Por Denis Dana
Um estudo conduzido por enfermeiros(as) e professores(as) da Escola Paulista de Enfermagem da Universidade Federal de São Paulo (EPE/Unifesp) buscou compreender como é a vivência universitária de estudantes transgênero e quais são os desafios e obstáculos enfrentados por essa população que impactam diretamente em sua permanência e formação. Entre os principais achados, uma constatação: a necessidade clara da criação e consolidação de políticas de inclusão específicas que envolvam toda a comunidade acadêmica.
Para tanto, Carolina Viana e Igor Matheus Delgado, sob orientação de Anderson Rosa, Vanessa Neves e Lucíola Siqueira, colheram relatos, por meio de entrevistas, de nove estudantes de uma universidade pública do estado de São Paulo e que possui ações afirmativas direcionadas às pessoas trans. Participaram do estudo sete homens trans, um não-binário e uma mulher trans, que tinham entre 20 e 26 anos, cursavam graduação nas áreas de exatas (três), humanas (um) e saúde (cinco) e cujas matrículas haviam sido efetuadas nos cursos de graduação há, no mínimo, um ano, considerando a necessidade de um período de permanência no ambiente universitário para que pudessem descrever as experiências vividas. Cinco estudantes declararam-se brancos(as) e quatro negros(as). A renda familiar mensal foi, em média, de seis salários mínimos.
Os relatos resultaram na criação de três categorias: ser e se perceber como pessoa trans; a vivência na universidade; e o apoio recebido na instituição.
Na primeira categoria, os(as) pesquisadores(as) puderam observar que a percepção como trans foi um processo iniciado durante a infância, mas concretizado anos depois, coincidindo majoritariamente com o ingresso na universidade, assumindo sua identidade de gênero através das mudanças corporais e performatividade. Nesse sentido, independentemente do momento em que ocorreu o processo de transição, os relatos apontaram dificuldades de autoafirmação no ambiente universitário, dado o medo do julgamento e a preocupação com a passabilidade, comprometendo, assim, suas experiências na universidade.
No que diz respeito à vivência universitária, os(as) participantes relataram sentimentos de insegurança e não pertencimento, gerados pelo ambiente permeado pela heteronormatividade e transfobia, o que impactou na permanência estudantil. De acordo com os(as) autores(as), “mais além, situações de violência velada foram mencionadas nos depoimentos, o que dificulta sua confirmação e o desenvolvimento de ações diretas para combatê-la. Nota-se, claro, o preconceito que também compromete a participação de estudantes trans em atividades acadêmicas e esportivas, bem como sua plena inserção no ambiente universitário”.
Já no que se refere à terceira categoria, estudantes trans buscam estratégias de enfrentamento das situações vivenciadas no ambiente universitário, mesmo as legais e já reconhecidas como direito em decretos, como a obrigatoriedade do uso do nome social em instituições de educação, instituída no Brasil em 2015. “Foi relatada sensação de impotência frente à falta de conhecimento de professores(as) e funcionários(as) para lidar com situações de transfobia, resistência ao uso do nome social, sensação de invisibilidade e outros problemas enfrentados por essa população, algo que também dificulta a qualidade da inserção e permanência na universidade”, destacam os(as) pesquisadores(as).
Ações concretas e coletivas
Compreender de maneira mais aprofundada a vivência de estudantes transgênero na universidade é fundamental para também entender o motivo do número tão reduzido dessa população nas instituições de ensino superior. De acordo com o Dossiê Assassinatos e Violências Contra Travestis e Transexuais Brasileiras, feito pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) em 2019, cerca de 80% das pessoas trans que abandonaram o ensino médio no mundo estão no Brasil, motivo pelo qual é escassa a presença de estudantes transgênero nas universidades brasileiras, que representam apenas 0,02% dos (as) estudantes universitários(as).
Nesse sentido, o estudo revela que essa é uma temática que ainda carece de mais dados e informações, o que torna necessário produzir conhecimento e, a partir dele, formular e remodelar políticas de inclusão e permanência de estudantes no ensino superior, incluindo sua identidade de gênero como um fator relevante no processo.
Para os(as) autores(as) do estudo, o enfrentamento dessas dificuldades vividas pelas pessoas trans no ambiente universitário deve passar por ações institucionais e pelo apoio dos(as) demais estudantes, em um movimento que envolva toda a comunidade acadêmica, transformando a universidade em um local verdadeiramente seguro e acolhedor. “Estudos recentes revelam que a percepção de inclusão e socialização de estudantes trans na universidade é um fator primordial para sua permanência. Por isso, o clima do campus é um componente amplamente pesquisado para a compreensão dos aspectos ambientais que podem influenciar essa percepção. Entende-se por clima no campus as atitudes, comportamentos e práticas relacionadas ao acesso, inclusão e nível de respeito pelas necessidades individuais e de grupos”.
Na conclusão do estudo, os(as) autores(as) sugerem ações que permitam a construção de um ambiente mais saudável, mais favorável e mais inclusivo à população de estudantes trans, como o estabelecimento de uma política do nome social na universidade, apontada no estudo como uma possibilidade de reconhecimento da identidade de gênero e exercício da cidadania, além de combater o controle dos corpos, a inferiorização e o apagamento das pessoas trans no ambiente acadêmico, o treinamento de profissionais que atuam no campus a fim de que não apenas compreendam e respeitem as pessoas trans, mas também ofereçam suporte para a afirmação de gênero e cultivem um ambiente de apoio, compaixão e cuidado; a criação de oportunidades para discussão e reflexão sobre o tema na universidade e normas para a defesa contra o assédio e a violência; e o estabelecimento de uma rede de suporte para o acompanhamento de estudantes trans por profissionais de saúde mental, quando necessário. Essas são iniciativas que devem ser implementadas e avaliadas continuamente para melhorar a inserção e a permanência de estudantes transgênero na universidade.
Anderson Rosa, um dos autores do estudo e pró-reitor de Assuntos Estudantis da Unifesp, destaca "que os resultados da pesquisa estão sendo compartilhados e discutidos no Fórum Nacional de Pró-Reitores de Assuntos Estudantis (Fonaprace) para compartilhar experiências e ações exitosas nas ações de inclusão e permanência de pessoas trans nas universidades federais".