"Jardim Helian - Memória e luta por saneamento": um documentário sobre as desigualdades no acesso à água e ao saneamento na periferia da metrópole paulistana
Gustavo Prieto & Nicolau Bruno[1]
O filme Jardim Helian – Memória e luta por saneamento foi realizado no âmbito do curso de extensão Conflitos urbanos e direito à cidade: saneamento ambiental na Zona Leste, promovido por docentes do Instituto das Cidades da Universidade Federal de São Paulo - Campus Zona Leste e parceiros de movimentos sociais e associações de moradores de Itaquera. O curso nasceu da interlocução ativa entre a Unifesp e a sociedade civil como forma de produção de diálogo horizontal entre saberes, sujeitos e conhecimentos, especialmente em um campus conquistado pelas lutas históricas travadas na Zona Leste pelo direito à educação como momento fundamental para um direito radical à cidade.
Para além das atividades e aulas teóricas do curso desenvolvidas nas instalações da Unifesp-ZL, cujos temas versaram sobre a história do saneamento na metrópole paulistana, a relação entre urbanização e privação dos serviços e infraestruturas urbanas, as violações do direito à água e as tentativas recorrentes de privatização e financeirização do setor - que se consolidou tragicamente com o Novo Marco Legal do Saneamento em junho de 2020 -, ocorreram também diversos trabalhos de campo para análise prática dos sujeitos que produziram (e produzem) a cidade e lutam cotidianamente por saneamento na região.
Um dos subgrupos do curso buscou analisar in loco e em diálogo com os moradores algumas denúncias de violações ao direito à água e ao saneamento no Jardim Helian, bairro com mais de 10 mil habitantes situado próximo ao Instituto das Cidades. As atividade com os jovens extensionistas foi coordenada pelo professor Gustavo Prieto, docente da Unifesp – Campus Zona Leste, e acompanhada por 12 alunos de diferentes formações universitárias (Geografia, Engenharia Civil, Engenharia Ambiental, Ciências Sociais, História e Arquitetura e Urbanismo), instituições acadêmicas (Unifesp, USP, IFSP e universidades privadas) e também por militantes de movimentos sociais e pela Associação de Moradores e Amigos do Jardim Helian.
O filme teve o registro do cineasta e professor Nicolau Bruno, que realizou a câmera e a montagem tentando estabelecer um processo de diálogo entre o curso de extensão, os discentes e os moradores.
No documentário, há também imagens de Rodrigo Martins Reis, jovem liderança da comunidade, ex-presidente da associação de moradores do bairro e ex-aluno da Especialização em Cidades, Planejamento Urbano e Participação Popular da Unifesp, recém falecido num triste acidente. O filme é um retrato de seu incansável trabalho comunitário e uma singela homenagem à sua luta, semente de poder popular.
Neste período de pandemia do novo coronavírus em que a quarentena (e sua impossibilidade para muitos nas periferias) revela as contradições da desigualdade sócio-espacial em termos de gênero, raça, classe e território e na abertura de possibilidade de privatização generalizada do saneamento no Brasil, este documentário pretende servir como um instrumento múltiplo.
Num primeiro momento, ele é um documento (e uma possibilidade de narrativa) acerca da memória e da organização popular no Jardim Helian, como um lugar que revela as contradições da urbanização periférica. Além disso, o filme registra as denúncias de ausência e/ou precariedade dos serviços e infraestruturas de saneamento (abastecimento de água, esgotamento sanitário, coleta de resíduos sólidos, limpeza urbana e drenagem) para a comunidade, que permanece como uma das principais problemáticas urbanas e sociais do Brasil. O documentário reconstitui também uma história dos conflitos sociais, políticos e ambientais em que a comunidade está imersa, assim como apresenta trajetórias de auto-organização dos moradores e moradoras periféricos. Simultaneamente, revela as possíveis conexões entre uma universidade que almeja um caráter público e popular e as lutas e desafios advindos das demandas e urgências das periferias e seus sujeitos.
Nos termos de Sergio Lima, o Serginho, militante da Associação de Moradores do Jardim Helian: “o saneamento básico é um problema grave para os moradores do Jardim Helian e da Zona Leste como um todo devido às pessoas terem ocupado não por opção, mas por necessidade, as margens dos córregos para morar, para viver na cidade”. Serginho alerta sobre o papel do Estado nesse processo, destacando que a poluição das águas e as enchentes são consideradas como responsabilidade daqueles que habitam a periferia. Para Lima se trata, na verdade, de um modelo de saneamento precarizado e excludente, resultado de uma segregação brutal dos moradores e operada por uma ação deliberada do Estado de fornecer um serviço de má qualidade, que, de fato, ao invés de resolver o problema do saneamento, viola o direito por serviços e infraestruturas adequados. “O córrego que atravessa o bairro acaba ficando poluído não por uma ação deliberada dos moradores, mas pela própria Sabesp. A empresa despeja, por exemplo, no córrego Tone [que atravessa o Jardim Helian] o esgoto, com uma rede de afastamento que deposita os resíduos nas águas do rio, e com isso surgem enchentes e vários problemas de saúde. Esse sempre foi e é o nosso calcanhar de Aquiles”.
