeiro no mundo a realizar o registro do trânsito do planeta Vênus a partir da Terra. O feito, conforme aponta a pesquisa, foi amplamente satirizado por um periódico brasileiro abolicionista da época, a Revista Illustrada. “O veículo criticou as missões científicas de Almeida fora do país, apoiadas pelo então Imperador D. Pedro II, alegando que a observação de Vênus era ‘coisa antiga’ na Astronomia”, revela da Silva.
Da apropriação pela Medicina aos tempos de big data
B.J. Duarte e Dr. Euryclides Zerbini durante filmagem de cirurgia
O final do século XIX foi marcado pela expansão da cinematografia aplicada à Medicina, a exemplo da contribuição do médico francês Eugène-Louis Doyen, que à época apresentou três filmes sobre cirurgias durante uma reunião da British Medical Association, os quais incluíam uma craniotomia (abertura cirúrgica do crânio realizada com o objetivo de chegar ao encéfalo) e uma histerectomia (remoção de parte ou da totalidade do útero por via abdominal ou vaginal).
No Brasil, o filme científico surgiu na década de 1910, com iniciativas como as da Fundação Roquette Pinto para a divulgação da referida área. “Há registros de filmes feitos durante a luta contra a febre amarela pelo Instituto Oswaldo Cruz em 1911”, conta o professor da Unifesp. A partir de 1936, entretanto, ganha notoriedade o trabalho de Benedito Junqueira Duarte, responsável pela produção de mais de 500 filmes para o Departamento de Cultura do município de São Paulo. Metade deles constitui uma compilação de imagens científicas no campo das investigações médico-cirúrgicas.
“Sua experiência mais significativa foi o filme Appendectomy (Apendicectomia), produzido em 1949. Seu experimento científico mais conhecido foi o registro da cirurgia de transplante cardíaco realizada pelo Dr. Euryclides Zerbini em 1968. No total, a base de dados da Cinemateca Brasileira contém 261 referências aos filmes de Duarte.”
O advento do cinema digital abriu caminho para o desenvolvimento de fluxos de produção bastante extensos e complexos, que incluem a visualização avançada de dados científicos. Segundo o pesquisador da Unifesp, essa é a principal marca da era caracterizada como big data. “As tecnologias de alta definição permitem a reprodução de imagens científicas cada vez mais sofisticadas. Um exemplo disso são os painéis de visualização avançada criados em centros de supercomputação, capazes de exibir bilhões de pixels”, explica.
Dessa forma, o conceito de cinema dá lugar ao de visualização de dados, que rompe com o aspecto programático do audiovisual contemporâneo (rádio e TV) – ou seja, os espectadores escolhem nas bases de dados os conteúdos a que desejam assistir, sem a necessidade de se submeterem a uma grade horária. De acordo com da Silva, isso tem impacto positivo para a ciência, uma vez que os pesquisadores dispõem de sistemas de inteligência artificial (AI), o que facilita a construção de uma rede de conhecimentos.
Uma base de dados audiovisuais permite o acesso a milhares de títulos. Além disso, os sistemas aprendem com o espectador e colocam à disposição a possibilidade de visualização de conteúdos relacionados, aos quais ele nunca teve acesso antes.
Unifesp é pioneira em transmissão 4K
Com a colaboração de Mariane Santos
Em 2014, o Departamento de Oftalmologia da Escola Paulista de Medicina (EPM/Unifesp) sediou uma experiência cinematográfica pioneira no Brasil, com base no desenvolvimento de redes fotônicas avançadas. Uma equipe de 60 pesquisadores, composta por médicos, cineastas, cientistas da computação e engenheiros de rede, foi responsável pela realização e transmissão de uma cirurgia de catarata, mediante a técnica de facoemulsificação, exibindo-se as imagens em uma tela de cinema disposta no auditório central da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), durante o 2º Congresso Internacional da Associação CineGrid.
Duas câmeras de alta resolução (4K) foram acopladas ao microscópio utilizado no centro cirúrgico de Oftalmologia do Hospital Universitário - Hospital São Paulo (HU-HSP). O sistema de captação do aparelho foi especialmente planejado e adaptado com cerca de três meses de antecedência pela equipe envolvida na produção do evento, que reuniu, além de da Silva, Marcello Di Pietro, diretor do Departamento de Tecnologia da Informação da Unifesp; Milton Yogi, chefe do setor de catarata do Departamento de Oftalmologia da EPM; Guido Lemos, diretor do Centro de Informática da Universidade Federal da Paraíba (UFPB); Fernando Frota Redigolo, professor do Laboratório de Arquitetura e Redes de Computadores da Universidade de São Paulo (Larc-USP); e representantes da Zeiss, empresa que desenvolve alta tecnologia para microscópios da área médica. Foi necessária a adequação do instrumento com a implantação de novas peças produzidas por meio de impressão em 3D.
