Pesquisadores(as) descreveram o que muda no funcionamento dos RNAs das células na presença do vírus da covid-19; resultados podem dar pistas sobre a capacidade de diferentes variantes de escapar do sistema imune e orientar a busca por novos tratamentos
Por Alexandre Milanetti
Um grupo de pesquisadores(as) da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) demonstrou, de maneira inédita, por meio de um estudo publicado no último mês de agosto no periódico Frontiers in Cellular and Infection Microbiology, que a infecção pelo vírus Sars-CoV-2 (causador da covid-19) consegue alterar o padrão de funcionamento do RNA celular. A informação foi revelada em matéria publicada no dia 13 de setembro pela Agência Fapesp. Para chegar à conclusão, o grupo examinou 13 conjuntos de dados obtidos ao longo de quatro estudos anteriores que analisaram o RNA viral, bem como o de células animais e humanas.
O coordenador desta investigação científica é o pesquisador Marcelo Briones, do Centro de Bioinformática Médica da Escola Paulista de Medicina (EPM/Unifesp) - Campus São Paulo. “Nosso primeiro achado importante neste trabalho é que a infecção pelo Sars-CoV-2 aumenta, no conjunto de RNAs da célula, o nível global de metilação do tipo m6A [N6-metiladenosina], em comparação com as células não infectadas”, explica Briones. A pesquisa examinou o epitranscriptoma de células Vero (derivadas de macacos) e da linhagem Calu-3 humanas por meio de uma técnica de sequenciamento direto do RNA. O epitranscriptoma corresponde ao conjunto de modificações bioquímicas do RNA (por exemplo, a adição de um grupo metil à molécula, fenômeno conhecido como metilação) dentro de uma célula.
O que é metilação?
Trata-se de uma modificação bioquímica que ocorre na célula pela ação de enzimas capazes de transferir parte de uma molécula para outra. Esse processo altera o comportamento de proteínas, enzimas, hormônios e genes. Os(As) pesquisadores(as) da Unifesp demonstraram as mudanças no RNA das células infectadas de modo quantitativo ao analisar todo o conjunto de RNAs nelas existente e, de modo qualitativo, ao apontar individualmente, em um mapa, o número de metilações por região base dos nucleotídeos que compõem o RNA dessas células.
Segundo o texto da matéria da Agência Fapesp, o estudo é continuação de um trabalho publicado em 2021, que analisou o epigenoma do vírus e mostrou o padrão da metilação em seu RNA (veja mais aqui).
Briones diz que “nos vírus, a metilação tem duas funções: regular a expressão das proteínas e defender o patógeno da ação do interferon, uma potente substância antiviral fabricada pelo organismo hospedeiro”. Nos dois trabalhos, os(as) pesquisadores(as) analisaram o tipo mais comum de modificação de nucleotídeo de RNA, o m6A, que está envolvido em vários processos cruciais dos RNAs, como a localização intracelular e a capacidade de produzir proteínas. Os nucleotídeos são compostos por quatro bases nitrogenadas diferentes (adenina, guanina, citosina e uracila) distribuídas ao longo das fitas de RNA encontradas em cada célula.
A equipe da Unifesp também observou que diferentes cepas do vírus têm variações na sequência de bases nitrogenadas que compõem os seus nucleotídeos. “Desse modo, algumas cepas podem ser melhor metiladas do que outras e, assim, proliferar melhor dentro das células”, ressaltou Briones.
Também foi observado que uma sequência de nucleotídeos conhecida como “DRACH”, receptora da metilação m6A, é um pouco diferente nos RNAs do Sars-CoV-2 em relação aos RNAs das células. Nessa sigla, frequentemente usada em estudos do tipo, a letra D indica as bases nitrogenadas adenina, guanina ou uracila; a letra R indica adenina ou guanina; a letra A é o resíduo metilado; a letra C corresponde à citosina; e a letra H indica adenina, citosina ou uracila.
Como o vírus usa as enzimas das células para a sua própria metilação, isso promove uma pressão evolutiva para que os vírus adaptem suas sequências “DRACH” de modo a ficarem mais parecidas com as das células. A linhagens virais que melhor fazem essa adaptação também serão mais eficientes para escapar do interferon.
Após concluir a análise da ação do Sars-CoV-2 no binômio patógeno-hospedeiro com relação à modificação m6A, o próximo passo dos(as) cientistas será analisar os dados armazenados para traçar uma correlação entre o nível de metilação do RNA viral e o burst size do vírus, ou seja, o quociente de multiplicação viral.
“Quanto mais metilado o vírus está, mais crescerá no citoplasma celular e maior será o seu burst size”, esclarece Briones. Em situação normal, sem estímulos, uma partícula viral se replica em outras mil. “Os achados abrem a perspectiva para novos tratamentos para a covid-19 e o reposicionamento de drogas conhecidas”, indica o pesquisador. Além disso, traz elementos para a melhor compreensão da capacidade das sub-linhagens de escapar ao sistema imune.
Metodologia
Os(As) cientistas da Unifesp usaram um método de sequenciamento direto de RNA chamado Nanopore (Oxford Nanopore Technologies). Uma das vantagens dessa escolha, segundo os(as) pesquisadores(as), é evitar as modificações realizadas para a leitura do filamento de RNA pelo método convencional, o RT-PCR (polimerase por transcriptase reversa, na sigla em inglês).
O estudo foi conduzido no âmbito do Projeto Temático Investigação de elementos induzidos pela resposta vacinal nos indivíduos submetidos aos testes clínicos com a vacina ChAdOx1 nCOV-19, coordenado pelo professor Luiz Mário Janini. Também participaram os(as) pesquisadores(as) Juliana Maricato, Carla Braconi e Fernando Antoneli. O primeiro autor, João H. C. Campos, é bolsista de pós-doutorado da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). O estudo contou ainda com a participação, como segundo autor, de Gustavo V. Alves, graduando em Tecnologia em Informática em Saúde pela EPM/Unifesp.
*Com informações da Agência Fapesp