Leveduras do fungo Sporothrix brasiliensis, principal agente da esporotricose felina no Brasil. Foto obtida por microscopia eletrônica de varredura, com aumento de 27.000 vezes
Doença fúngica infecta gatos e atinge humanos
Aumenta, a cada ano, o número de contaminados pela esporotricose, transmitida por mordidas e arranhões
Lu Sudré
Atividades como cultivar o jardim ou brincar com um gato de estimação podem causar problemas maiores do que imaginamos. A esporotricose é uma doença emergente provocada por fungos do gênero Sporothrix, e a cada ano tem crescido o número de humanos e felinos contaminados por esse agente patológico. Anderson Messias Rodrigues, pesquisador do Departamento de Microbiologia, Imunologia e Parasitologia (DMIP) da Escola Paulista de Medicina (EPM/Unifesp) - Campus São Paulo e docente da disciplina de Biologia Celular, explica que os fungos vivem no solo e, a partir do momento em que o hospedeiro – no caso, um vertebrado de sangue quente (homem ou animal) – entra em contato com qualquer material contaminado, pode ocorrer a inoculação do fungo.
“Na esporotricose, é necessário que haja um trauma prévio – um corte, por exemplo – e o fungo seja introduzido no tecido cutâneo e subcutâneo para que ocorra a manifestação das lesões, geralmente ulcerativas, purulentas e que demoram a cicatrizar”, afirma o pesquisador, autor da tese de doutorado Patógenos Emergentes no Gênero Sporothrix e a Evolução Global da Patogenicidade. Segundo dados da Vigilância Sanitária do Rio de Janeiro, que acompanha o aumento do número de casos no Estado, foram diagnosticados 3.253 gatos com esporotricose em 2015. Já em 2016, houve um acréscimo de 400% nesse número, tendo sido registrados, de acordo com a Secretaria Municipal de Saúde do Rio, 580 casos em humanos no mesmo período.
No gênero Sporothrix há um complexo de espécies de interesse clínico, reconhecidas como Sporothrix brasiliensis, Sporothrix schenckii, Sporothrix globosa e Sporothrix luriei, que não estão distribuídas da mesma forma no território nacional. Até o momento, o Sporothrix brasiliensis – que é recorrente e endêmico nas regiões Sul e Sudeste do país – não foi identificado na Europa e América do Norte.
A transmissão da doença ocorre a partir do contato direto com o solo infectado, detritos vegetais e plantas que, manipuladas, podem ocasionar cortes na pele; ou a partir do contato com gatos, cujo organismo é mais vulnerável ao Sporothrix brasiliensis.
“Um gato infectado pode transmitir o fungo para outro gato, e também para o ser humano, por meio de arranhadura e mordedura. No Rio de Janeiro, existem aproximadamente 13 mil felinos contaminados e apenas algumas centenas de cachorros na mesma condição. Isso demonstra que, de fato, os gatos são mais suscetíveis à infecção quando comparados a outros animais domésticos. Além disso, observa-se uma relação direta entre o aumento de casos em felinos e o aumento do diagnóstico da esporotricose nos seres humanos”, diz Rodrigues. “Por muito tempo a esporotricose foi considerada uma micose de cunho ocupacional, afetando jardineiros, floristas e agricultores, por exemplo. No Sudeste, entretanto, a doença passou a ser uma zoonose urbana porque muitas pessoas têm contato com gatos”, complementa.
Para Zoilo Pires de Camargo, docente do DMIP e orientador da tese, é difícil estimar a magnitude real da epidemia, uma vez que a esporotricose não é uma doença de notificação compulsória pelos órgãos de saúde pública. “A esporotricose humana ocorre em 14 Estados brasileiros, os quais representam as principais áreas endêmicas e formas clínicas da doença. De 1998 a 2015, houve um grande surto zoonótico. É imperativo que vias diferentes de transmissão sejam contempladas com políticas públicas diferentes para a contenção da epidemia. O recente aumento do número de casos de esporotricose justifica-se pelo descaso das autoridades competentes em conter a epidemia logo no início, levando a seu desenvolvimento desenfreado”, critica o orientador.