Cirurgia oftalmológica a laser, transmitida de forma pioneira pela Unifesp, com definição em 4K, a mil frames por segundo
Milton Yogi afirmou, à época, que a tecnologia em questão permite uma nova abordagem para a capacitação e ensino de habilidades: “O grau de imersão possibilitado aos médicos que estão em treinamento é absolutamente espetacular”. Segundo o oftalmologista, “quando se tem a visão do microscópio, de algum modo ela é limitada pela ocular que se observa, mas numa tela de 40 m2 e ultra-HD a percepção muda e se aprimora devido à alta definição e a um campo visual maior”.
Já a Zeiss apoia toda iniciativa voltada a melhorar a qualidade da imagem microscópica e, por isso, encampou o projeto desde o início. “Esse pode ter sido o primeiro passo para o desenvolvimento de novos microscópios com a tecnologia testada, que poderá contribuir para a ampliação das condições de captação de imagens na área médica e, consequentemente, para a obtenção de melhores resultados cirúrgicos. O projeto teve boa visibilidade na matriz, na Alemanha. Acreditamos, portanto, que esse trabalho poderá tornar-se ponto de partida para o estudo e desenvolvimento de novas tecnologias voltadas exclusivamente à aplicação médica”, esclarece Helio Lima, gerente de produtos da Zeiss.
Em 2015, a Unifesp participou de experiência semelhante, dessa vez ao lado de equipes do Departamento de Oftalmologia daEPM, do Laboratório de Aplicações de Vídeo Digital (Lavid), vinculado à Universidade Federal da Paraíba (UFPB), e da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Pesquisadores da instituição exibiram na Associação CineGrid (gerida na Universidade da Califórnia em San Diego – UCSD) as imagens da primeira cirurgia oftalmológica a laser, captadas com uma câmera capaz de filmar mil frames por segundo em definição 4K. A demonstração permitiu ao público ver com nitidez a ação desse feixe de luz sobre a córnea do paciente, o que não poderia ser visualizado a olho nu.
À esquerda, no alto: apresentação de quatro fluxos de vídeo em 4K, ao vivo, na Universidade da Califórnia em San Diego (UCSD). Abaixo: da Silva mostra vídeo de cirurgia oftalmológica a laser, captado a mil frames por segundo em 4K, também na UCSD
À direita, no alto: painel de visualização instalado no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). No centro: Laboratório de Informática Daniel Sigulem (UAB/Unifesp). Abaixo: painel de visualização, com o sistema Sage, no mesmo laboratório
Na medida certa da visão humana
A revolução proporcionada pelo fenômeno da visualização abriu espaço para outras mudanças no cinema científico, como a tecnologia voltada à análise e correlação de dados. No caso da ultra-alta definição, resolução também conhecida por 4K – quatro vezes maior do que a possibilitada pela tecnologia full HD – as técnicas e a estética parecem estar em um processo de redescoberta e interação.
O artigo cita os filmes do cientista da computação Richard Weinberg, resultantes de seus experimentos com microscópio e câmera digitais: “Seu filme de 2009 (MicrOrganisms), produzido por uma câmera munida dessa tecnologia e acoplada a um microscópio, deu origem a imagens em alta qualidade de seres microscópicos (como as amebas), encontrados em gotas de água de um lago de Los Angeles. A imagem em 4K, com mais de oito milhões de pixels por quadro, tem sido amplamente divulgada. Entretanto, especialistas no tema assumem que a resolução 8K irá substituí-la em breve. Essa nova tecnologia é promissora para telas grandes e foi estabelecida como uma próxima etapa para a imagem UHD.”
Da Silva ressalta que, há muito, hospitais e médicos produzem filmes para a formação de profissionais mais jovens e que, hoje em dia, esses conteúdos podem ser transmitidos em tempo real (streaming). Reforça, porém, que o objetivo dessas produções é integrar campos do conhecimento, fomentar a pesquisa e refletir sobre futuras aplicações de vídeo em alta resolução. “Não há compromisso comercial, mas com o conhecimento. Os cientistas da computação testam seus conhecimentos e produzem soluções, os engenheiros de rede testam suas conexões a fim de evitar futuras falhas de aplicativos, os médicos registram suas pesquisas e ensinam outros médicos”, finaliza o pesquisador.
