Por José Luiz Guerra
Como uma pessoa transexual lida com suas fotos de infância? Essa foi a temática central da dissertação de mestrado de Marcela Vasco, do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade Federal de São Paulo (EFLCH/Unifesp) - Campus Guarulhos.
Em seu estudo, a pesquisadora analisou a história de vida de três pessoas: Carla, Leo e Júlia (os nomes verdadeiros foram preservados). Os entrevistados relataram a trajetória de suas vidas desde a infância, por meio da relação com as fotografias da época, até os dias atuais. Os relatos incluíam as memórias familiares, brincadeiras de criança e o processo de transição corporal pelos quais passaram, utilizando-se de cirurgias e hormônios, com o intuito de aproximarem seus corpos à forma como se identificavam.
Ao se deparar com as fotos de infância, Leo as classificou como um documento histórico que atesta suas mudanças corporais e afirmou que se sente como se estivesse em pedra sendo esculpindo com o cinzel e o martelinho. Júlia viu nas imagens uma parte de seu tesouro e a ligação afetiva com sua família e com a memória de seu pai, já falecido. Já para Carla, a única entrevistada que não possuía fotos de infância, essas memórias remetiam a ela a ligação com uma família que ela pretende esquecer.
Posteriormente, Leo e Júlia, os únicos que possuíam fotos de infância, foram incentivados pela pesquisadora a identificar, por meio de costuras, os detalhes que lhes chamavam mais atenção nas fotos. “A costura nas fotos é uma metáfora. O que eu tentei mostrar na dissertação é que a fotografia não é a cópia exata do real, como muitas vezes tendemos a acreditar. Para alguns dos meus interlocutores, suas fotos de infância estavam bem longe de representar a realidade, como de fato se identificavam. Costurar era uma tentativa de representar com as linhas essa relação deles com suas fotos”, explica Marcela.
Em suas fotos, Leo destacou o fato de não usar brincos e roupas que o caracterizavam como menina quando ainda era bebê. “Ela (sua mãe) não furou. Ela esperou eu pedir. Eu que escolhi se queria ter brinco. O que eu acho que é a forma mais correta. Você só deve mexer no corpo de alguém se esse alguém quiser, né? Então ela não furou a minha orelha”, afirma Leo. Também apontou em umas das fotos, o fato de usar saia, mas não como um acessório caracteristicamente feminino e sim como uma forma de brincar, já que ele descreveu que se sentia como um peão rodando. Entretanto, perante a uma foto com 10 anos de idade, ele a classifica como “o fim da época de paz com seu corpo”, quando a puberdade começou a se manifestar e a modificar o corpo reto, com o qual se identificava, passando a adquirir curvas indesejadas. “Lembro que nessa época eu não queria crescer, porque crescer pra mim significava virar mulher, ser uma mulher e isso eu não conseguia nem imaginar”, completa Leo.
No caso de Júlia, mesmo possuindo fotos de sua infância, ela destacou uma de seu pai, quando criança. Ele aparece jogando futebol, fato que, segundo o próprio pai, não correspondia com a realidade. “A história é: meu pai nunca gostou de futebol. Ele diz que meu avô obrigou ele a chutar a bola e depois da foto ele apanhou porque não soube chutar direito”. Para Júlia, a foto retrata o que seu avô queria que seu pai fosse e, estando aquele momento registrado em imagem, uma tentativa dos pais de guardarem aquele momento como a forma que querem que o filho seja visto no futuro. “Não é a imagem na fotografia que fala sobre a relação de Júlia com suas fotografias de infância, mas a relação com esta outra fotografia que aponta uma possível explanação sobre como Júlia olha e compreende suas próprias imagens”.
Com o estudo, Marcela conclui que, da mesma forma como o corpo de seus interlocutores passou por uma transformação, as fotos, consideradas como objetos imutáveis, também poderiam sofrer intervenções. “Se o assombro inicial da pesquisa residia no fato da fotografia ser imutável, enquanto o corpo era passível de transição por meio de cirurgias, hormônios e inúmeras outras intervenções, por fim se pode perceber que a fotografia costurada também passa por suas transformações específicas”, finaliza a pesquisadora.
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