Por Daniel Huertas*
(Foto: https://pixabay.com/pt/caminhão-serviço-pesado-trator-2920533/)
Cinco dias com filas de caminhões parados ao longo de pontos estratégicos das principais rodovias do país foram suficientes para desencadear o início do caos, demarcado, no primeiro momento, pelo desabastecimento de combustíveis. E a partir daí, como num “efeito dominó”, vieram outros problemas. Mas como compreender, de fato, a realidade do movimento? E como relacioná-lo com a conturbada situação política que atravessa o país desde as manifestações de junho de 2013, que culminaram com o golpe que derrubou a presidente Dilma Rousseff?
Nos últimos dias, houve uma enxurrada de análises, mas pretendo contribuir a partir de uma constatação já exposta cinco anos atrás em minha tese de doutorado, uma espécie de prenúncio do que estaria por vir: “No horizonte do autônomo delineia-se um momento complicado e difícil, inerente à própria situação de transição por que passa o transporte rodoviário de carga. Precárias condições de trabalho, redução do valor dos fretes, falta de segurança nas estradas, alterações na forma de pagamento e jornada de trabalho abusiva são alguns pontos que precisam estar na pauta de debate dos autônomos. (...) dado que sua situação socioeconômica se torna precária e caminha para uma pauperização generalizada, como pudemos constatar em campo, é razoável supor que alguma forma mais aguda de reivindicação se repita com maior frequência”.
Em outras palavras, a real dimensão do fenômeno grevista vai muito além da variável “preço do óleo diesel”. E ficam mais perguntas do que respostas. Houve locaute? Aqui concordo com a opinião do professor Ricardo Antunes, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), em entrevista à BBC Brasil, para quem o atual movimento é um misto de greve e locaute. O próprio governo federal já se deu conta deste fato e prometeu investigá-lo – mas tenho dúvidas da eficácia desta questão. Mas se houve de fato locaute, quem estaria por trás desta prática proibida pela Constituição e por qual motivo?
E os grevistas, quem são? Motoristas assalariados/comissionados (sejam de uma empresa transportadora ou de estabelecimentos industriais, agropecuários e/ou comerciais que possuem frota própria e, portanto, não contratam o serviço de transporte) ou caminhoneiros autônomos? Se autônomos, agregados ou independentes? Segundo o artigo 4º da lei 11.442/07, que regulamenta o transporte rodoviário de carga (TRC), os autônomos podem ser denominados como agregado, “aquele que coloca veículo de sua propriedade ou de sua posse, a ser dirigido por ele próprio ou por preposto seu, a serviço do contratante, com exclusividade, mediante remuneração certa”, ou como independente, “aquele que presta os serviços de transporte de carga de que trata esta Lei em caráter eventual e sem exclusividade, mediante frete ajustado a cada viagem”.
Estamos falando, portanto, de uma classe com agentes completamente distintos na cadeia do TRC, pois a maior parte das empresas transportadoras (pessoa jurídica) opera em colaboração com autônomos agregados e/ou independentes (pessoa física), subcontratando-os. Aí reside uma “cadeia de subcontratações” bastante complexa do ponto de vista operacional e territorial que, muitas vezes, também esconde uma perversidade social, pois funciona no limite de uma tênue linha de interação e conflito entre transportadoras e autônomos que acaba demarcando o papel de comando das grandes empresas no que diz respeito à precificação do frete, escala de atuação e natureza da carga transportada.
Ademais, é preciso esclarecer que, no âmbito dos autônomos, evidencia-se uma situação de débil representatividade sindical, fator que compromete a sua luta política por melhores condições de trabalho. Estamos falando de um universo com ampla fragmentação social e ideológica, de natureza itinerante, dispersa pelo território nacional, incapaz de compreender e gerenciar de forma eficaz o balanço contábil de sua atividade, com fraco histórico de reivindicações e suscetível às formas clássicas de cooptação do empresariado. Um quadro permeado por associações sinistras com interesses obscuros, que sequer ostentam carta sindical, mas que se autoproclamam porta-vozes da categoria. A Associação Brasileira dos Caminhoneiros (Abcam), por exemplo, é associada da Confederação Nacional do Transporte (CNT), o feudo do empresariado do setor, desde 2003.
Para tornar o quadro mais nebuloso, é necessário agregar ao entendimento da situação dos caminhoneiros os baixos fretes praticados no país (apesar do discurso hegemônico contrário); a também polêmica e complexa visão sobre a matriz de transportes brasileira; a atual política de preços da Petrobrás, que se atrela ao desejo explícito da direita entreguista; e o cabo de guerra político que impera frente às eleições de outubro, deixando o governo ilegítimo contra a parede.
Desestabilizar o país com o desabastecimento geral (a pior situação excluindo-se o estado de guerra, civil ou por ingerência externa) poderia servir de legitimidade para uma intervenção militar? Vejam que vários setores do movimento grevista exibiram um discurso nesse sentido, consciente ou inconscientemente – não sabemos, pois nas entranhas do WhatsApp® percolam grupos e pessoas com interesses sinistros, muitos dos quais de extrema-direita. Tudo isso para dizer que a recente greve dos caminhoneiros evidencia o quão complexo é o Brasil. A única certeza admitida é a escalada da precarização das condições de vida e trabalho dos caminhoneiros autônomos. Todo o resto continua em aberto e encoberto por dúvidas e especulações.
*Professor adjunto do Departamento Multidisciplinar do Campus Osasco da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e autor do livro Território e circulação: transporte rodoviário de carga no Brasil (Ed. Unifesp, 2018).
As opiniões expressas no artigo não representam a posição oficial da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).