Com AstraZeneca, Unifesp protagoniza busca pela vacina

O Brasil foi um dos países escolhidos para testar a eficácia da vacina desenvolvida pela Universidade de Oxford contra a covid-19. Liderada pela Unifesp, participação brasileira está sendo um marco importante para a ciência no mundo todo

coronavírus busca pela vacina

(Freepik / macrovector)

 

Denis Dana

Era uma segunda-feira, 4 de maio de 2020, quando Lily Yin Weckx, docente da Escola Paulista de Medicina (EPM/Unifesp) - Campus São Paulo, e coordenadora do Centro de Referência para Imunobiológicos Especiais (Crie/Unifesp), recebeu uma ligação especial, que colocaria o centro e a universidade como pontos fundamentais no desenvolvimento de uma vacina que pudesse combater a pandemia do novo coronavírus.

Do outro lado da linha, estava Sue Ann Costa Clemens, ex-pós-doutoranda da Disciplina de Infectologia Pediátrica, vinculada ao Departamento de Pediatria da EPM/Unifesp, e pesquisadora ligada a vários órgãos que investem e estudam desenvolvimento de vacinas. Ela havia recebido um pedido da Universidade de Oxford para que pudesse identificar, no Brasil, um centro capaz de contribuir na condução da fase 3 do estudo clínico, que analisaria segurança e eficácia de um imunizante em desenvolvimento pela universidade britânica, em parceria com a indústria farmacêutica AstraZeneca, o ChAdOx1 nCoV-19. O Brasil foi o país escolhido em razão, então, da sua situação epidemiológica crescente – o que representa um fator importante para o sucesso do estudo -, bem como pela sua reconhecida experiência nesse tipo de pesquisa.

Quase dois meses antes da ligação, a Organização Mundial da Saúde (OMS) havia decretado a pandemia. O número de casos e de mortes avançava pelo mundo todo rapidamente, o que tornava ainda mais urgente a intervenção da ciência com o avanço dos estudos que culminassem em uma ou mais vacinas capazes de frear a catástrofe sanitária.

“Era claro que todo esse cenário de gravidade e de urgência fazia do estudo clínico de uma vacina algo imensamente desafiador e de grande responsabilidade, o que tornou necessário um breve momento de reflexão antes de dizer sim ao convite. Precisava ter plena certeza de que teríamos condições de realizá-lo com a mesma excelência com que desenvolvemos os demais estudos de imunizantes no Crie/Unifesp. Mas, ao analisar o desenho do estudo e suas características, observei que era algo que o nosso centro poderia sim realizar, com o conhecimento e experiência adquiridos em 20 anos de atuação nesse tipo de pesquisa. E assim, com muita honra, no mesmo dia, decidimos confirmar a nossa participação nesse momento incrível de contribuição da ciência para todos(as)”, conta Weckx.

Desafios a serem superados

Com o convite aceito, o Crie/Unifesp teve que se preparar muito para receber um estudo com essas dimensões. A estrutura física foi um primeiro desafio a ser superado. O espaço foi ampliado, e a área do Crie/Unifesp mais que duplicou. “A agilidade é uma característica marcante nesse tipo de estudo. Afinal, a pandemia avança com muita rapidez e as pesquisas, como em uma corrida, devem acontecer também na mesma velocidade. Precisávamos incluir e atender o maior número diário possível de participantes no estudo e, para isso acontecer, foi essencial a ampliação do espaço, o que foi feito com muito empenho pela administração do Campus São Paulo da Unifesp”, destaca Weckx.

Apesar do desafio da estrutura física ter sido superado rapidamente, a garantia de agilidade e fluidez no atendimento dos(as) voluntários(as) demandava um segundo desafio: a ampliação da equipe, acompanhada de um bom treinamento, para que todos(as) os(as) envolvidos(as) pudessem aprofundar entendimento sobre o que e como fazer em cada etapa exigida no protocolo, bem como procedimentos que garantissem as boas práticas de pesquisa clínica.

Fotografia de Lily Weckx - ela é uma mulher asiática com cabelos pretos, está sorrindo para a câmera e veste um jaleco com a marca Oxford Vacinne Trial

Lily Weckx, coordenadora do Crie/Unifesp (Fotografia: Alex Reipert)

Esse foi mais um desafio vencido exemplarmente. Weckx abre o sorriso quando descreve que “em todo o processo, foram envolvidos(as) mais de cem profissionais, das mais variadas atribuições, desde médicos(as), enfermeiros(as) e técnicos(as) de enfermagem, passando por profissionais de limpeza e da área de segurança, até os(as) estudantes de Medicina da EPM/Unifesp, que se engajaram demais para que o estudo pudesse ser realizado.”

