(Composição criada com imagens de: arquivo pessoal, Sandro Oliveira/Equipe do Campus Zona Leste, Roberto Parizotti/FotosPúblicas, Freepik/jcomp, flickr/Avelino Regicida, Maurício Monteiro/Equipe Guarulhos)
Valquíria Carnaúba
*Os nomes com asterisco são fictícios
São 11h30 da manhã de uma quarta-feira de fevereiro. Próximo à agência de um banco federal, no bairro paulistano de Vila Mariana, uma fila que se estende por dois quarteirões. Todos aguardando o atendimento para acessar o auxílio emergencial, nem todos de máscara. Uns estão visivelmente cansados de esperar. Outros chegaram antes das 7h. Alguns viajaram da própria cidade, pois onde moram há filas desde a madrugada. O clima é tenso, e antes do meio-dia já há discussão sobre quem será recebido primeiro. Brigas menores são para que o distanciamento seja respeitado.
A agência localiza-se em uma avenida larga e movimentada, com comércio ativo e um fluxo considerável de carros, motos, bicicletas e pessoas. A cena do meio da semana parece mais a de um feriado curto. Em uma das calçadas, mães caminham com duas ou três crianças ao lado. Outros casais levam seus bebês no carrinho. Mais à frente, no canteiro central da avenida, um pai aguarda o semáforo abrir para atravessar a rua com seu filho pré-adolescente, ambos de bicicleta. Na calçada oposta, mais famílias estão acampadas pedindo dinheiro aos transeuntes. Uns precisam de ajuda para comprar remédio. E há os que anseiam apenas por alimento para o almoço.
Enquanto isso, é possível avistar de longe a movimentação nos arredores da estação do metrô. Grande parte procurando emprego, outra parte com a máscara de tecido devidamente ajustada. É a primeira semana de trabalho de Fernando*, e o medo predominante em sua mente é o transporte público estar cheio o suficiente para que o risco de contrair a covid-19 seja muito alto – fato quase dado como certo. Ele terminava esses dias de mau humor, e a primeira coisa que dizia aos filhos ao chegar a casa, em vez de “boa noite”, era “não chegue perto, espere eu tomar banho.” O ritual começava pelos sapatos, deixados à porta, e só terminava após a higienização da chave com álcool em gel. Sua tensão só se comparava à da esposa, Sílvia*, que passava o dia todo tentando equilibrar o home office, as tarefas domésticas e a atenção aos filhos. Quando conseguia arranjar meia hora, revisava com o maior a lição enviada por e-mail pela professora. A filha menor, porém, aproveitava justamente essa meia hora para escapar dos olhares atentos e decorar as paredes com seus belos rabiscos de giz de cera e lápis de cor. Não havia muito o que fazer, a não ser respirar fundo e ter paciência. A casa agora era casa, parquinho, escola e playground. E os amigos deles, por ora, apenas os personagens de desenhos animados. Quando apareciam os colegas de trabalho do pai e da mãe nas reuniões on-line, era uma festa só.
Após uma discussão ou outra nas horas em que o estresse era incontornável, o casal ao menos ainda se percebia como casal. A amiga da esposa, entretanto, vivia outra realidade naquele momento. Mudara para a casa da mãe com sua filha de três anos após compreender, em razão da convivência intensa proporcionada pela quarentena, que seu casamento de sete anos não tinha mais futuro. Ela já andava receosa dessa possibilidade há algum tempo, diante das investidas agressivas de seu ex-marido e do descaso com as necessidades emocionais da pequena. Com emprego estável, sentia-se confiante para seguir em frente. Outra amiga, solteira e – desde o início da crise – sem emprego, morava em um condomínio popular de uma cidade vizinha, apenas com os dois filhos.
