Valquíria Carnaúba
Como o TikTok, febre entre os jovens em plena pandemia de covid-19, tornou-se um sintoma da rivalidade entre China e Estados Unidos? Consideradas atualmente as maiores potências mundiais, as duas nações passaram a se confrontar de forma aberta após Wuhan, cidade mais populosa da província de Hubei (China Central), ser apontada como o epicentro original do novo coronavírus. As acusações são constantes. A China acusa a potência norte-americana de interferência em Hong Kong, hoje em meio a uma batalha diplomática sobre a autonomia política e judicial do território. Os Estados Unidos acusam hackers do país asiático de roubar dados sobre a vacina contra a covid-19.
A espionagem, aliás, recheia o discurso de Donald Trump, e suas acusações nesse sentido foram recentemente corroboradas até por ativistas do Anonymous. “Delete o TikTok imediatamente; se você conhecer alguém que o utiliza, explique que se trata basicamente de um malware operado pelo governo chinês para uma operação massiva de espionagem” – esta foi a mensagem proferida pela legião de ciberativistas em julho deste ano.
O medo oculto dos norte-americanos (e do Anonymous) é a espionagem, mas o receio chinês (ao menos, o declarado) é o de uma Guerra Fria 2.0. E talvez esse seja o medo que o mundo inteiro enfrenta a cada nova escalada da tensão entre as duas potências. Não se trata de uma comparação impensada: as características do conflito atual se assemelham, em muitos aspectos, ao choque geopolítico entre a União Soviética e os Estados Unidos nos anos de 1947 a 1991.
Se, no passado, citando os principais fatos da época, tivemos antagonismo militar, político e ideológico (capitalismo x socialismo), hoje encontramos um cenário bem parecido. Se, há cerca de 50 anos, as gerações passadas presenciaram a primeira viagem à Lua, 2020 foi o ano em que a SpaceX lançou o primeiro foguete tripulado nos últimos nove anos e a China entrou na corrida rumo a Marte. Mas se, naquele tempo, o avanço tecnológico fomentava a corrida armamentista, a pesquisa científica tempera a nova Guerra Fria com a disputa pela vacina contra o já considerado “maior desafio do século XXI”.
O novo rival dos Estados Unidos também é diferente no cenário presente: a República Popular da China. Como o país asiático chegou a esse patamar é o que traremos nesta seção. De forma sucinta, o regime atual, comandado por Xi Jinping, tem suas raízes na própria Guerra Fria. Em 1949, os comunistas, sob a liderança de Mao Tsé-Tung, tomaram o poder e realizaram inúmeras mudanças, estatizando as empresas e as propriedades fundiárias.
Enquanto a Guerra Fria avançava até o desfecho que já conhecemos, o gigante asiático passava por uma transição econômica importante após o falecimento de seu líder, em 1976. Apesar de permanecer com o regime político fechado, o país adotou as reformas econômicas, implantadas com a finalidade de colocá-lo nos “trilhos” da economia capitalista globalizada. É nesse período que surge a economia socialista de mercado e diversas empresas norte-americanas se instalam no país (atraídas pelos incentivos fiscais): a China assume o papel de “fábrica do mundo”.
De 1999 a 2013 (segunda fase da expansão chinesa), a então considerada nação emergente estabelece diálogo com regiões como África, América Latina e Eurásia, a fim de expandir seu comércio exterior. Iniciava-se a era da aliança entre China, Brasil, Rússia, Índia e África do Sul, formando o promissor grupo dos Brics. A terceira fase, por fim, foi a que alçou o país à posição de segundo maior PIB mundial. No período compreendido entre 2013 e 2020, o projeto da Nova Rota da Seda chinesa foi lançado pelo presidente Xi Jinping como a principal estratégia econômica e de cooperação internacional do governo.
Seu futuro, ao menos no campo tecnológico, será construído a partir do China Standards 2035, um ambicioso plano de 15 anos do governo para definir os padrões globais para a próxima geração de tecnologias. O gigante asiático quer influir globalmente na utilização de tecnologias como Inteligência Artificial (IA), redes de telecomunicação e fluxo e análise de dados. Mas o futuro chinês certamente terá outras nuances, e seis docentes da Unifesp, de quatro áreas distintas do conhecimento, abordaram essa expansão com enfoque nas relações com o Brasil.