Com motivação para aprender e contribuir, os(as) estudantes Felipe Alvernaz, Christiane Higa, Laís Hayano, Larissa Thotusi e Renato Furlan, todos(as) do quinto ano do curso de Medicina da Escola Paulista de Medicina (EPM/Unifesp), compuseram a equipe desde o início dos trabalhos. “Logo que soube que a Unifesp participaria do estudo, me coloquei à disposição. Afinal, vi como uma oportunidade incrível poder contribuir em um projeto para o desenvolvimento de uma vacina que pudesse combater a pandemia”, conta Furlan.

O universitário teve como atribuição a parte documental, com a inserção de dados no sistema da Universidade de Oxford. “Toda informação gerada com os(as) participantes do estudo precisava ser inserida no sistema, desde dados clínicos de cada voluntário(a), passando pelas datas de aplicação de vacinas, até eventuais reações e outros dados obtidos durante as visitas que cada voluntário(a) deveria fazer ao centro, como determina o protocolo do estudo”, descreve.

A dinâmica do estudo

Enquanto os desafios de estrutura e de equipe eram superados, a Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) e a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) analisavam o estudo para aprová-lo e autorizá-lo, o que aconteceu em 2 de junho de 2020. Poucos dias depois, o recrutamento de voluntários(as) foi iniciado. No dia 20 de junho, o estudo incluiu o primeiro participante.

A pesquisa previu cinco mil voluntários(as), que foram recrutados(as) na Unifesp e em dois centros participantes, o Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino (Idor) no Rio de Janeiro e em Salvador. Para atender aos padrões estabelecidos pela Universidade de Oxford, essa primeira seleção incluiu profissionais de saúde de 18 a 55 anos com atuação na linha de frente do combate à covid-19, entre médicos(as), enfermeiros(as) e auxiliares de enfermagem, além de trabalhadores(as) do hospital que desempenhassem funções em ambientes com alto risco de exposição ao novo coronavírus, como motoristas de ambulância, seguranças e agentes de limpeza.

A procura espontânea dos(as) interessados(as) em participar do estudo foi imensa e, para Weckx, superou todas as expectativas. “O espírito de colaboração envolveu toda a universidade. Era nítida a vontade de cada um(a) em fazer parte e contribuir para que o estudo proporcionasse uma vacina eficaz para combater a pandemia. Cada envolvido(a) no estudo o tratou como uma emergência de saúde pública e foi fantástico vivenciar essa máxima dedicação geral.”

Os(as) voluntários(as) que obedeciam aos critérios de seleção eram chamados(as) para comparecimento e assinatura de Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), compromisso com as responsabilidades envolvidas no estudo, que englobava não somente a aplicação da vacina, como também uma série de visitas ao centro coordenador no período de um ano. Durante todo o processo, os(as) envolvidos(as) deviam estar vigilantes com relação à ocorrência de qualquer intercorrência de saúde, tendo que comunicar imediatamente à coordenação ao apresentar algum tipo de sintoma. O compromisso era tanto da metade dos(as) voluntários(as) que tomaram a vacina em desenvolvimento quanto daqueles(as) que integravam o chamado grupo controle, no caso, participantes que tomaram a vacina meningocócica ACWY. Por ser randomizado, simples-cego e controlado, nenhum(a) voluntário(a) tinha conhecimento sobre qual vacina havia recebido.

O dinamismo com que a empreitada da vacina acontecia representou mais um desafio. No início de setembro, após a suspeita de evento adverso não esperado com um voluntário do Reino Unido, os testes foram temporariamente pausados em todos os centros onde eram realizados, seguindo os padrões de segurança preconizados em seu protocolo.

“A equipe teve que agir rapidamente com um comunicado informando a todos(as) os(as) participantes do Brasil que se tratava de um acontecimento normal nesse tipo de pesquisa”, diz Weckx. Menos de uma semana depois, seguindo as recomendações do Comitê Independente de Revisão de Segurança e da Medicines & Healthcare products Regulatory Agency (MHRA), a agência reguladora britânica, os testes foram retomados no Reino Unido, no Brasil e em outros locais que participaram do estudo.

coronavirus aplicacao vacina

(Fotografia: Alex Reipert)

Novo recrutamento

Na mesma semana em que as aplicações da vacina foram retomadas, a Anvisa autorizou a adição de 5 mil voluntários(as) para a fase 3 do estudo clínico no Brasil, elevando para 10 mil o total de participantes.