- Quase 70 milhões de brasileiros receberam o auxílio emergencial em 2020
- 19 milhões passaram fome no Brasil no fim de 2020
- A taxa de desocupação entre jovens de 18 a 24 anos foi de 29,8% no quarto trimestre de 2020
- 25% das mães tiveram sintomas de depressão, 7% sintomas de ansiedade, 23% sintomas de estresse e 39% sintomas de estresse pós-traumático
- Pesquisa do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) mostrou que 99,3% das escolas brasileiras suspenderam as atividades presenciais durante a pandemia de covid-19
- Dados do Colégio Notarial do Brasil: houve 29.985 separações de janeiro a maio de 2021, um aumento de 26,9% em relação ao mesmo período de 2020
- 4 milhões de brasileiros abandonaram a escola na pandemia, apontou pesquisa C6 Bank/Datafolha
Sobreviver com as incertezas
No mesmo bairro em que morava o casal formado por Sílvia e Fernando, funcionavam diversos estabelecimentos comerciais que revendiam água mineral em galões. Em um deles, uma recepcionista simpática e atenciosa, chamada Ísis*, atendia aos pedidos pelo WhatsApp, de maneira jovial, esbanjando emoticons. A seu lado, estava o filho, Lucas*, de 9 anos, que passara a acompanhá-la no trabalho todos os dias, pois a escola em que estudava havia sido fechada. Ísis fazia parte de uma pequena parcela da população que, em 2020, mantivera seu emprego, uma vez que, desde o começo da pandemia, os serviços essenciais continuaram ativos. O estabelecimento onde trabalhava era uma das poucas portas que permaneceram abertas, enquanto outras fecharam de forma permanente, tais como a loja de presentes e a de atacado de sapatos femininos.
Sua sogra, Elaine*, contraiu o coronavírus após o Natal de 2020 e experimentou, de imediato, uma revolta que deu lugar à fé. “Desde o início dessa pandemia, tomo os cuidados de distanciamento e limpeza. Porém, meu irmão, além de minha cunhada com sua sobrinha, vieram do interior para me visitar. Em família, sentamo-nos próximos uns dos outros e conversamos. Quando retornaram para suas casas, no dia 29, receberam a notícia de que um parente que havia passado o Natal com eles, antes de me visitarem, estava com covid. Imaginei na hora que, se tiveram contato com esse parente, certamente teriam transmitido a doença a mim. A essa altura, eu já estava com tosse seca e sintomas de gripe. Decidi fazer o teste para covid-19 e deu positivo.” Aos 55 anos, viu a febre aumentar para mais de 39°C em apenas três dias. Entre o susto e a cura, foram nove dias.
A amiga de Ísis, Patrícia*, não teve febre e falta de ar, mas sim uma série de sintomas bem diferentes, e era essa incerteza que tornava tudo mais estressante. Estava com uma dor de cabeça persistente, que durou mais de 20 dias, muito sono e pouca secreção, percebida no exame de covid-19 pela via nasal. O diagnóstico saiu dez dias após o primeiro sintoma e, sendo uma doença que pode ter um desfecho rápido, a saída foi conviver com a incerteza sobre a saúde. “No dia seguinte à consulta, após tomar a medicação indicada no consultório, senti meus braços e pernas formigando muito. Achei que ia morrer.”
Sintomas diferentes. Ou ausência deles. Incertezas sobre a volta da economia. Expectativa sobre a volta às aulas. Famílias sem saber se conseguirão pagar as contas, alimentar seus filhos. Crianças afastadas do convívio social. Mães sobrecarregadas. Pais sobrecarregados. Luto nas famílias dos quase 500 mil mortos. Medo de se aproximar das pessoas nas filas, mesclado ao anseio de participar do próximo Carnaval. A tentativa de se manter em pé com o “novo normal.” Diversas instituições de ensino e pesquisa no mundo todo tentam, neste momento, compreender os impactos desse caos para a sociedade, em curto ou em longo prazo. Na Unifesp, muitos estudos integram essa busca – como veremos a seguir.
(Imagem: Roberto Parizotti / FotosPúblicas)
Família e sociedade