A pandemia da COVID-19 criou novos problemas para as lutas da comunidade e escancarou a antiga desigualdade sócio-espacial das periferias. A quarentena sem direitos que é reservada aos mais pobres é tanto maior por aqueles atingidos pela falta de saneamento básico. As vidas nas periferias importam: numa quarentena, a falta de água e de acesso ao saneamento é uma política genocida.
Vale relembrar que o presidente Jair Bolsonaro no dia 26 de março de 2020, momento em que já haviam mais de 2.500 casos de pessoas infectadas no Brasil, afirmara que o contágio pelo novo coronavírus não ocorreria no país da mesma maneira que se realizava em outras partes do mundo. Segundo o presidente, o povo brasileiro “tem que ser estudado” como um caso especial e único, pois já possuía anticorpos e estaria imune às doenças. No país, argumentou Bolsonaro, “ele [o brasileiro] não pega nada. Você vê o cara pulando em esgoto ali, sai, mergulha, tá certo? E não acontece nada com ele”[2].
A professora Luciana Ferrara da UFABC (Universidade Federal do ABC), e o secretário-executivo do ONDAS (Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento), Edson Aparecido da Silva, no entanto, são incisivos na crítica a esta intervenção presidencial que negligencia estudos científicos e dados mundiais sobre a correlação entre falta de saneamento e saúde pública. Para os autores: “está muito longe da verdade dizer que “não acontece nada” quando o brasileiro pula em esgoto. Viver em contato com esgoto é a pior condição humana que se pode imaginar”. Eles ressaltam que segundo dados da OMS (Organização Mundial da Saúde) a ausência de saneamento ou seu acesso precarizado representa 2 milhões das mortes preveníveis e 120 milhões das doenças preveníveis em todo o mundo[3]. De acordo ainda com dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatístico), em 2016 (última atualização dos dados referentes as correlações entre saúde pública e saneamento), ocorreram 166,8 internações hospitalares por 100 mil habitantes no país em decorrência de doenças relacionadas à falta de saneamento. Assim, o jornalista Luis Barrucho da BBC-Brasil, verificou que “considerando uma população de 207,7 milhões à época, foram 346,5 mil internações hospitalares por doenças causadas por ‘saneamento ambiental inadequado[4]’”.
A resposta para o problema da desigualdade no acesso à água e ao saneamento seria resolvido, de acordo com a proposta amplamente estimulada pelo Governo Bolsonaro, com o aumento da participação do setor privado e sua suposta maior eficiência, agilidade e desburocratização. O Projeto de Lei 4.162, conhecido como Novo Marco Legal do Saneamento, que já havia sido chancelado pela Câmara dos Deputados em dezembro de 2019, foi aprovado pelo Senado Federal no dia 24 de junho de 2020 em sessão virtual. Novamente uma das pautas centrais dos direitos humanos e do direito à cidade no Brasil é decidida em favor da iniciativa privada e sem amplo debate com a sociedade no momento de distanciamento social.
O relator da matéria foi o senador Tasso Jereissati (PSDB-CE), que rejeitou todas as emendas de mérito propostas a fim de que o texto não retornasse à Câmara para uma nova apreciação. A agilidade do processo e a ausência de efetiva participação popular no debate revelam que não se trata de proposta concreta para universalização, e equidade, do acesso à água e ao esgoto, mas sim de interesses privados relacionados ao negócio da água e do saneamento e aos processos de abertura de capital das empresas no mercado financeiro. Além disso, diversos especialistas apontam o fracasso mundial das empresas e corporações de saneamento privado demonstrando a ampliação da desigualdade, a péssima qualidade do atendimento dos cidadãos e o aumento expressivo do preço das tarifas cobradas. Destaca-se ainda que Tasso Jereissatti, através da Calila Participações, é um dos acionistas brasileiros da Solar Coca-Cola, empresa sediada em Fortaleza e segunda maior fabricante do sistema Coca-Cola no Brasil que produz água engarrafada, bebidas, refrigerantes e refrescos. As empresas relacionadas a The Coca Cola Company estão envolvidas em uma série de denúncias de poluição de corpos hídricos, mudança de comportamento de vazões de nascentes e lençóis freáticos, privatização de mananciais, grilagem de terras e espoliação de das riquezas naturais[5] (terras e águas no Brasil).
