Paula Garcia
Divertir-se infantilmente; entreter-se em jogos de crianças”, essa é a primeira definição do verbo intransitivo “brincar” no Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa (2010). Brincar, porém, denota também um meio em si para alcançar objetivos sérios e valorosos, de acordo com Carla Cilene Baptista da Silva e Beatriz Ferreira Monteiro Correia, respectivamente docente e estudante do curso de Terapia Ocupacional do Instituto de Saúde e Sociedade (ISS/Unifesp) - Campus Baixada Santista. Por meio do projeto O Brincar, as Famílias de Crianças com Deficiência Física ou Múltipla e a Terapia Ocupacional, realizado com cinco famílias de crianças de 2 a 5 anos, com deficiência física ou múltipla, ambas trouxeram à tona a importância da relação entre a visão de pais – ou cuidadores – e a principal atividade da infância.
O projeto de Iniciação Científica tem como objetivo compreender como esses parentes enxergam o brincar e seu papel para o desenvolvimento das crianças. “Foi possível observar que, para os familiares entrevistados, a questão lúdica das crianças com deficiência física ou múltipla é complexa. Um ponto importante diz respeito ao retorno da pesquisa, pois, à medida que os resultados são apresentados e discutidos com a equipe, isso proporciona também uma reflexão por parte dos profissionais, principalmente os terapeutas ocupacionais, sobre a possibilidade de mais investimento em intervenções no cotidiano lúdico dessas crianças”, afirma Silva.
Na pesquisa, Correia e sua orientadora usaram um roteiro de entrevista semiestruturado com base em um instrumento de avaliação do Modelo Lúdico. “Trata-se de um material criado pela terapeuta ocupacional canadense Francine Ferland, cujo objetivo é o que ela descreve como ‘desejo de redescobrir a riqueza extraordinária do potencial terapêutico do brincar mediante a abordagem da criança em um domínio que lhe é próprio, o brincar’. O material é composto pela entrevista inicial com os pais (EIP) e a avaliação do comportamento lúdico (ACL). A EIP permite conhecer a criança e sua família, além de ter uma descrição de seu cotidiano lúdico, diante da visão dos pais – no caso deste projeto, dos familiares. Já a ACL é uma análise por meio da observação direta, feita pelo terapeuta ocupacional”, explica a estudante.
A família e o cotidiano lúdico da criança
O projeto se desenvolveu entre os anos de 2018 e 2019, no Centro de Reabilitação de Paralisia Infantil (CRPI), voltado para crianças com deficiência física e múltipla na cidade do Guarujá. De início, após a autorização da instituição e do Comitê de Ética, o CRPI ajudou no contato do público-alvo e na indicação das famílias que mais se encaixavam no tema proposto. A coleta de informações com esses parentes foi estabelecida por meio de entrevistas agendadas, sem a participação das crianças, que continuaram seu atendimento enquanto eram apenas observadas pelas pesquisadoras.
“Do nosso ponto de vista, as entrevistas aparentemente foram um desafio para as famílias, já que abordavam questões que muitas vezes passam despercebidas por seus membros. Ao falarem sobre o brincar de seus filhos, permitimos que essas pessoas refletissem sobre o tema, parassem para pensar sobre aquilo de que o filho gosta ou não, como ele brinca, com quem mais brinca, quais são suas atitudes lúdicas para com a criança, bem como sobre quais os impedimentos relativos ao brincar que encontra no cotidiano. Esse diálogo mostrou, inclusive, um espaço para os participantes trazerem outras questões sobre o desenvolvimento da criança”, comenta a orientadora. “Além disso, o trabalho tem permitido fomentar a discussão do brincar, no caso de crianças com desenvolvimento atípico, e trazer maior visibilidade ao Modelo Lúdico utilizado pela terapia ocupacional. Esse modelo acredita na importância do brincar pelo brincar, permitindo identificar as principais características do lúdico na criança e, a partir daí, estabelecer formas de proporcionar o desenvolvimento infantil”, completa.
Com os resultados obtidos ao longo do estudo, foi possível concluir que as entrevistas efetuadas confirmaram o que a literatura sobre o tema propõe a respeito das dificuldades que crianças com algum tipo de deficiência podem encontrar ao realizar brincadeiras, e a importância de estímulos e da participação dos familiares na atividade. Para além da diversão, o brincar tem relevância significativa não só para o desenvolvimento motor, cognitivo e social, mas também como estímulo ao prazer, à descoberta, à criatividade e à expressão de todos os pequenos.
De cima para baixo: as estudantes Thyelly Romanin e Beatriz Correia com a docente responsável pela orientação das pesquisas, Carla Cilene B. da Silva
Avaliação do Modelo Lúdico: o brincar no cotidiano de crianças com deficiência
“Por meio das matérias da grade comum comecei a me interessar pela infância. Quando procurei a professora Carla, minha atual orientadora, para ingressar em um programa de Iniciação Científica relacionado a crianças, ela me apresentou suas linhas de pesquisa. A questão da deficiência e o brincar foi a que despertou minha curiosidade de aprender mais”, relata Thyelly Brandão Romanin, estudante do curso de graduação em Terapia Ocupacional do ISS/Unifesp, que, após ler o livro de Ferland sobre o Modelo Lúdico e inspirada no trabalho de Correia, começa o seu projeto com uma bolsa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
Utilizando os mesmos instrumentos e a mesma metodologia do estudo anterior, a pesquisa desenvolvida por Romanin é realizada no Centro de Reabilitação II, em Santos. “Enquanto o outro projeto tinha por objetivo conhecer o cotidiano lúdico de crianças com deficiência física ou múltipla, no meu caso as entrevistas vêm ocorrendo com familiares de crianças com diagnóstico ou suspeita de transtorno do espectro autista (TEA)”, esclarece a estudante.
Nesse novo trabalho observou-se que os dados relativos ao brincar dessas crianças, a partir da perspectiva de seus pais e/ou responsáveis participantes, vêm ratificando o que a literatura afirma: que essas crianças demonstram pouco interesse por brincadeiras e brinquedos novos, sendo que a maioria brinca sozinha ou com adultos. “Esse dado nos leva a confirmar que os obstáculos ou dificuldades encontradas entre as crianças com deficiência física e múltipla são distintas das encontradas entre as crianças com TEA. Outro ponto importante é que a realização dessas pesquisas poderá contribuir para que a Terapia Ocupacional avance nas propostas de intervenção relativas às atividades lúdicas, que vão para além dos espaços de atendimento nos centros de reabilitação. Devem ser, portanto, repensadas as formas de intervenção no contexto do cotidiano dessas crianças – como, por exemplo, na escola, na própria casa, nos espaços comuns dos prédios ou nos bairros onde moram”, finaliza Silva.
Com a conclusão do segundo projeto de Iniciação Científica, Silva pretende escrever um artigo com as estudantes envolvidas nas pesquisas, contemplando e discutindo os resultados encontrados nos dois centros de reabilitação.