Química Verde no combate à poluição

Método para análise química baseia-se no uso de reagentes orgânicos, que geram poucos resíduos e demandam ferramentas de menor custo para sua aplicação

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Ilustração composta com imagens do Freepik

Valquíria Carnaúba

Foi a primeira vez que Leandro Augusto Calixto, docente do curso de Farmácia do Instituto de Ciências Ambientais, Químicas e Farmacêuticas (ICAQF/Unifesp) - Campus Diadema, orientou um projeto de Iniciação Científica na graduação da Unifesp. O trabalho de Michelle Lorêdo de França, coorientado por Débora Cristina de Oliveira (também docente do ICAQF/Unifesp), trouxe a Calixto essa e outra grata surpresa: a chance de atuar mais de perto na pesquisa relacionada com a chamada Química Verde. A estudante propôs aos docentes desenvolver e validar uma metodologia analítica para a determinação de chumbo (Pb) em águas superficiais, utilizando um reagente orgânico denominado dimetilcarbonato (C3H6O3). Trata-se de um líquido inflamável, comercializado como aditivo para combustíveis, de baixa toxicidade e biodegradável.

Aos 26 anos, França traz na bagagem a formação superior como tecnóloga em Gestão Ambiental pela Faculdade de Tecnologia de Jundiaí – Deputado Ary Fossen (Fatec-Jundiaí). Ainda que tivesse inclinação para a área de saneamento ambiental – e seu trabalho de conclusão de curso (TCC) na mencionada instituição de ensino se enquadrasse nesse viés (fármacos contaminantes emergentes na água) –, ao iniciar o curso de Engenharia Química na Unifesp não planejava adentrar a área de pesquisa acadêmica (pelo menos, não tão cedo). Por outro lado, a possibilidade de desenvolver um projeto saltou-lhe aos olhos, deixando para trás qualquer possível falta de afinidade com a rotina de um laboratório. “Escrevemos o projeto do zero e nos empenhamos em aplicar as técnicas de microextração com aplicações ambientais”, relembra. 

O dimetilcarbonato, ao entrar em contato com o chumbo das amostras recolhidas, extrai o metal presente na água (vide infográfico), permitindo a mensuração de sua quantidade em uma proporção comumente adotada nas análises químicas do tipo, ou seja, em concentrações na ordem de partes por milhão (ppm). Biodegradável, gera como subprodutos gás carbônico e água. O método, ecologicamente sustentável, foi validado na primeira etapa do projeto, concluída em 2019. A segunda, que seria estendida até 2020, foi temporariamente paralisada (assim como diversos outros projetos mencionados nesta edição) em função da pandemia de coronavírus. Nessa etapa, França e seus orientadores aplicariam o método na análise de águas superficiais na Grande São Paulo ou mesmo em áreas agrícolas, onde se registra o uso de agrotóxicos (substâncias que contêm quantidades grandes de chumbo).

Calixto ressalta que optou pela orientação após uma conversa com a estudante, quando percebeu que o tema era inédito e se aproximava de pontos desenvolvidos em seu doutorado. Na época, ele buscava reagentes alternativos aos utilizados na determinação de fármacos em matrizes biológicas e produtos farmacêuticos. “As técnicas utilizadas nesses processos dependem do auxílio de solventes, que fazem com que os componentes a serem analisados ‘grudem’ e, assim, seja possível extraí-los da matriz em que estão presentes (como a água) para um volume menor, ocorrendo a pré-concentração. Apesar de serem muito úteis, tais reagentes são comumente organoclorados, gerando resíduos tóxicos ao meio ambiente”, explica.

Os organoclorados podem ser encontrados nos agrotóxicos – utilizados como pesticidas em plantações –, nas tintas, nos plásticos e nos vernizes, entre outros. Os principais subgrupos nos quais se dividem são: toxafeno, hexaclorocicloexano, dodecacloro, clordecona, DDT e ciclodienos. Os organoclorados não se diluem em água; por outro lado, são solúveis em gordura. Os organoclorados absorvidos pelo ser humano têm potencial de causar lesões nos rins, fígado, cérebro, coração, medula óssea, córtex da suprarrenal e DNA (o que, neste caso, provoca o câncer). Além disso, podem prejudicar o sistema reprodutivo.

As alternativas, conforme detalha, advêm da Química Verde, ramo da Química que estuda todos os processos sustentáveis para que estes ocorram de maneira segura e não contaminem o meio ambiente. A substituição dos solventes organoclorados pelos orgânicos é uma das perspectivas de pesquisa na área, algo que denota sustentabilidade ambiental e financeira. O método de análise proposto pela estudante vale-se, além do reagente orgânico, da extração simples e de um espectrofotômetro – instrumento de análise capaz de medir e comparar a quantidade de luz absorvida, transmitida ou refletida por determinada amostra, seja ela uma solução, seja um sólido transparente ou opaco. 

“Os equipamentos utilizados para a detecção de chumbo em amostras de água, de acordo com técnicas consolidadas como padrão-ouro (como o espectrômetro de massa com fonte de plasma indutivamente acoplado [ICP-MS]), são caríssimos por serem muito mais sensíveis. Já o espectrofotômetro é encontrado no mercado por preços mais de cem vezes menores que os praticados na venda de equipamentos ICP-MS”, relata o docente. Para o docente e sua orientanda, a microextração orgânica pode ser facilmente inserida na rotina de indústrias e centros de pesquisa como etapa desejável nas análises químicas, a fim de facilitar os processos dos laboratórios – o que caracteriza o projeto de IC como pesquisa aplicada. “Dependendo dos resultados, os analistas podem decidir se partem para técnicas mais sensíveis”, avaliam ambos.