Diversas entidades da sociedade civil[6] argumentaram que o Novo Marco Legal não contribuirá para o avanço do saneamento básico no Brasil, mas de fato, facilita e estimula a privatização da água, por meio da concessão de serviços públicos de saneamento básico, para empresas privadas que objetivam o lucro e a negociação da água como um ativo financeiro. O professor da UFABC, Ricardo Moretti, e Edson Aparecido da Silva argumentam também que objetiva-se “limitar a liberdade dos municípios em decidir a melhor forma de prestação dos serviços, seja operando diretamente, seja concedendo o serviço a uma companhia estadual, seja repassando para a iniciativa privada[7]”.
Em síntese: no meio da pandemia do novo coronavírus, a mais grave em mais de um século, a questão do saneamento está no centro do debate político brasileiro e explicita a desigualdade e as tensões na pergunta recorrente que os movimentos sociais fazem ao Estado, ao mercado e, especialmente para nós: “água para vida ou para o lucro?”
Mas, a história que documentamos no filme não se passa em qualquer lugar. O lugar se chama Jardim Helian. O Helian existe, resiste e está no mapa. Tem luta, organização e o saneamento é um problema grave para a comunidade. Serginho, então, nos questiona: “Seria também por conta desse saneamento básico, esse córrego a céu aberto e essa água de qualidade duvidosa que a gente tem tanto problema de saúde por aqui no bairro? Eu tenho certeza que o saneamento tem tudo a ver com isso”.
Em suma, essa é a história de uma entre tantas violações das periferias, quebradas, favelas, becos, vielas, mocambos e palafitas ao sul do Equador, mais especificamente na locomotiva do progresso brasileiro também chamada de São Paulo, lugar onde a segregação tenta esconder sua face perversa e desigual. São narrativas de algumas manhãs de sábado, durante o início das chuvas de verão de 2018 que começava, atravessadas junto com Maria, Nenê, Serginho, Mohammed, Tuca e Rodrigo. É a história daqueles que tomaram água de poço, dos que perderam móveis e casas com enchentes, dos que colocaram saco plástico para não sujar o sapato e chegar ao trabalho e dos que convivem com mal cheiro e o medo das novas inundações, das doenças que vem do esgoto e da remoção. Histórias daqueles que construíram suas casas com o barro do rio que atravessa sua aldeia, a aldeia do Helian. Mas essa também é a história daqueles que acreditam que esse mesmo barro, o barro da luta, também constrói a Universidade pública. O mesmo barro. Igualzinho.
[1] Gustavo Prieto é geógrafo, professor do Instituto das Cidades da Unifesp – Campus Zona Leste e pesquisador do Transborda – Estudos da Urbanização Crítica (Unifesp), do Grupo de Geografia Urbana Crítica (GESP) e do GT de Teoria Urbana Crítica (IEA-USP). Nicolau Bruno é cineasta, professor e pesquisador, doutor em história, teoria e crítica do cinema pela Universidade de São Paulo.
[2] A reportagem completa sobre os argumentos de Jair Bolsonaro sobre sua visão da pandemia da COVID-19: https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/03/26/brasileiro-pula-em-esgoto-e-nao-acontece-nada-diz-bolsonaro-em-alusao-a-infeccao-pelo-coronavirus.ghtml
[3] Para acessar o texto completo em resposta as perspectivas bolsonaristas acerca do saneamento, ver: https://ondasbrasil.org/o-brasileiro-pula-no-esgoto-adoece-e-morre/
[4] Para a análise completa, ver: https://www.bbc.com/portuguese/geral-52067247
[5] As relações entre o Senador Tasso Jereissati e a Coca Cola são sistematizadas em: https://www.brasildefato.com.br/2019/10/10/tasso-jereissati-quer-mudar-a-lei-para-criar-mercado-das-aguas
[6] A nota conjunta de diversas entidades e associações contra o Projeto de Lei que revisa o Marco Legal do Saneamento, pode ser consultada em: https://ondasbrasil.org/nota-sobre-o-pl-3261-que-revisa-o-marco-legal-do-saneamento/ Recomenda-se ainda a leitura do manifesto Defender os serviços públicos: pela garantia do acesso à água e ao esgotamento sanitário para toda a população, disponível em: https://ondasbrasil.org/wp-content/uploads/2020/06/Manifesto-Defender-os-servi%C3%A7os-p%C3%BAblicos-Pela-garantia-do-acesso-a-%C3%A1gua-e-ao-esgotamento-sanit%C3%A1rio-para-toda-a-popula%C3%A7%C3%A3o-2.pdf
[7] Para uma análise ampla sobre as críticas ao Novo Marco Legal, ver: https://www.viomundo.com.br/voce-escreve/ricardo-moretti-e-edson-silva-covid-19-escancara-urgencia-de-universalizar-acesso-aos-servicos-de-saneamento.html