Por Denis Dana
Em algum momento da vida, você já recorreu à frase “o que vale é a intenção” para julgar alguma ação ou atitude própria ou mesmo de outra pessoa? Se sua resposta foi positiva, saiba que é assim que pensa grande parte das pessoas no país. A revelação foi feita a partir de um estudo inédito sobre o perfil moral do brasileiro, realizado pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) em parceria com a divisão de neurociências do Instituto Locomotiva. O artigo que discute os resultados é de autoria do docente Álvaro Machado Dias e de Hélio Schwartsman, tendo sido veiculado recentemente no jornal Folha de S.Paulo.
Para chegar a essa conclusão, os pesquisadores tomaram por base duas famílias de sistemas éticos. A primeira, que se pode chamar de deontológica, tem como expoentes clássicos o grego Platão (cerca de 429 a.C-347 a.C.) e o alemão Immanuel Kant (1724-1804), para quem são os princípios que importam. A segunda é o consequencialismo, defendido pelos pensadores britânicos Jeremy Bentham (1748-1832) e John Stuart Mill (1806-1873), onde não existem princípios externos abstratos capazes de validar ou invalidar cada ato, e que seus julgamentos, então, devem ser feitos exclusivamente por meio das consequências que os mesmos acarretam.
O estudo envolveu a participação de 1.700 pessoas, distribuídas de acordo com os critérios sociodemográficos do IBGE, com grau de confiança de 95% e margem de erro de 2%, por meio de uma plataforma digital, o Instituto Locomotiva. Cada participante realizou um teste de concordância com frases criadas especialmente para caracterizar quem julga ações pela intenção e quem as julga pelas consequências por elas geradas, como a frase “O comportamento da pessoa que compete agressivamente no mercado financeiro para acumular dinheiro e assim fazer caridade é moralmente aceitável".
Nesse quesito, explica Dias, “66% dos brasileiros analisaram o princípio de um determinado comportamento para julgá-lo como moralmente correto ou errado. Os outros 34% foram consequencialistas, ou seja, fizeram o julgamento tendo como régua o desfecho, o resultado da ação”.
Detalhes revelados no estudo
O julgamento moral pelo princípio foi maior entre as pessoas acima dos 40 anos, o que os pesquisadores interpretaram como “um perfil favorecido e incorporado em razão das responsabilidades familiares, que contribuem a transmitir modelos de conduta por meio da identificação projetiva e da educação”.
O tema também provocou variações de porcentagens acerca do perfil moral. Em assuntos sobre cooperação, por exemplo, os princípios formam o julgamento para 68% das pessoas, enquanto para educação dos filhos o índice é de 60%, e para assuntos financeiros é de 58%.
Outro ponto levantado na pesquisa foi o grau de otimismo dos brasileiros. Somente 26% dos(das) participantes enxergam o mundo como um lugar amável e 35% como absolutamente hostil, “sendo que pessoas consequencialistas veem o mundo de modo menos adverso do que aquelas com perfil moral alinhado aos princípios, que também são maioria na visão de que o Brasil é visto como um país mais hostil”, destaca Dias.
Tolerância à violência
Os achados do estudo trouxeram uma questão aos pesquisadores: sendo a maioria dos brasileiros com perfil de julgamento moral fundamentado às intenções, o que sugere a tolerância de supostas consequências negativas para intenções positivas, será que motivos hipoteticamente nobres poderiam legitimar parte da violência interpessoal brasileira, com aceitação pela sociedade?
Para esmiuçar essa questão, os(as) entrevistados(as) foram colocados(as) para uma escolha forçada entre tomar satisfação na rua para defender outra pessoa ou por motivos pessoais, e o resultado mostrou que 66% afirmaram estar dispostos(as) a entrar em conflito com um estranho pela primeira razão e 34% pela segunda. Outra descoberta foi de que 61% dos(das) participantes acreditam que tomar atitudes de confronto em defesa de algo/alguém é correto. Mais além, 81% consideram ser correto tomar atitudes violentas para defender outra pessoa, e mais de 70% julgam o mesmo em relação aos seus ideais; 38% têm posicionamentos extremos em relação ao primeiro caso e 27% em relação ao segundo, sendo a legitimação do confronto mais comum nas pessoas que se identificam com a moral kantiana, motivada por princípios.
“Apesar de a pesquisa ter abordagem mais filosófica e de sabermos que as pessoas podem mudar a moral de julgamento de acordo com a situação e circunstâncias, seus resultados nos apontam que, ambos os sistemas éticos, se levados aos extremos, geram situações absurdas, mas com os brasileiros tendendo a valorizar mais a intenção que o resultado, o que acaba por legitimar, entre outros tipos de comportamento, atitudes violentas e o populismo na política”, avalia Dias.
O pesquisador conclui ainda que os achados do estudo indicam que motivações altruístas representam fortes gatilhos para o confronto. “Sua legitimação tende a ser reforçada pela noção de que as intenções relevam o impacto gerado. Assim, atos violentos em defesa de outra pessoa, bem como de um ideal, do país ou de grupos de interesse são vistos como éticos por quem os realiza e também pelo seu entorno, o que precisa ser levado em consideração nas teorizações sobre a violência interpessoal no Brasil”.