Resgate de culturas ancestrais por intermédio da tarologia

Tema antes envolto em lendas e mistérios, agora é alvo da ciência para a discussão de suas implicações na vida dos indivíduos praticantes e da sociedade

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Imagem: Kayla Maurais / Unsplash

Tamires Tavares

Celebrada em sociedades ancestrais e alvo de distorções conceituais, discriminação e perseguição em algumas culturas ocidentais contemporâneas, a bruxaria desperta, ainda hoje, a curiosidade de milhares de pessoas em todo o mundo. Em um dos reinos onde esse interesse se faz mais evidente, a internet, são publicados diariamente conteúdos sobre astrologia e tarologia, associados ou não, das mais diversas vertentes. Sejam vídeos sobre astrologia védica, sejam previsões anuais com base no tarô mitológico, o que chama a atenção é a nova geração de tarólogos, composta por jovens que estudam formas de bruxaria cada vez mais descoladas do senso comum. No mês de setembro, somente um dos canais da plataforma YouTube que tratam dessa temática alcançou mais de 318 mil visualizações de seus vídeos (dados coletados em 9/set./2020).

O resgate dessa atividade pelas novas gerações, que garante a transmissão de conhecimentos tão antigos a um número crescente de pessoas, é objeto da pesquisa de Iniciação Científica realizada pela estudante Rafaela Sampaio de Souza, da Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (EFLCH/Unifesp) - Campus Guarulhos. A veterana do curso de Ciências Sociais pretende discutir, em sua investigação antropológica, a retomada de ensinamentos sobre magia e bruxaria e a prática do Tarô de Marselha como reinvenção de tradições.

Para Marcos Rufino, doutor em Antropologia Social e docente do Departamento de Ciências Sociais, a pesquisa promove a reflexão sobre a constituição da esfera do sagrado no contexto urbano atual. “Vemos, ao longo das últimas décadas, um interesse crescente pelo resgate da magia e da bruxaria por parte de inúmeros grupos. Apesar de acreditarem que estão retomando práticas antigas e ‘autênticas’, o trabalho mostra que estamos diante de uma experiência social de reinvenção do passado, sobretudo a partir da produção de um simbolismo que revela muito acerca da vontade e das estratégias de atribuir certa significação à vida cotidiana”, analisa o professor, responsável pela orientação de Souza.

Segundo a estudante, não há definição única para o termo “bruxaria”, em razão da existência de diferentes grupos que utilizam práticas mágicas e se autodenominam bruxos. Contudo, “bruxaria ancestral” refere-se ao culto de deuses anteriores às religiões modernas e ao surgimento das civilizações atuais. Para a antropóloga britânica Margaret Murray, uma das pioneiras no estudo sobre o tema, o aparecimento da bruxaria ancestral foi contemporânea dos cultos greco-romanos. A presente pesquisa questiona e discute as obras de Murray, pois delas derivam a Wicca e outras religiões de crenças pré-cristãs de grupos bruxos. 

Diversos movimentos buscaram recuperar essas crenças, destacando-se o neopaganismo, iniciado pela elite cultural da Europa Ocidental no final do século XVIII, e o New Age, na década de 1960. O primeiro pretendia ressignificar tradições e se autodeclarava portador e transmissor de uma sabedoria antiga, sendo influenciado pela literatura e por sociedades secretas. Já o segundo, nasceu a partir do esoterismo ocidental, com a proposta de uma contracultura, reavaliando conhecimentos rejeitados pela cultura dominante. Com o declínio da religião cristã, esses grupos neopagãos, principalmente a Wicca – que defende a existência de magia e de interação física e espiritual com a natureza –, popularizaram-se.

Souza destaca, em seu trabalho, que a busca por origens míticas é característica da cultura jovem, que procura por interpretações da realidade distintas das religiões predominantes, como o cristianismo, ganhando espaço nas sociedades modernas. “Como observou o filósofo e especialista em história das religiões Mircea Eliade, a busca por outros métodos de salvação e a inter-relação estabelecida entre diversas práticas com origens diferentes, que foram perseguidas ou não totalmente aceitas pela Igreja cristã, como a astrologia, gnose e ritos orgiásticos, entre outras, estão cada vez mais presentes”, observa a estudante em texto de sua produção.

Isso é exemplificado por meio da tarologia, que atualmente surge como uma reinterpretação de procedimentos mágicos tradicionais. O uso do tarô – um baralho de 78 cartas com figuras – é um método esotérico para a previsão do futuro.

Souza enfatiza que a tarologia (especificamente o uso do Tarô de Marselha) pode ser compreendida pela abordagem da Psicologia Analítica, pois é desenvolvida como ferramenta de orientação para um caminho de autoconhecimento. “Utilizam-se as cartas do tarô e interpreta-se conforme o sistema simbólico no qual se está inserido; para isso, a pessoa não precisa necessariamente fazer parte de grupos de bruxos ou tarólogos, como se autodenominam, porque as imagens contidas nas cartas remetem a representações de coisas do cotidiano”, explica a graduanda. 