Em 2019, a população da China aumentou para 1,4 bilhão de habitantes. Fonte: Departamento Nacional de Estatísticas da China (Imagem: Jofreepik - Freepik)
Relações internacionais e comércio exterior
O “celeiro do mundo” e a “fábrica do mundo”
Cristina Pecequilo
Professora associada do Departamento de Relações Internacionais - Escola Paulista de Política, Economia e Negócios (Eppen/Unifesp) - Campus Osasco
É importante entender a diferença de tempo histórico entre Ocidente e Oriente. Aqui, principalmente no Brasil, tudo é “para ontem”, mas no mundo dito oriental as coisas caminham de maneira diferente. Há 42 anos, a China se impôs uma meta de Estado, incorporada pela própria sociedade chinesa: tornar-se uma potência mundial. A partir de 1978, o país asiático delimita, então, a política das quatro modernizações: agrícola, industrial, cultural e de defesa.
Hoje, seus índices de crescimento superam os dos Estados Unidos, e quanto mais cresce mais fica aparente no mundo. A forma como sua imagem se consolida, contudo, não é um consenso: para muitos, é uma nação pautada na paz e na cooperação; para os demais, um império que se impõe na geopolítica como outros na história. O ponto comum entre as análises existentes é que a lógica da política externa chinesa é a do “ganha-ganha” (win-win) para todos os envolvidos.
Em 2010, por exemplo, o país tornou-se o principal parceiro comercial do Brasil ao propor inicialmente uma relação diplomática nos moldes de uma joint venture, pautada no desenvolvimento bilateral “pacífico e harmonioso”. Ao longo dessa parceria, porém, o próprio governo brasileiro, na época, decidiu-se por colocar nosso país na posição de vendedor exclusivo de commodities (energia e alimentos) em troca da captação de recursos financeiros. Desde 1989, vínhamos fechando indústrias, o que levou à desindustrialização brasileira e à abertura comercial. Esse processo, iniciado há 31 anos, foi o motivo original da desindustrialização e reprimarização da economia, e não a relação bilateral com a China.
Enquanto a China tornou-se a “fábrica do mundo”, o Brasil fez a opção por ser o “celeiro do mundo”. Com o advento da pandemia, por questões sanitárias, a China optou por suspender as importações provenientes de diversos frigoríficos brasileiros. E nós dependemos daquele país para adquirir desde o celular até a máscara que será usada no hospital. Considerando o recente realinhamento político e econômico do Brasil com os Estados Unidos (desde 2018), a China tem-se voltado a outros parceiros vendedores de commodities, como a Austrália.
A China tem capacidades, recursos de poder e visões de mundo que oferecem alternativas a outras nações. E melhor se beneficiarão aquelas que souberem aproveitar esse caminho com autonomia e transparência. É um momento desafiador para o Brasil, que pode inspirar-se na China – valores, formação de alianças estratégicas e busca de independência tecnológica, econômica e política.
Doca de contêineres do porto de Yangshan, no leste da China; é considerado o maior terminal automatizado para contêineres do mundo (Imagem: Ake1150Sb/Freepik)
Bolivar Godinho
Professor adjunto e chefe do Departamento Acadêmico de Administração - Escola Paulista de Política, Economia e Negócios (Eppen/Unifesp) - Campus Osasco
A China tem uma importância cada vez maior no mundo; possui muitas reservas internacionais e tem aumentado sua influência em outros países. Com a implantação da Nova Rota da Seda, o país será imensamente beneficiado pelo transporte de mercadorias e oferta de matéria-prima pelos países parceiros – minério de ferro, soja e petróleo. Hoje, a verdade é que o Brasil depende do país, principalmente o setor de agronegócio. Muito impactada com a desaceleração do comércio mundial em decorrência da pandemia, a China, crescendo menos, afetará o crescimento do Brasil.
