Inaugurado em 1929, o Edifício Alexandre Mackenzie sediava a São Paulo Tramway, Light and Power Company e abriga atualmente o Shopping Light (Fotografia: Alex Reipert)
José Luiz Guerra
Desde a oferta de transporte público para a cidade de São Paulo, com os bondes, até as profundas transformações em rios, córregos e várzeas para a exploração do potencial hídrico, visando à geração de energia elétrica e especulação imobiliária, foram muitas as intervenções promovidas pela São Paulo Tramway, Light and Power Company Limited, popularmente conhecida como Light, na capital paulista. De que forma elas ocorreram? E como era a relação da empresa com o poder público durante o período de concessão?
Este tema foi abordado em dois projetos de Iniciação Científica desenvolvidos por Giovanna Gonçalves de Souza e Kelvin Santos Souza, estudantes do curso de Ciências Econômicas da Escola Paulista de Política, Economia e Negócios (Eppen/Unifesp) - Campus Osasco, ambos orientados por Fábio Alexandre dos Santos, docente de História Econômica no Departamento de Economia da Eppen/Unifesp. Com base na análise documental primária, que envolvia os relatórios anuais da empresa, e na leitura, fichamento e estudo da bibliografia fundamental relacionada ao tema, as pesquisas compreenderam o período entre 1955 e 1979. O trabalho de Giovanna Souza analisou as judicializações e resultados operacionais, enquanto o de Kelvin Souza falou sobre áreas negociadas, alienações e patrimônio. Os dois projetos foram contemplados com bolsas do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
Durante a apresentação dos painéis no Congresso Acadêmico Unifesp 2019 sobre estas mesmas pesquisas de IC. Fábio Alexandre dos Santos - orientador - em pé no centro;Giovanna Gonçalves de Souza, à esquerda, de blusa branca listrada. Kelvin Santos Souza - ajoelhado. Yasmin Geronimo da Silva - à direita (Yasmin teve bolsa do CNPq na primeira fase da IC, enquanto Giovanna e Kelvin eram voluntários. Na segunda fase, de 2019-2020, Yasmin deixou o projeto, e giovanna e Kelvin foram contemplados com bolsas do CNPq.) / Imagem: arquivo pessoal
A Light no Brasil
A Light chegou ao Brasil em 1899, período no qual o café era a principal base econômica nacional e o Estado de São Paulo o principal polo exportador. Na época a capital paulista passava por um processo de rápido aumento populacional e urbano, que ampliava a demanda por serviços públicos. A empresa canadense com capitais oriundos de mesma origem, mas também de ingleses e estadunidenses, aportou na capital com a finalidade primeira de oferecer serviços de transporte urbano, mas rapidamente passou a atuar em setores-chave do processo de urbanização da cidade, como geração e distribuição de energia elétrica, serviços de gás e telefone. “Logo as pessoas passaram a chamar a Light de 'Polvo Canadense'. Enquanto implantava os serviços de bonde, a empresa deixava áreas vazias para especulação imobiliária”, comenta Giovanna Souza.
A partir de 1927, no entanto, recebeu autorização do Estado para sanear, canalizar e inverter o curso do Rio Pinheiros com a finalidade de utilizar as águas excedentes do Rio Tietê para gerar energia em sua usina em Cubatão e, como resultado, conferiu-lhe autoridade para intervir em uma grande área da cidade, desapropriando os proprietários após a inundação de 1929. “A Light contribuiu para o desenvolvimento econômico e social, mas atuava de tal forma a ponto de os vereadores a chamarem de Dona dos Rios”, explica Fábio Souza. A força que a empresa possuía, durante o período no qual atuou em São Paulo, lhe conferiu direitos de alienação e expropriação dentro da cidade, em especial para a construção de sua infraestrutura de bondes e de geração e distribuição de energia, na maioria das vezes em razão de uma estreita relação com o poder público e com veículos de imprensa. “A Light patrocinava jornais e financiava matérias favoráveis à sua atuação, o que acabava inibindo concorrentes e possíveis críticas à sua atuação”, completa Kelvin Souza, o que não a livrou de constantes questionamentos sobre os serviços que oferecia e sobre sua atuação em áreas urbanas sob sua responsabilidade. No ano de 1979, encerrou-se a concessão da empresa e a Light foi encampada pelo governo federal.
Natação nos cochos do Rio Pinheiros em 1933 (Arquivo Centro Pró-Memória Hans Nobiling)
Planta de 1924 da cidade de São Paulo, com o curso original do Rio Pinheiros
Prédio da Light e Power, inaugurado em 1929 (Arquivo Público do Estado de São Paulo)
A atuação da Light
Com base na análise documental, foi possível verificar que as relações existentes entre a Light e o Estado brasileiro não apresentavam características homogêneas, alternando entre sucesso e conflitos de interesses. Um dos principais pontos dessa disputa diz respeito à retificação do Rio Pinheiros e à inundação de 1929, onde a Light se embasava no direito de declaração de utilidade pública as áreas necessárias às obras, entre elas alagadiças ou sujeitas a inundações, conforme autorizava o projeto de lei nº 74 de 1927, da então Câmara dos Deputados do Estado de São Paulo. Já em relação à alienação de terras, desde a sua instalação a empresa estabeleceu um procedimento de adquirir áreas visando futuros negócios, fossem para a sua estrutura operacional ou para obstruir ações de concorrentes. A análise dos relatórios, que eram meticulosamente tratados, também permitiu verificar que a empresa dava poucos detalhes sobre as suas operações, tanto para o poder público quanto para a sociedade, o que sugere, em especial, um conflito de interesses público e privado.
Os trabalhos concluíram que, por meio de acordos firmados com órgãos públicos, a Light obteve valiosos direitos de exploração da cidade com respaldo de finalidade pública, na qual promoveu profundas transformações em rios, córregos e várzeas para a exploração do potencial hídrico, geração de energia elétrica e especulação imobiliária. “Apesar das obras e serviços públicos terem contribuído para a modernização da cidade e para a produção industrial, também houve impactos negativos no desenvolvimento de São Paulo, a exemplo dos distúrbios sociais, econômicos, ambientais, como a grande enchente de 1929, cujos impactos foram desde desapropriações, como as sofridas pelas populações ribeirinhas, até a valorização das áreas saneadas, que foram comercializadas pela empresa, em seguida”, explica Giovanna Souza. Assim, foi possível verificar como a empresa desempenhou papéis além daqueles que eram intrínsecos à sua atividade, formalmente designada pelo poder público de São Paulo. “Sua atividade de especulação imobiliária e ações favoráveis ao aumento do seu patrimônio ajudaram na criação de uma cidade ‘moderna’, mas, ao mesmo tempo, muito excludente, como é São Paulo nos dias atuais, especialmente por sua ingerência sobre os cursos d’água e o espaço urbano”, finaliza Kelvin Souza.