Anderson Messias Rodrigues, pesquisador e docente da disciplina de Biologia Celular (EPM/Unifesp)
Amostras do gênero Sporothrix no Departamento de Microbiologia, Imunologia e Parasitologia (DMIP)
Ganhos da pesquisa
Em sua tese de doutorado, Rodrigues buscou entender a epidemiologia do fungo, o que inclui as formas de dispersão no ambiente e o papel do hospedeiro mamífero na cadeia de transmissão da doença. A partir da análise de materiais enviados ao DMIP, o pesquisador fez caracterizações moleculares e identificou um fungo diferente dos demais – genética e morfologicamente. “Estudamos mais detidamente esse fungo e vimos que se tratava de uma espécie diferente, que não havia sido descrita até então. Como era uma amostra proveniente do Chile, de Viña del Mar, nós a batizamos de Sporothrix chilensis em homenagem a seu local de origem. Interessantemente esse fungo provocou um quadro atípico, que é a onicomicose, uma doença fúngica instalada nas unhas. Por enquanto, são pouquíssimos casos”, comenta o docente.
Em relação ao diagnóstico molecular do fungo, foram descobertos novos marcadores genéticos capazes de efetuar a detecção do microrganismo sem a necessidade de isolá-lo, método que diminuiu o tempo para o diagnóstico da doença e, consequentemente, para o início do tratamento. “Normalmente o tempo entre o isolamento e a identificação do fungo é de sete a 21 dias. É um período muito grande para que o médico chegue à confirmação. Nós desenvolvemos marcadores moleculares específicos que reduzem o tempo de identificação do Sporothrix para algumas horas, o que pode ser útil no caso de epidemias, por exemplo. A partir do momento em que temos o fungo em mãos, conseguimos determinar a espécie de Sporothrix entre seis e oito horas. Isso tem implicações importantes porque, dependendo da espécie, pode-se mudar o antifúngico utilizado para tratar o paciente”, explica Rodrigues.
A pesquisa em questão, ganhadora em 2016 do Prêmio Capes de Tese, do Prêmio Capes-Interfarma de Inovação e Pesquisa e do Grande Prêmio Capes de Tese Nise da Silveira, também avançou no diagnóstico sorológico da doença, a partir da descoberta de proteínas do Sporothrix brasiliensis, Sporothrix schenckii e Sporothrix globosa, capazes de estimular a produção de anticorpos durante o processo infeccioso do hospedeiro humano ou felino. Essas proteínas imunogênicas podem ser aplicadas diretamente ao imunodiagnóstico da esporotricose, possibilitando a detecção de anticorpos circulantes no soro de pacientes. Desse modo, fornecem uma ferramenta importante para fortalecer a contenção de futuras epidemias.
Colônia gigante do fungo Sporothrix chilensis, raro agente de esporotricose humana, descrito por Rodrigues em sua tese de doutorado na área de Microbiologia e Imunologia
Como tratar e prevenir a esporotricose
A esporotricose é uma micose que produz manifestações clínicas diversas no hospedeiro, entre as quais se incluem a forma cutânea fixa, a linfocutânea e a cutânea disseminada – esta última propicia os quadros mais graves da doença, que estão associados à baixa imunidade. Tanto a esporotricose humana quanto a animal são totalmente curáveis e registram alto índice de resposta ao tratamento, feito com antifúngicos. Anderson Messias Rodrigues reforça que, para conter o alastramento da doença, é necessário que os donos exerçam a posse responsável de seus animais; no caso dos gatos, aos quais se deve dispensar cuidado especial, cumpre limitar seu livre acesso às ruas, onde é comum que os felinos entrem em confronto e se arranhem, o que possibilita a inoculação do fungo.