Relação PIB do país x PIB mundial | 1990 | 2020 |
China | 1,6% | 15% |
Estados Unidos | 27% | 24% |
Reservas internacionais | 1990 | 2017 |
China | US$ 34 bilhões | US$ 3,3 trilhões |
Estados Unidos | US$ 173 bilhões | US$ 451 bilhões |
Exportação de alta tecnologia em relação ao total no mundo | 1990 | 2016 |
China | 7% | 25% |
Estados Unidos | 32% | 20% |
Comércio exterior em relação ao PIB | 1990 | 2017 |
China | 24% | 38% |
Estados Unidos | 20% | 27% |
Artigos científicos e técnicos | 2000 | 2016 |
China | 213 mil | 2 milhões |
Estados Unidos | 300 mil | 400 mil |
Gastos com pesquisa e desenvolvimento em relação ao PIB | 1996 | 2013 |
China | 0,5% | 2,1% |
Estados Unidos | 2,5% | 2,8% |
Meio ambiente
Desafios do crescimento sustentável
Carla Grigoletto Duarte
Professora adjunta do Departamento de Ciências Ambientais - Instituto de Ciências Ambientais, Químicas e Farmacêuticas (ICAQF/Unifesp) - Campus Diadema
A poluição do ar é um tema central na política ambiental chinesa desde 2013. Naquele ano, houve protestos da população e até escolas foram fechadas devido à poluição nas cidades do norte do país. Dados oficiais de veículos de comunicação locais, como o China Daily e Global Times, apontaram 400 microgramas de partículas de poluição por metro cúbico de ar – segundo o padrão da Organização Mundial da Saúde (OMS), acima de 100 microgramas, o nível já não é considerado saudável.
A insatisfação popular levou à mudança da política ambiental no país. Foram cancelados diversos projetos de termoelétricas a carvão nesse território, modalidade de geração de energia que estava em franca expansão, e passou-se a investir em geração de energia solar e eólica. Como o país possui um mercado gigante, as tecnologias são implantadas em larga escala, afetando os preços e a oferta no mundo todo – e proporcionando retornos financeiros rápidos.
Outras decisões foram tomadas ao longo do tempo, como a anunciada por Pequim, em 2017, numa reunião da Organização Mundial do Comércio (OMC). A China, que importava mais da metade do lixo plástico (incluindo o eletrônico) do mundo para reciclá-lo, decidiu-se pela redução drástica desse montante. O anúncio forçou os países exportadores (como os europeus) a redefinirem suas cadeias de reciclagem.
A agenda ambiental da China, entretanto, ainda é pouco expressiva quanto a projetos de desenvolvimento levados a cabo fora de seu território. Investidores chineses seguem construindo termoelétricas a carvão em territórios previstos para integrar o Cinturão Econômico da Rota da Seda e a Rota da Seda Marítima do Século XXI, como a África, o Oriente Médio e, inclusive, o Brasil.
O plano denominado Linha Vermelha de Conservação Ecológica da China (ECRL) visa proteger mais de um quarto de seu território. Com o retorno da maior potência asiática às atividades normais, porém, a poluição tornou-se pior do que antes da pandemia de coronavírus. Mais informações em: energyandcleanair.org/tracker/covid-19-air-pollution-rebound-tracker/
Em 2015, a poluição atmosférica atingiu um nível perigoso em Xangai, maior cidade do país e núcleo financeiro global. O incidente levou as escolas a proibirem atividades ao ar livre e as autoridades a limitarem o trabalho em locais de construção e fábricas (Imagem: Lifeonwhite/Freepik)
Juliana de Souza Azevedo
Professora adjunta do Departamento de Ciências Ambientais - Instituto de Ciências Ambientais, Químicas e Farmacêuticas (ICAQF/Unifesp) - Campus Diadema
Outro aspecto que tem gerado preocupação na China diz respeito aos refugiados climáticos em decorrência dos impactos causados, por exemplo, na Cordilheira do Himalaia. A existência deles foi admitida pela Organização das Nações Unidas (ONU) em janeiro deste ano. São cidadãos forçados a se deslocarem da terra natal em função de mudanças no meio ambiente. Com o derretimento das geleiras, aumentou o nível dos aquíferos no norte do país, inundando áreas povoadas e expulsando a população – o que tem acarretado problemas sociais.
