Por Décio Semensatto*
(Imagem ilustrativa)
Vários eventos históricos ilustram como a degradação da água impactou a saúde humana e os ecossistemas. Pode-se citar a crise de poluição em 1858 no Rio Tâmisa, em Londres, conhecida como Great Stink (Grande Fedor), durante a qual diversas doenças hidroveiculadas causaram sofrimento, mortes e perdas econômicas relevantes. Aqui no Brasil, parte da Represa Billings está inviabilizada para o abastecimento público na Região Metropolitana de São Paulo (RMSP) devido ao esgoto despejado por anos. Enquanto o primeiro exemplo foi mitigado com grandes intervenções de infraestrutura de saneamento que funcionam até hoje, o nosso caso ainda carece de ação coordenada e definitiva. Aguardamos o nosso Great Stink.
Há uma interessante impressão cristalizada por aqui: "o Brasil é o país das águas". De fato, temos extensas áreas úmidas ou com água superficial e subterrânea abundantes. É necessário acrescentar, no entanto, que a distribuição da água no espaço e no tempo não é uniforme, seja pelas características do ambiente físico, seja em razão de nossa interação com os recursos naturais.
Veja o disparate. O Brasil como um todo ostenta uma disponibilidade hídrica de aproximadamente 35.000 m3/habitante/ano, o que a coloca na categoria de abundante, segundo classificação da ONU. Já a bacia hidrográfica do Alto Tietê, onde está a RMSP, conta com parcos 200 m3/habitante/ano, patamar considerado crítico. Para sair da situação deveria ultrapassar os 1.500 m3/habitante/ano. Assim, entraria na categoria pobre, onde está o Estado de São Paulo. O habitante da pujante capital paulista tem menos água disponível do que aquele que reside em algumas cidades do semiárido? Sim. A água disponível no Alto Tietê já não é suficiente e hoje o sistema de abastecimento público importa água de outras bacias hidrográficas. Parte dos paulistanos dividem sua água com os piracicabanos, por exemplo.
Não se trata somente da quantidade de água, mas também da brutal demanda de uma população hiperconcentrada na RMSP e suas atividades econômicas. Outra dimensão é o desperdício na distribuição e no uso pela população, bem como a escassez de água em qualidade. A degradação da água superficial e subterrânea progride em ritmo cada vez mais acelerado, consequência da expansão urbana agressiva e socialmente injusta. Tratamos um recurso disponível em nível crítico como se fosse infinito. Ter água parece simples: basta abrir a torneira e não se importar como nossos resíduos retornam aos reservatórios onde, não por acaso, está a mesma água que beberemos futuramente.
Durante muito tempo, a instalação e manutenção da infraestrutura de saneamento esteve a cargo do poder público local. Entre tantas pressões políticas, econômicas e sociais, tratar esgoto, no entanto, nunca foi prioridade da maioria dos governantes. Estações de tratamento de esgoto não geram votos, apesar da obrigação legal de funcionarem. Também é comum muitos municípios argumentarem que os recursos financeiros disponíveis são insuficientes, embora isso seja meia verdade em vários casos. A solução, então, é concessionar à iniciativa privada a tarefa na forma de parceria público-privada. Resolve o problema? Em algumas cidades, certamente não. Em outras, melhoram os indicadores. A que custo?
Um dos problemas da privatização do saneamento é que ele deixa de seguir a lógica de políticas públicas, em sua essência, para se enquadrar na lógica de mercado. Não raro, ambas divergem. Um direito essencial passa a ser entregue àquela coletividade que transforma o investimento em retorno financeiro. Se não, dificilmente contará com o serviço. Não entra na conta outras dimensões que impactam nossas vidas, como os serviços ecossistêmicos associados aos recursos hídricos. Os resultados nem sempre se traduzem em boa conservação da água. Saneamento é assunto transversal com consequências em vários campos da gestão pública, impactando o quanto é gasto em saúde, em meio ambiente, em habitação e na produtividade econômica, entre outras.
Para que o saneamento avance a níveis civilizatórios no Brasil, não será delegar à iniciativa privada que resolverá a questão. Será necessário haver vontade política, promover a Educação Ambiental e o uso racional da água, a conservação das florestas e dos recursos hídricos, além de assumir que este é assunto de política de Estado. Saneamento, embora possa contar com a parceria privada, não pode estar limitado a iniciativas econômicas pautadas em planilhas de números frios.
*Docente do Instituto de Ciências Ambientais, Químicas e Farmacêuticas (ICAQF/Unifesp) - Campus Diadema
As opiniões expressas neste artigo não representam a posição oficial da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp)