Por Alexandre Milanetti
A Cannabis sativa (popularmente conhecida no Brasil como maconha) é a terceira droga recreativa mais usada em todo o mundo (UNODC, 2020). O seu uso é polêmico, seja por recomendação médica ou não. Apesar da popularidade do uso entre os brasileiros, as informações sobre seus usuários frequentes fora de contextos clínicos ainda são escassas (Bastos et al., 2017). Um estudo realizado por um grupo de pesquisadores(as) brasileiros(as) se propôs a lançar um pouco de luz nessa seara.
Os resultados demonstram que os entrevistados tiveram a autopercepção sobre seus padrões de uso de cannabis associados com medidas de ansiedade, depressão, qualidade de vida e o conceito subjetivo de bem-estar, sendo que os melhores escores foram observados entre aqueles que assinalaram uso frequente de cannabis e não perceberam problemas associados com o seu uso. O presente estudo buscou testar a hipótese de que a autopercepção do uso de cannabis é um fator associado ao conceito subjetivo de qualidade de vida e aos desfechos de saúde mental.
Para essa pesquisa, foram entrevistados 6.620 usuários de maconha. 17,1% dos participantes se autoclassificaram como usuários ocasionais, 64,6% como usuários habituais e 7,7% como usuários disfuncionais (indivíduos que usam a cannabis e percebem problemas com o uso). Os participantes eram em sua maioria jovens adultos do sexo masculino, com pelo menos ensino médio, empregados e sem filhos. Os maiores escores de qualidade de vida foram observados entre os usuários habituais de maconha, seguidos dos ocasionais, enquanto tanto os não usuários (785 pessoas) quanto os disfuncionais apresentaram escores menos favoráveis.
As medidas subjetivas de bem-estar foram maiores entre os usuários habituais e ocasionais do que entre os não usuários, enquanto os usuários disfuncionais foram os mais afetados. A baixa qualidade de vida, sintomas de depressão ou de ansiedade foram mais prevalentes entre os usuários disfuncionais, mas os não usuários de cannabis relataram mais sintomas de depressão ou ansiedade e menos qualidade de vida do que os usuários ocasionais e habituais.
“A tradução leiga mais usada para expressão ‘bem-estar subjetivo’ é ‘felicidade’. Por conta das diversas conotações associadas ao termo felicidade, a psicologia tem empregado o bem-estar subjetivo como definição nos estudos sobre satisfação e felicidade”, explica Paulo Rogério Morais, professor do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Rondônia e cujos dados da pesquisa em questão serviram de base para seu doutoramento junto à Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), sob orientação do professor Dartiu Xavier da Silveira.
Para o orientador, psiquiatra e docente associado ao Departamento de Psiquiatria da Unifesp, o trabalho é importante porque “a grande maioria dos trabalhos científicos publicados sobre drogas se baseia em experiências malsucedidas onde o uso de drogas leva a consequências desastrosas. Mas não é isto o que ocorre com a imensa maioria dos usuários. Nós, pesquisadores, deveríamos parar de estudar unicamente as drogas que as pessoas usam e passarmos a investigar as pessoas que usam drogas. Os resultados são surpreendentes!”
Segundo Paulo Morais, a ideia para esse estudo surgiu da junção de diferentes observações, mas principalmente a partir da constatação de que, a menos que gere algum problema, o uso regular de drogas é um fenômeno negligenciado pela comunidade científica. Ainda para o pesquisador, relatórios publicados anualmente pelo Escritório das Nações Unidas para Drogas e Crimes (UNODC) mostram que a maconha é a droga ilícita mais usada no mundo e que a maior parte das pessoas que reportam o uso de drogas ilícitas não apresentam problemas decorrentes desse uso. “No entanto, na literatura médica o uso de drogas é quase sinônimo de problemas, pois as conclusões são geralmente baseadas em amostras tendenciosas, [usuários que buscam tratamento]”, complementa Morais.
Para avaliar a qualidade de vida no estudo foi usada a versão abreviada do instrumento desenvolvido pela Organização Mundial da Saúde (OMS), o WHOQOL-bref. Este instrumento quantifica a percepção que a pessoa tem acerca de sua posição na vida, no contexto da sua cultura, valores, objetivos, expectativas e preocupações relacionados aos aspectos físicos, psicológicos, de relações sociais e de meio-ambiente. Pontuações mais altas indicam melhor qualidade de vida.
Em trecho da publicação no Journal of Psychiatric of Research, os(as) autores(as) destacam que “os resultados obtidos neste estudo são particularmente relevantes porque se referem a uma amostra composta predominantemente por usuários habituais de maconha da população em geral, grupo raramente representado em outras pesquisas”.
“É compreensível que haja mais interesse em conhecer os riscos e agravos associados ao uso de drogas do que estudar os aspectos não-clínicos desse uso. No entanto, conhecer as características de pessoas que usam drogas e não vivenciam problemas decorrentes desse uso pode ser um caminho para desenvolver estratégias para a prevenção ou tratamento do uso problemático”, defende Morais.
Mesmo com uma amostra de tamanho considerável, o pesquisador relata que o delineamento do estudo não permite concluir que o uso regular de maconha aumente a qualidade de vida, mas que os resultados apontam para uma relação positiva entre o uso de maconha para fins não médicos e a qualidade de vida dos usuários avaliados, exceto aqueles que percebiam problemas relacionado com o uso. Morais ressalta também que os resultados encontrados não podem ser extrapolados para o conjunto de todos os usuários de maconha do Brasil.
O fato de que o uso de cannabis está geralmente associado a um maior risco de resultados adversos para a saúde não foi observado no estudo. Os dados desta pesquisa foram coletados entre maio de 2015 e dezembro de 2016. A tese de Paulo Rogério Morais foi defendida em setembro de 2019.