Texto: Valquíria Carnaúba
Guarde esses termos: terapia genética e edição de genoma. A tecnologia baseada na introdução de genes sadios em células “doentes” com o uso de técnicas de DNA recombinante, apesar de estudada desde a década de 1970, ganhou protagonismo na ciência contemporânea após a conclusão do projeto Genoma Humano, em 2003. As manchetes à época anunciavam novas possibilidades para aqueles que sofrem com males causados por desordens genéticas. Após 16 anos, os estudos avançam na área. Cientistas ao redor do mundo têm se debruçado sobre tecnologias de edição genética, como a Crispr-Cas (pronunciada simplesmente “crisper”), que permite ativar ou desativar genes de interesse em organismos vivos por meio de “tesouras moleculares” - como certas nucleases, proteínas que podem quebrar ligações entre os nucleotídeos (os blocos construtores dos ácidos nucleicos DNA e RNA).
Essas proteínas são hoje classificadas em três grandes grupos (tipos) de acordo com sua capacidade de cortar fitas de DNA em pontos específicos e ativar vias de reparo para “consertá-la”. Um deles possui como representante a, agora famosa, nuclease Cas9, que forma o sistema Crispr-Cas9 quando associado a um RNA guia, que direciona esse sistema para a região do DNA que será editada.
Porém, há outros tipos de sistemas Crispr-Cas competentes para a função de corte de genes, como o sistema Csm, objeto de artigo publicado por Martin Wurtele, docente no Instituto de Ciência e Tecnologia (ICT/Unifesp) – Campus São José dos Campos. Dedicado a uma linha de pesquisa sobre Biologia Estrutural de proteínas de importância biomédica, Wurtele publicou em 2016, junto a Claudia Campos, Marcelo Mori e André Zelanis, também docentes da universidade, artigo sobre a formação de complexos Crispr-Csm em bactérias da espécie Thermotoga maritima, capazes de viver em altas temperaturas.
Crispr é a sigla para Clustered Regularly Interspaced Short Palindromic Repeats, ou seja, repetições palindrômicas curtas agrupadas e regularmente interespaçadas. Essas repetições correspondem a regiões do DNA bacteriano onde se encontram sequências que contêm instruções para produzir moléculas de RNA não codificantes para proteínas que são capazes de reconhecer moléculas de DNA de bacteriófagos (um tipo de vírus) que as infectam. Normalmente, após o contato dessas bactérias com seus invasores naturais, os RNAs produzidos guiam as nucleases do sistema Crispr para o DNA (ou também para o RNA) do bacteriófago invasor para cortá-lo e inutilizá-lo, e, assim, bloquear a infecção.
O acionamento dessas áreas no genoma bacteriano funciona como um mecanismo de defesa contra infecções, neutralizando a reprodução do material genético viral por um processo denominado RNA de interferência. Da mesma forma, quando pegamos uma gripe, os vírus presentes no corpo também introduzem seu material genético em nossas células. No entanto, a cura, nesse caso, ocorre não pela presença de um sistema Crispr, que é exclusivo de bactérias, mas graças a um verdadeiro exército de células do sistema imunológico, que combate a maior parte dos vírus que encontra.
O pesquisador parte de referências que já demostraram como a proteína Cas9 defende bactérias durante invasões virais. A bactéria infectada produz a nuclease Cas9 associada a moléculas de RNA guia. Caso o material genético do invasor (DNA ou RNA) possua sequência idêntica ao RNA da “memória”, esse material genético será picotado e neutralizado. Mais precisamente, somente quando a Cas9 se associa a uma estrutura formada por dois tipos de RNA, o Crispr RNA (crRNA) e o RNA de transcrição (tracrRNA), esse processo ocorre com sucesso. Assim, quando os componentes de RNA reconhecem o DNA alvo do vírus, permitem que a nuclease Cas9 destrua o material genético dos inimigos.
Já a defesa exercida pelo sistema Csm, segundo o estudo, ocorre de maneira distinta. Essa proteína associa-se a um complexo ribonucleoproteínas do sistema Crispr (CrRNP), formando o sistema Csm-crRNP para efetuar o corte de genes invasores. Wurtele explica que a análise do arranjo proteína-RNA do Csm-crRNP envolve etapas de purificação, cristalização e determinação das proteínas que formam o complexo Csm da Thermotoga maritima.
“Comparamos características estruturais de uma proteína denominada Csm2 com diversos métodos de análise, como, por exemplo, simulação por dinâmica molecular com objetivo de adquirir mais conhecimento sobre como obter proteínas resistentes a altas temperaturas”, explica. Suas observações indicaram que o Csm forma uma estrutura dimérica em cristais e in vitro, ocorrendo muito provavelmente o mesmo in vivo. “Esses dímeros passam a ser considerados importantes também para o entendimento das semelhanças e diferenças entre os diversos sistemas Crispr-Cas”, comemora o pesquisador.
Wurtele define a descoberta como um grande exemplo de como a pesquisa básica pode beneficiar a pesquisa aplicada. “Tanto o estudo do sistema Crispr-Cas como o de proteínas resistentes a altas temperaturas são temas importantes e atuais na política científica de demanda por aplicabilidade. No caso do estudo de enzimas resistentes a altas temperaturas, abre-se caminho para aplicações industriais interessantes, como a degradação de biomassa para fins de obtenção de biocombustíveis. São exemplos de como uma estratégia acadêmica que promove pesquisa básica pode fomentar aplicações industriais muito relevantes mesmo que não necessariamente grupos de pesquisa acadêmica tenham os recursos e o tempo necessários para o desenvolvimento de um produto final comercial. Muito importante ter em mente que desenvolvimento de produtos exige, muitas vezes, um compromisso de investimento elevado demais para institutos acadêmicos”, finaliza.
O docente Martin Wurtele (ICT/Unifesp) junto à doutoranda Camila Coelho, do Programa de Pós-Graduação em Biotecnologia, verificaram que a proteína Csm2 forma estruturas diméricas (um caso especial de polímero), constatação de grande importância para entender o sistema de defesa da Thermotoga marítima
Thermotoga maritima
O que é?
Uma espécie de bactéria do filo dos Termotogas (Thermotogae), organismos caracterizados por dois principais aspectos: sobrevivem em temperaturas extremamente altas (acima de 60°C, de onde vem o prefixo termo, do grego therme, que significa calor) e formam um envelope semelhante a uma bainha (daí vem toga que também compõe seu nome).
Onde vive?
Foi descoberta em 1986, na Ilha Vulcano (Itália), por dois pesquisadores da Universidade de Ratisbona (Alemanha), Karl Stetter e Robert Huber. A Thermotoga maritima vive em nascentes termais e chaminés hidrotermais.
Do que se alimenta?
A Thermotoga maritima é um bacilo anaeróbico: o oxigênio é tóxico para ela. Alimenta-se por meio de fermentação: metaboliza carbohidratos, ou seja, açúcares e polímeros, e produz dióxido de carbono e gás hidrogênio como subprodutos da fermentação. Pode também metabolizar a celulose e o xilano, rendendo H2 (hidrogênio). Adicionalmente, esta espécie de bactéria pode reduzir íons de Ferro (Fe), para produzir energia, utilizando a respiração anaeróbica.
Como se reproduz?
As bactérias se reproduzem assexuadamente por bipartição (processo em que uma célula se divide em duas). Ocorre a duplicação do DNA bacteriano e uma posterior divisão em duas células.
Para que serve?
Martin Wurtele, docente no Instituto de Ciência e Tecnologia (ICT/Unifesp) – Campus São José dos Campos, assim como pesquisadores no mundo todo, vêm estudando proteínas oriundas da Thermotoga maritima. Seus mecanismos de defesa podem inspirar a produção de novos tipos de antibióticos.
Artigos relacionados:
GALLO, G.; AUGUSTO, G.; RANGEL, G.; ZELANIS, A.; MORI, M. A.; CAMPOS, C. B.; WÜRTELE, M. Structural basis for dimer formation of the CRISPR-associated protein Csm2 of Thermotoga maritima. FEBS Journal, v. 283, p. 694-703, fev. 2016. Disponível em: <https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/26663887 >. Acesso em: 22 abr. 2019.
GALLO, G.; AUGUSTO, G.; RANGEL, G.; ZELANIS, A.; MORI, M. A.; CAMPOS, C. B.; WÜRTELE, M. Purification, crystallization, crystallographic analysis and phasing of the CRISPR-associated protein Csm2 from Thermotoga maritima. Acta Crystallographca Section F Structural Biology Communications, v. 71, n. 10, p. 1223-1227, out. 2015. Disponível em: <https://doi.org/10.1107/S2053230X15014776 >. Acesso em: 22 abr. 2019.