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A participação de Rafaela Souza nas aulas ministradas por Marcos Rufino, pesquisador em Antropologia Social, culminou na orientação prestada por esse docente à sua pesquisa de Iniciação Científica / Imagens: Arquivo pessoal

Para os participantes desses grupos, as figuras contidas no Tarô de Marselha representam personagens de diferentes culturas ao longo dos séculos. Isso confere a essas personagens um potencial arquétipo. Os arquétipos foram definidos pelo psiquiatra Carl Gustav Jung como expressões, por meio de imagens, de elementos e experiências comuns entre as pessoas, que se manifestam – por exemplo – nos sonhos, arte, mitos e rituais. Eles formam o inconsciente coletivo – representações coletivas que induzem a interpretações sobre a realidade. Ou seja, as cartas exibem figuras que têm significado em qualquer cultura; ainda que haja alteração de nome e de forma nas ilustrações, tais figuras estão presentes dentro de qualquer sistema de representações. Assim, ao ler as cartas, o indivíduo consegue “conectar-se” com elas, com o que nelas é representado, sem saber especificamente seu significado.

A orientanda observou a relação dos grupos analisados com os arquétipos do Tarô de Marselha e a aplicação do autoconhecimento. “Os arcanos maiores do tarô, conjunto composto por 22 cartas, contam a história A Jornada do Louco, por exemplo. Ao tirar as cartas de determinada forma, é preciso interpretá-las para entender qual jornada se deve realizar a partir deste plano. Todos começam do zero – um plano inicial – e, ao estudar o tarô, pretende-se saber como evoluir e transcender a outro plano. De certa forma, o objetivo é compreender qual o seu papel aqui e o que fazer para adquirir determinado conhecimento, que só é alcançável por meio do uso da magia antiga – as cartas do tarô, entre outros elementos –, atingindo-se, após isso, outro plano”, explica Souza. 

O tarô foi a porta de entrada da estudante para as discussões sobre bruxaria e para a escolha de seu tema de pesquisa. No início da graduação interessou-se pela antropologia das religiões, mas foi durante o terceiro ano que teve contato com tarólogos, que lhe deram uma nova perspectiva sobre novos movimentos religiosos e diferentes interpretações da espiritualidade. “Usavam o tarô como elemento ritual. Não apenas profissional, mas espiritual”, esclarece. Nesse período, a mãe de Souza também se interessou pelo assunto e se tornou taróloga. Com tal reforço para sua atividade, a estudante encontrou o tema que pretendia desenvolver e confirmou, por meio do aconselhamento de seu orientador, a relevância do estudo. “O trabalho de Rafaela soma-se a outros que procuram entender o lugar das formas de ‘neopaganismo’ na maneira como esses grupos compreendem a si mesmos”, avalia Rufino.

A influência da figura materna também foi importante na escolha do curso. Antes de ingressar no ensino médio, a curitibana de 21 anos teve contato com as áreas de Sociologia e Antropologia graças à mãe, que é pedagoga. Ao se formar em uma escola técnica estadual, aos 16 anos, optou pelo ensino superior a distância em Ciências Sociais enquanto trabalhava. No ano seguinte, prestou o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e foi aprovada na Unifesp. A localização do campus da EFLCH/Unifesp pesou na escolha, pois, durante a infância, havia morado em Guarulhos, e seus avós ainda residem nessa cidade.

No curso de Ciências Sociais, optou pela licenciatura e decidiu completar o estágio antes de se inserir no programa de Iniciação Científica. Por meio deste, pôde explorar um ramo de seu interesse e discuti-lo com outros docentes, além do orientador. Nesse processo, encontrou alguns desafios, como a falta de financiamento. Com o projeto concluído, teve de escolher entre abandonar a pesquisa ou desenvolvê-la voluntariamente, pois o corte de verbas impediu a conquista de uma bolsa de estudos. “Era importante ter financiamento, principalmente para frequentar os rituais que estudo, que ocorriam em regiões distantes”, comenta. O tempo também representava um obstáculo. Durante a pesquisa não poderia perder os rituais sazonais que se realizavam nos meses de recesso acadêmico. “Eu já estava com o projeto pronto, e era um assunto que gostaria de compreender melhor; foi o que me motivou a prosseguir apesar das dificuldades”, lembra a estudante, que pretende aprofundar-se no tema na pós-graduação.

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Reprodução/Youtube - Paula Prado Tarot

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Reprodução/Youtube - Amada Evolução

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Reprodução/Youtube - Amanda Eliazar Tarot

Milhares de internautas buscam conteúdo sobre magia na plataforma YouTube. Praticantes e especialistas em tarologia, astrologia, búzios e runas difundem essas e outras atividades por meio de vídeos com orientações – desde o ensino voltado a principiantes até previsões mensais sobre o futuro