Sob a coordenação da Unifesp, centralizada no Crie/Unifesp, novos centros foram incluídos no estudo para acrescentar aos centros já atuantes em São Paulo, no Rio de Janeiro e em Salvador. Assim, o recrutamento de voluntários(as) e a aplicação da vacina passaram a acontecer também em Natal (RN), por meio do Centro de Pesquisas Clínicas de Natal (CPCLIN), em Porto Alegre (RS), por meio da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e em Santa Maria, também no estado gaúcho, por meio da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).

Nessa etapa, a novidade foi a exclusão do limite de idade. Dessa forma, além dos(as) profissionais de saúde atuantes diretamente na linha de frente no combate à covid-19, motoristas de ambulância, seguranças e agentes de limpeza de hospitais, todos(as) acima dos 18 anos, também puderam entrar no estudo os(as) idosos(as), pessoas acima dos 60 anos, o que, na visão da coordenadora do Crie/Unifesp, “ajudou a dar ainda mais robustez na análise de dados relacionados à segurança e eficácia da vacina.”

Mesmo com todo o dinamismo do estudo, provocado por inserções de mais voluntários(as), ampliação da faixa etária, parada temporária para avaliação de segurança, seguindo exigências dos rígidos protocolos de ética e pesquisa, ingresso de novos centros coparticipantes, além dos novos caminhos determinados pelo surgimento de novas evidências no meio do percurso, a equipe de profissionais ali envolvidos(as) conseguiu se adaptar com rapidez. No final de outubro, o recrutamento e vacinação de 10.300 voluntários(as) foram concluídos.

Apesar de findada essa importante etapa, o contato e a aproximação com todos(as) os(as) voluntários(as) permanecem, como destaca Weckx. “Mantemos comunicação frequente com todos(as). Essa, aliás, representa outra tarefa desafiadora, principalmente para lidar com a velocidade e com a quantidade de informações que chegam pelos veículos de imprensa e também por meio das redes sociais. É preciso administrar bem esse fluxo de dados e de notícias, e fizemos isso compartilhando todas as informações com os(as) voluntários(as) de forma clara e transparente, o que facilitou a condução do estudo sem gerar ruídos ou prejudicar seu pleno andamento.”

A ciência mostra seu resultado

Com a participação ativa da Unifesp na fase 3 do estudo clínico, a Universidade de Oxford pode somar aos dados obtidos no Reino Unido e na África do Sul informações referentes ao Brasil. Os resultados foram submetidos a uma avaliação e divulgados no renomado periódico científico The Lancet, o que abriu a possibilidade da vacina contra a covid-19 ser aprovada pela agência reguladora britânica. A aprovação aconteceu no dia 30 de dezembro. Poucos dias depois, mais precisamente em 17 de janeiro de 2021, a Anvisa aprovou o uso emergencial da vacina produzida pela Universidade de Oxford no Brasil.

Após autorizar o uso emergencial da vacina, a Anvisa, em conjunto com a Conep, também aprovou a abertura do estudo, permitindo que os(as) voluntários(as) soubessem de qual grupo faziam parte, de modo que as cinco mil pessoas que formavam o grupo controle, então, pudessem tomar as duas doses do imunizante, o que vem sendo feito. “Atualmente, além dessa ação, seguimos o monitoramento de cada participante. E, nesse cenário de surgimento de variantes do vírus, o protocolo foi novamente adaptado e agora passou a incluir o sequenciamento de amostras positivas coletadas, quando há identificação de algum(a) voluntário(a) infectado(a), de forma a obter a informação de qual variante de vírus ele(a) foi acometido(a). O estudo não para e segue fortemente, no ritmo exigido pela ciência”, ressalta a coordenadora do Crie/Unifesp.

Para Weckx, ter feito - e ainda fazer – parte desse primeiro estudo clínico de vacina contra a covid-19 trouxe muitos ensinamentos e, certamente, deixa um valioso legado. “A participação no estudo foi mais uma clara demonstração da importância da ciência e, mais além, de como nós, universidade, sabemos fazê-la. É desse lugar que vêm as respostas que toda a sociedade busca. No cenário das vacinas, reforça também que o Brasil tem totais condições de contribuir e também de ser protagonista no desenvolvimento de imunizantes. Tudo o que foi feito até este momento foi bem feito. Nosso país tem ótimos centros de pesquisa, bem como um parque industrial de produção de vacina.”

Foi, inclusive, o que aconteceu com a transferência de tecnologia da vacina da Universidade de Oxford, em parceria com a AstraZeneca, para a Fiocruz, que foi responsável pela produção em território nacional. Trata-se de uma tecnologia nova, de vetor viral não replicante. Ela tem como base um adenovírus de chimpanzé, geneticamente modificado para perder potencial de replicação e levar ao organismo um gene que codifica a proteína spike do Sars-CoV-2, e provocar a resposta do sistema imunológico. “Essa tecnologia o país não detinha ainda, o que representa um excelente ganho”, diz Weckx.