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Michelle Lorêdo de França (à esq.) e Leandro Augusto Calixto (à dir.) exploraram alguns dos 12 princípios da Química Verde, para os quais os cientistas da área devem atentar a fim de diminuir os impactos ambientais associados à produção de químicos. Entre eles, estão o uso de solventes mais seguros e a síntese de produtos menos perigosos (Imagens: arquivo pessoal)

Durante o deslocamento no trajeto casa (em Caieiras) - universidade (em Diadema), a jovem costumava permanecer cinco horas no transporte público, alternando entre trem, ônibus e metrô. Como pretende iniciar as atividades na área, está em busca de uma oportunidade de emprego. A decisão poderá facilitar outros aspectos de seu cotidiano, pois pretende alugar uma moradia para ficar mais próximo do campus onde estuda. França, que – a partir do projeto – produziu um artigo científico, aceito pela revista Measurement para publicação, explica que profissões ligadas à Química Verde estão em ascensão no país. Devido à crescente preocupação com a poluição do meio ambiente, a indústria química tenta reduzir a geração de resíduos, adotando outras práticas mais sustentáveis; além disso, enquadra atividades, como a proposta pela estudante, no rol de profissões do futuro.

“Acredito que a área seja uma grande tendência em saneamento ambiental, algo que hoje é fomentado pelas novas gerações, que tanto discutem a sustentabilidade e com ela se preocupam”, afirma Calixto. “O ramo de saneamento ambiental é amplo e permite muitas aplicações. Em tempo de recursos tão escassos, revela-se ainda maior a importância da busca de caminhos que diminuam os impactos irreversíveis”, complementa a estudante.

Parâmetros com maior probabilidade de ocorrência em águas subterrâneas, respectivos valores máximos permitidos (VMP) para cada um dos usos considerados preponderantes e limites de quantificação praticáveis (LQP)

VMP • Valores máximos permitidos Uso preponderante da água
10 μg/L Consumo humano
100 μg/L Dessedentação de animais
5.000 μg/L Irrigação
50 μg/L Recreação


Fonte: http://portalpnqa.ana.gov.br/Publicacao/RESOLU%C3%87%C3%83O%20CONAMA%20n%C2%BA%20396.pdf

De partícula em partícula, a contaminação

A origem da palavra chumbo é latina (plumbum) e dela derivou plumbing, termo que – em inglês – significa encanamento. De fato, diversos tipos de encanamento continuam, até hoje, a ser produzidos a partir do chumbo. Abundante na natureza, é de fácil extração e maleável. Vários fatores podem promover a solubilização de produtos de corrosão do chumbo nos encanamentos, liberando o metal na natureza e expondo os seres humanos – seja pelo consumo de água, seja pela acumulação de chumbo ao longo das cadeias alimentares.

Apesar de sabermos há muito que é perigoso à saúde humana, o chumbo dificilmente deixará de fazer parte de nossa rotina tão cedo – um fator que destaca a importância de estudos como o desenvolvido por França e os docentes da Unifesp. Os riscos nessa área são ostensivamente registrados na literatura científica e apontam diversos cenários de contaminação pelo chumbo. Um deles, bastante recente, foi descrito por pesquisadores da Universidade de Washington, tendo sido revelado que o alumínio, utilizado no tratamento de água distribuída pela rede pública, pode causar reação pode reagir com o chumbo presente nas tubulações, liberando esse elemento na água. 

O alumínio utilizado no tratamento da água potável faz com que partículas de chumbo se dissolvam e afetem o nível desse metal pesado no líquido que chega às casas. Pesquisa realizada pela Universidade de Washington apontou que o valor obtido nas medições foi, precisamente, de 100 microgramas de chumbo por litro, um nível dez vezes maior do que o recomendado, no Brasil, pelo Ministério da Saúde, que limita a concentração a 10 microgramas por litro (https://summitsaude.estadao.com.br/aluminio-pode-afetar-niveis-de-chumbo-na-agua/).

No Brasil, a legislação ambiental de 2008 admitiu um valor máximo de 10 microgramas (µg) de chumbo por litro de água potável, com adequação ao valor proposto pela Organização Mundial da Saúde (OMS). De acordo com o Ministério da Saúde, em portaria publicada em 1999, uma lista de doenças já havia sido seguramente associada à absorção de chumbo – fosse por meio de partículas que se desprendem dos encanamentos, fosse pela poluição das águas destinadas ao consumo humano (como é o caso das águas contaminadas após acidentes com barragens em Minas Gerais). 

A estudante explica que a pesquisa valida o método, e seus resultados – obtidos nas áreas analisadas – contribuem para atender ao que é exigido pelo Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), que há 15 anos estabeleceu metas ainda distantes de ser cumpridas (Resolução Conama nº 357/2005). Além de especificar os padrões de águas doces, a resolução dá diretrizes para os padrões de águas salinas (com salinidade ≥ 30%) e salobras (com 0,5% ≤ salinidade ≤ 30%).

Da coleta à análise: um processo sustentável

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A seringa do tipo HPLC é utilizada para a extração de amostras de água na ordem de mililitros (mL). O dimetilcarbonato contendo DDTP, reservado nessa seringa, ao entrar em contato com a água, passa a reagir com a amostra, iniciando a separação do chumbo. O processo é mediado por um complexante, substância responsável pela facilitação da reação entre o composto orgânico (solvente) e o inorgânico (chumbo). Forma-se então o ponto “nuvem”, ou seja, uma turbidez na amostra, produzindo microgotículas deágua, que são desejáveis por aumentarem a superfície de contato e, por conseguinte, a sensibilidade da análise. Posteriormente, retira-se a fase sedimentada para análise no espectrofotômetro.