A ideia de evolução biológica não é aceita por muitas pessoas ao redor do mundo, o que acontece com grande disparidade entre os países, de acordo com uma ampla pesquisa do Pew Research Center. Entre os fatores que se colocam como obstáculo à aceitação da evolução biológica listados em extensa bibliografia, estão a falta de abertura à experiência, a falta de compreensão da natureza da ciência e a religião. Mas qual é o tamanho da interferência desse último fator? Para compreender mais detalhadamente a força da religião na aceitação da evolução biológica, pesquisadores(as) da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), em parceria com pesquisadores(as) de duas instituições da Itália, realizaram um estudo que acaba de ser divulgado no periódico Plos One. Os resultados mostram que fatores socioculturais mais amplos predizem a aceitação da evolução em um grau mais alto do que a opção religiosa isoladamente.
“A aprendizagem dessa temática relativa à evolução biológica tem sido discutida intensamente nos últimos anos e conta com produção científica muito consistente. A compreensão da diversidade biológica, sobretudo dos trópicos, a importância de sua conservação e, por decorrência, os problemas associados a extinções locais e globais dependem, em grande medida, do entendimento dos processos evolutivos que lhes deram origem. Nesse sentido, alguns estudos recentes tendem a concluir que os problemas de aprendizagem ligados à teoria evolutiva se devem a aspectos emocionais ligados a conflitos de consciência entre o conteúdo científico expresso nos materiais escolares e os princípios morais ligados a dogmas religiosos”, afirma Nelio Bizzo, professor do Instituto de Ciências Ambientais, Químicas e Farmacêuticas (ICAQF/Unifesp) - Campus Diadema.
Além de ser o coordenador do estudo, o docente também é o coordenador científico do projeto temático ligado ao Programa Biota-Educação da Fapesp, que financiou a pesquisa. Outro coautor, Leonardo Luvison Araújo, é bolsista de pós-doutorado da Fapesp na Faculdade de Educação da USP. O parceiro italiano e também coautor do artigo, professor Giuseppe Pellegrini, é docente da Università degli Studi di Trento e pesquisador do instituto Observa, Science in Society. Ele esteve no Campus Diadema da Unifesp para ministrar aulas no Programa de Pós-Graduação em Ensino de Ciências e Matemática (PECMA) antes da pandemia, quando o estudo foi planejado.
Para averiguar a força das associações entre nacionalidade, religião e aceitação da evolução biológica, o grupo de pesquisadores(as) explorou um banco de dados construído a partir das respostas de cerca de 5.500 estudantes da faixa de 15 anos de idade, em amostras de representação nacional de dois países: Brasil e Itália. Os(As) jovens indicaram como falsas ou verdadeiras afirmações sobre evolução biológica, como “A espécie humana descende de outra espécie de primata”, em um questionário padronizado, aplicado à mesma época nos dois países (maio/junho de 2014), que foi a base da tese de doutorado de Graciela Oliveira, docente da UFMT e também coautora do artigo.
Os dados foram analisados por meio de diferentes ferramentas estatísticas, incluindo a Análise de Componente Múltiplo (MCA), que apontou uma nítida diferença entre o padrão de respostas dos(as) católicos(as) dos dois países. Além disso, foram comparadas as diferenças entre estudantes de diferentes denominações cristãs no mesmo país (Brasil) e estudantes católicos(as) italianos e brasileiros por meio de cálculos de frequência (Índice Intercultural).
Os resultados, salienta Bizzo, “tendem a contradizer a hipótese da prevalência religiosa”. De acordo com o coordenador do estudo, “ao comparar diferenças na aceitação da evolução na Itália e no Brasil por estudantes que declaram pertencer à mesma religião, observamos que estudantes católicos(as) apresentaram diferenças significativas entre os dois países, e a distância entre eles foi muito maior do que entre católicos(as) e evangélicos(as) no Brasil. Nossos resultados apoiam aqueles(as) que argumentam que a filiação religiosa não é o principal fator na previsão do nível de aceitação da evolução”.
O artigo discute aspectos teóricos das pesquisas da área, mostrando como certas opções metodológicas introduzem imprecisão nas medidas, em especial com o uso de questões de tipo Likert, que medem o nível de concordância/discordância diante de afirmações. Além disso, defende o uso de instrumentos de coleta de dados que garantam a percepção de anonimato absoluto pelos(as) estudantes, além de oferecer uma definição de “aceitação” com base filosófica clara.
Dessa forma, destaca Bizzo, “observamos que o ambiente sociocultural mais amplo, que abrange a religião, mas não se restringe a ela, pois inclui, por exemplo, a educação, as mídias e o convívio familiar e social, parece ser mais relevante na aprendizagem dos conceitos evolutivos do que se admitia antes. Além disso, os resultados abrem novas perspectivas para uma reavaliação dos bancos de dados decorrentes da aplicação de testes semelhantes”. O professor conclui que “materiais didáticos não devem incluir relatos religiosos no capítulo sobre origem da vida e evolução. Seria muito importante que os(as) professores(as) não deixassem de ensinar a temática evolutiva de maneira adequada diante da simples informação da religião de seus(suas) alunos(as). Ao mesmo tempo, devem perceber a influência de ambientes conservadores na educação e lutar para manter a liberdade de ensinar e aprender, que tem base constitucional no Brasil”.