“Se o dono do animal percebe uma ferida que não cicatriza e que aumenta de tamanho, tem de procurar o médico veterinário. Ele irá avaliar os sintomas clínicos e fazer a detecção de microrganismos na lesão do animal infectado. Um animal diagnosticado no início da doença tem grande chance de cura. Um animal em estágio avançado da doença, dependendo do caso e do fungo, talvez não responda ao tratamento”, pondera o pesquisador.
Com o crescimento da esporotricose, muitos gatos têm sido sacrificados desnecessariamente, uma vez que são considerados os causadores da doença. “Quando uma pessoa desinformada abandona o animal doente nas ruas, este passa a contaminar outros animais, que voltam para casa e contaminam os humanos. Se o dono do primeiro gato com esporotricose o tivesse tratado corretamente, teria evitado pelo menos uma dezena de casos. Divulgam-se muitas fotos de gatos com lesões, dando a impressão de que eles são os vilões, quando, na verdade, são as vítimas”, enfatiza o autor da tese.
A melhor forma de prevenir a transmissão do fungo é usar equipamentos de segurança pessoal, necessários à realização de atividades de jardinagem que propiciem o contato com o solo contaminado. Além disso, recomenda-se o uso de vestimenta adequada durante o tratamento de animais doentes para impedir que a arranhadura e a mordedura transmitam o fungo para o tratador. “O uso de ferramentas apropriadas para a manipulação de material vegetal, assim como a remoção dos focos na natureza, é necessário para a contenção da epidemia. Por outro lado, onde prevalece a transmissão gato-gato ou gato-homem, as medidas de contenção devem abranger campanhas educacionais direcionadas aos donos de gatos em áreas endêmicas, castração dos animais em áreas de surto e implementação do tratamento antifúngico apropriado”, pontua Zoilo P. de Camargo.
Artigos relacionados:
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RODRIGUES, Anderson Messias; HOOG, G. Sybren de; ZHANG, Yu; CAMARGO, Zoilo Pires de. Emerging sporotrichosis is driven by clonal and recombinant Sporothrix species. Emerging Microbes and Infections, Xangai (China), v. 3, n. 5, p. 1-10, 7 maio 2014. Disponível em: <https://www.nature.com/emi/journal/v3/n5/pdf/emi201433a.pdf >. Acesso em: 5 maio 2017.
RODRIGUES, Anderson Messias; CHOAPPA, Rodrigo Cruz; FERNANDES, Geisa Ferreira; HOOG, G. Sybren de; CAMARGO, Zoilo Pires de. Sporothrix chilensis sp. nov. (Ascomycota: Ophiostomatales), a soil-borne agent of human sporotrichosis with mild-pathogenic potential to mammals. Fungal Biology, [s.l.]: Elsevier, v. 120, n. 2, p. 246-264, fev. 2016. Disponível em: <https://doi.org/10.1016/j.funbio.2015.05.006 >. Acesso em: 5 maio 2017.
RODRIGUES, Anderson Messias; HOOG, G. Sybren de; CAMARGO, Zoilo Pires de. Molecular diagnosis of pathogenic Sporothrix species. PLoS Neglected Tropical Diseases, São Francisco (Califórnia, EUA), v. 9, n. 12, p. 1-22, 1º dez. 2015. Disponível em: <https://doi.org/10.1371/journal.pntd.0004190 >. Acesso em: 5 maio 2017.
RODRIGUES, Anderson Messias; BARREIRA, Paula H. Kubitschek; FERNANDES, Geisa Ferreira; ALMEIDA, Sandro Rogério de; BEZERRA, Leila M. Lopes; CAMARGO, Zoilo Pires de. Immunoproteomic analysis reveals a convergent humoral response signature in the Sporothrix schenckii complex. Journal of Proteomics, [s.l.]: Elsevier, v. 115, p. 8-22, 6 fev. 2015. Disponível em: <https://doi.org/10.1016/j.jprot.2014.11.013 >. Acesso em: 5 maio 2017.