O Himalaia tornou-se visível para a Índia após a quarentena contra o coronavírus dissipar a poluição. A imagem rodou as redes sociais, intensificando as discussões sobre poluição ambiental.
Zysman Neiman
Professor associado do Departamento de Ciências Ambientais - Instituto de Ciências Ambientais, Químicas e Farmacêuticas (ICAQF/Unifesp) - Campus Diadema
Nos últimos 30 anos, a China tornou-se uma das maiores economias mundiais e uma das nações que mais degradaram o meio ambiente. A poluição da água afeta 75% dos rios e lagos e 90% das águas subterrâneas urbanas chinesas. Quase 30% das águas sequer servem para o uso agrícola tamanha é sua toxicidade. No relatório apresentado na sessão de abertura do 19º Congresso Nacional do Partido Comunista da China, em outubro de 2017, o presidente chinês Xi Jinping estabeleceu o desenvolvimento futuro do país. Após isso, a China obteve dois recordes mundiais de energia limpa em 2015 – o primeiro, por instalar 30,5 gigawatts (GW) de energia eólica em um único ano, e o segundo, por instalar 16,5 GW de energia solar. Com isso, deu exemplo de como alterar sua atual matriz energética e ofereceu modelos – capazes de ser replicados em outros países – para a resolução de problemas ambientais e combate à pobreza.
Imagem: Amenic181/Freepik
Tecnologia
O made in China em outro patamar
Maria Elizete Kunkel
Professora adjunta do Departamento de Ciência e Tecnologia - Instituto de Ciência e Tecnologia (ICT/Unifesp) - Campus São José dos Campos
Tudo o que vinha da China, há dez anos, tinha pouco valor agregado, pois não era tecnologicamente confiável. Sua metodologia baseava-se na produção em alta escala e a baixo custo. Com o tempo, as indústrias chinesas focaram a melhoria da qualidade desses itens, fazendo com que o país passasse a ser visto como uma potência em desenvolvimento. Outras potências começaram a perder competitividade em relação à indústria chinesa, enviando suas empresas e seus trabalhadores para lá – o que aumentou a dependência em relação àquele país.
Além da criação de produtos que atualmente superam outros em qualidade e preço (celulares, câmeras, equipamentos médicos, computadores e até impressoras 3D), a China (e suas empresas) têm-se destacado pelos investimentos em empresas inovadoras, que provocam disruptura no mercado – a exemplo da 99, empresa e aplicativo de transporte individual, comprada em 2018 pela Didi Chuxing.
Grande parte da tecnologia assistiva utilizada no Brasil, por exemplo, é importada daquele país. Por esse motivo, é cara (devido aos impostos) e de difícil manutenção. Se investisse na fabricação desses itens, o Brasil contaria com bons profissionais em diversas áreas tecnológicas, e as próprias universidades disporiam de um amplo potencial de pesquisa aplicada que poderia ser explorado – produzindo os equipamentos que seriam utilizados pela indústria.
Luiz Leduíno
Professor associado do Departamento de Ciência e Tecnologia - Instituto de Ciência e Tecnologia (ICT/Unifesp) - Campus São José dos Campos
Existe uma mudança em curso na economia mundial em função da pandemia, e é difícil avaliar como ficará a cadeia de suprimentos, atualmente globalizada. Com as fronteiras dos países fechadas, muitas empresas não obtiveram suprimentos, inclusive no Brasil. Por isso, o processo de renacionalização de empresas poderá ser um fenômeno cada vez mais observado em médio e longo prazo.
Para sermos minimamente autossuficientes em relação à China, será preciso apostar em conversão industrial, mobilizando parte da indústria para a produção de itens que são de interesse nacional. Temos potencial: há setores em que somos muito avançados, como o da aviação – a Embraer é a terceira maior companhia do mundo – e o de petróleo. Um dos caminhos será investir em ciência e tecnologia.
A China tem investido bastante em tecnologia 5G (quinta geração de internet móvel). Essa expansão incomoda tanto os Estados Unidos que a empresa Google chegou a anunciar que deixará de dar suporte a aparelhos com essa tecnologia caso seja instalada.
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