Uma experiência audiovisual na docência intercampi
Os sistemas de visualização de dados vieram preencher uma lacuna no campo educacional, e sua aplicação se entrelaça cada vez mais com a modalidade de ensino a distância (EaD). A exemplo do cinema científico, que se vale da cinematografia para atingir objetivos como a colaboração e a aproximação entre aluno e professor, aparatos tecnológicos como o tablet já têm sido acionados para alcançar o mesmo fim. É o que mostra uma experiência colaborativa conduzida por cinco professores da área de Exatas, atuantes nos campi Diadema, São José dos Campos, Osasco e Baixada Santista, sobre o uso de dispositivos dessa natureza em vídeos no ensino a distância.
A coordenadora do Programa de Capacitação Continuada do Núcleo Universidade Aberta do Brasil (UAB/Unifesp), Valéria Sperduti Lima, a coordenadora do Núcleo UAB/Unifesp, Izabel Meister, e o técnico em tecnologia da informação do Núcleo UAB/Unifesp, Victor Marques Ferrari Ribeiro, em colaboração com os docentes do Campus Baixada Santista Renata de Faria Barbosa e Thiago Michel de Brito Farias, relataram no artigo Uma Experiência de Vídeo na Docência Colaborativa Intercampus o desenvolvimento de vídeos com o uso do tablet para apoio educacional na disciplina de Cálculo I. Essa medida justificou-se em razão da falta de base matemática de parte dos alunos que ingressam na universidade, relativamente aos conceitos que deveriam ser construídos no ensino fundamental e médio.
“Na prática, os professores envolvidos na experiência produziram as aulas para visualização adaptada aos dispositivos móveis (tablets e celulares). Os conteúdos foram ministrados de forma natural como em uma sala de aula tradicional. Por outro lado, o espaço virtual de divulgação dos materiais didáticos foi desenvolvido na plataforma Moodle, com a possibilidade de acesso a todos os docentes participantes e compartilhamento por meio de uma base de dados. Havia também condições de acrescentar recursos como imagens e símbolos, quando necessário, para exemplificar a resolução de um exercício, bem como acessar a internet ou outros aplicativos, de forma simples e dinâmica”, explica a coordenadora do Núcleo UAB/Unifesp.
Segundo a percepção dos docentes, o uso do tablet na produção de videoaulas simplificou o processo em termos de design e apresentação de conteúdos. Para eles, esse dispositivo permitiu que o fluxo de informação entre alunos e instrutores fosse bastante facilitado. Os exercícios podem ser resolvidos no momento da gravação, o que transforma a atividade didática em algo mais natural e próximo da realidade. Por fim, a possibilidade de utilizar o recurso em questão como suporte da escrita modernizou as videoaulas, tornando-as mais elucidativas.
Professora Izabel Meister, coordenadora do Núcleo UAB/Unifesp
Telas capturadas de tablet com resolução de problemas em andamento
CineGrid: Futuros Cinemáticos, livro lançado em 2017. O CineGrid é uma associação não comercial, gerida nos EUA pela organização não governamental Pacific Interface e dedicada ao desenvolvimento da ciência. Utilizam-se, no caso, redes avançadas que aproximam pesquisadores e produtores de ciência por meio do uso de tecnologias da informação e comunicação
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SILVA, Cicero Inacio da; ALMEIDA, Jane de; ELISEO, M. A.; POSER, Vic Von; FURTADO, Nilton Gomes; PRATES, H. Sensemaking: um editor de streaming de vídeo on-line. In: WEBMEDIA 2016: WORKSHOP: O FUTURO DA VIDEOCOLABORAÇÃO, 3., 2016, Teresina (PI, Brasil). WebMedia 2016. Porto Alegre (RS, Brasil): Sociedade Brasileira de Computação, 2016. v. 1. Disponível em: <https://www.researchgate.net/publication/310481490_Sensemaking_um_Editor_de_Streaming_de_Video_On-line>. Acesso em: 17 maio 2017.
ALMEIDA, Jane de; SILVA, Cicero Inacio da; SUPPIA, Alfredo; STALBAUM, Brett. Passages on Brazilian scientific cinema. Public Understanding of Science, Thousand Oaks (Califórnia, USA): Sage Publications, p. 1-17, 19 dez. 2016. Disponível em: <https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/28627329>. Acesso em: 18 maio 2017.
LIMA, V. S.; MEISTER, I. P.; BARBOSA, R. F.; FARIA, T. M. B.; RIBEIRO, V. M. F. Uma experiência de vídeo na docência colaborativa intercampus. In: SIMPÓSIO BRASILEIRO DE SISTEMAS MULTIMÍDIA E WEB, 21., 2015, Manaus. Anais... Manaus: Universidade Federal do Amazonas, 2015. Disponível em: <http://indico.rnp.br/conferenceDisplay.py?confId=221>. Acesso em: 23 jun. 2017.