A coordenadora do Crie/Unifesp conclui: “apesar de já termos duas décadas envolvidos(as) em estudos clínicos de vacina, esse, por sua característica e complexidade, é especial, e nos traz muitos ensinamentos sobre como enfrentar desafios diariamente, diante de uma situação pandêmica, onde o mundo necessitava de respostas da ciência. Nesse estudo, contribuímos com a ciência.”

Sem dúvidas, o protagonismo da universidade, por meio do Crie/Unifesp, nesse momento tão importante para o mundo, será especial e marcante para cada um(a) que dedicou parte de seu tempo contribuindo no estudo que culminou em uma das vacinas aplicadas na população mundial. Como diz o futuro médico Renato Furlan, “além de ser uma das experiências mais ricas de toda a graduação, tanto sob o aspecto do aprendizado na parte médica, quanto sob o aspecto de pesquisa e de ensaios clínicos, fundamentais para a minha formação e carreira médica, é de encher de orgulho saber que ajudei e faço parte de uma universidade que foi uma agente tão importante no desenvolvimento da vacina.”

Crie/Unifesp: educação e assistência por meio das vacinas

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(Fotografia: Alex Reipert)

Até meados dos anos 1990, o Brasil tinha em sua rotina de imunização algumas vacinas, entre elas a BCG, a DTP, a poliomielite, a tríplice viral, a sarampo e a febre amarela, que eram aplicadas obedecendo a um calendário de imunização. Havia, entretanto, uma lacuna com a vacinação de pessoas em situações especiais, como as imunocomprometidas, que necessitavam de outras vacinas que ficavam de fora desse calendário, assim como havia escassez de um cuidado maior para quem apresentasse reação adversa a um desses imunizantes. Para preencher esse importante espaço, por iniciativa do Ministério da Saúde, em 1993, foi criado o Centro de Referência para Imunobiológicos Especiais (Crie).

A partir de sua implantação, coube ao Crie facilitar o acesso da população, em especial as pessoas com imunodeficiência congênita ou adquirida e com outras condições especiais de morbidade ou exposição a situações de risco, aos imunobiológicos especiais para prevenção de doenças, objetivo do Programa Nacional de Imunizações (PNI), além de garantir os mecanismos necessários para investigação, acompanhamento e elucidação dos casos de eventos adversos graves e/ou inusitados associados temporalmente às aplicações de imunobiológicos.

O Crie/Unifesp foi implantado dois anos mais tarde, em 1995, após assinatura do Termo de Cooperação Técnica entre a Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo e a Universidade Federal de São Paulo. A ele competia algumas ações: avaliar clínica e laboratorialmente todos os casos suspeitos de reações adversas à imunização, assim como manter a vigilância epidemiológica dessas reações; aplicar imunobiológicos de uso não rotineiro; formar e reciclar recursos humanos em imunização; elaborar pesquisas em imunização; realizar a indicação dos produtos, de acordo com as normas de imunização elaboradas pelo Centro de Vigilância Epidemiológica em conjunto com a Comissão Permanente de Assessoramento em Imunizações; e apresentar relatório detalhado de cada imunobiológico especial.

No Crie/Unifesp, os estudos e ensaios clínicos de vacinas começaram a ser realizados em meados do ano 2000. O início foi marcado pelo estudo da vacina contra o rotavírus, que hoje consta no calendário americano de vacinação. O centro também fez o estudo clínico da influenza, por spray nasal, e que, apesar de não ser utilizado no Brasil, é usado em diversos países. Na lista de estudos clínicos de fase 3 consta ainda o da Pneumo 13, presente no calendário de imunização de muitos países, a Meningo B, a H1N1, além da vacina contra Herpes-Zoster, que ainda não chegou ao Brasil. Todos são considerados grandes estudos, que tornaram o Crie/Unifesp referência em pesquisa e que o gabaritam para esse estudo de vacina contra a covid-19.

Criado com a finalidade de prestar atendimento e buscar entendimento neste universo das vacinas, o Crie/Unifesp representa um elo significativo entre academia e assistência. Por prestar um serviço único a essas pessoas especiais, o centro acumula vasta riqueza de dados e informações sobre imunização, o que o tornou uma grande escola e um importante polo de pesquisa e de produção científica da universidade. Ao unir assistência e educação, presta relevante serviço para a sociedade enquanto gera enorme contribuição à ciência.