Terça, 19 Novembro 2019 10:45

Opinião: Migração e interculturalidade nos tempos atuais

Os contatos interculturais apresentam desafios subjetivos profundos tanto para quem migra como para as sociedades que recebem os novos grupos

Por Sylvia Dantas*

Imagem de um globo terrestre colorido
(Imagem ilustrativa)

Adentrar um outro universo cultural não é tarefa fácil. Os contatos interculturais apresentam desafios subjetivos profundos tanto para quem migra como para as sociedades que recebem os novos grupos. Interculturalidade é um termo que assinala uma dimensão de interação, contato entre pessoas de culturas distintas e de universos simbólicos compartilhados. Os estudos interculturais apontam que as diferenças culturais são em geral antes um fator de conflito do que de sinergia.

Cabe lembrar que a mudança para outra sociedade e cultura coloca em xeque o modo de ser, o modo de ver o mundo, o modo de se ver e o modo de se relacionar, trazendo à tona a questão de quem se é. Esse desconcerto ocorre, pois as pessoas são socializadas em uma determinada cultura e isto significa uma incorporação marcante de formas de sentir, de pensar e de agir que envolvem processos de identificação intensos. E quando as pessoas vão morar em outra cultura isso representa uma ruptura expressiva desse quadro de referência, de sentido e pertencimento.

A mudança de país impõe ao migrante múltiplas perdas já que deixa para trás familiares, amigos, trabalho, ambiente físico, língua, normas sociais, locais conhecidos e a memória social. Além disso, tem de ajustar-se a um novo local, aprender novos códigos sociais, pois sua forma de agir não mais corresponde ao entorno, o que antes era parte da rotina, torna-se um desafio diário. Estar entre dois mundos culturais significa adentrar diferentes jogos de espelho realizados pelos outros. Esses reflexos podem afetar tanto positivamente quanto negativamente o sentimento de competência e valorização do self que aliados ao processo de reflexão e observação simultâneas de si mesmo são a base da formação identitária.

Assim, vemos que os desafios são imensos e tornam-se maiores quando o país receptor não está preparado para essa realidade cada vez mais constante no mundo atual. A maior parte dos imigrantes fará uso das instituições públicas do país receptor como instituições educacionais, postos de saúde, hospitais, órgãos responsáveis pela documentação requerida, órgãos de assistência social, e assim por diante.

No Brasil, observamos iniciativas importantes por parte, principalmente, de associações civis, organizações não governamentais e instituições públicas quando geridas por funcionário sensível a imigração, mas que constituem trabalhos como que pontuais diante a demanda atual. O país carece de uma arquitetura institucional de acolhimento. São Paulo, onde há o maior número de imigrantes é a única cidade brasileira a adotar uma política municipal de imigração, fruto da mobilização dos movimentos sociais de imigrantes e organizações sociais e a gestão municipal de 2013 a 2016.

A motivação da partida, o momento de chegada e ajuste ao novo ambiente envolvem processos psicológicos específicos a essa situação. Importante destacar que quando dizemos isso apontamos que qualquer pessoa que passe por essa experiência vivenciará processos de aculturação psicológica e estresse de aculturação. Assim, o imigrante ou o refugiado não são os problemáticos ou o problema a ser tratado. Problema é a sociedade não estar em sintonia com os novos tempos.

A compreensão desses processos é urgente para que se realize um trabalho preventivo nas instituições que recebem essa população. Contudo, a fim de que isso seja possível vemos como necessário uma mudança de mentalidade e nesse sentido nosso trabalho de formação de profissionais que lidam com essa temática se pauta em uma abordagem intercultural crítica. Vejamos o que se entende por interculturalidade.

Dependendo da área de conhecimento, país, continente ou época o termo contém diferente nuances, sendo portanto, polissêmico. Na educação, a educação intercultural foi inicialmente formulada pela Unesco em 1978, propondo uma “educação para a paz” e “prevenção ao racismo”. A definição vai mais além quando importantes pensadores da área colocam que a interculturalidade só se produz quando um grupo começa a entender e assumir o significado que as coisas e os objetos têm para os outros. A maioria dos pesquisadores ocidentais ou ocidentalizados projetam um pensamento causal e “lógico” sobre as manifestações de outras culturas que não corresponde à autocompreensão da população local e quando ultrapassa seu próprio campo, pode destruir o universo simbólico de outras culturas.

A interculturalidade enfoca a necessidade de privilegiar o diálogo, a vontade da inter-relação e não da dominação. Nesse sentido, a partir da filosofia propõe-se uma visão intercultural crítica que implica na descolonização dos saberes, a favor de um equilíbrio epistemológico no mundo. Na área do direito, interculturalidade também não se limita ao necessário reconhecimento do outro, mas a resistência aos processos de construção de hegemonia e criação de mediações políticas, institucionais e jurídicas que garantam reconhecimento e transferência de poder.

Diferente do multiculturalismo, a interculturalidade crítica assinala uma política cultural baseada não simplesmente no reconhecimento ou na inclusão, mas também dirigida a uma transformação estrutural e sócio-histórica. A interculturalidade crítica está vinculada a decolonialismo que desde e com os povos indígenas e afrodescendentes propõe uma nova razão e humanidade que reverta o eurocentrismo e colonialismo do conhecimento, o uso da etnia branca e ocidental como padrão e a razão sobre o sentir-existir como signo de humanidade assim como a colocar o homem sobre a natureza.

Na Psicologia, a Psicologia Intercultural surge nos anos 60 a partir da consciência de que grande parte dos estudos na Psicologia são formulações etnocêntricas, já que baseadas em grupos ou amostras de pessoas da América do Norte ou da Europa, países hegemônicos ou centrais quanto à economia e política globais. Teorias psicológicas que não representam a grande diversidade da população mundial, e que são generalizadas para todos os seres humanos. Produções e associações de pesquisadores de língua inglesa se desenvolvem ao lado de produções e associações francófonas de psicologia intercultural. O campo é amplo e sofreu muitas mudanças. O que o unifica é a proposição de incorporar a cultura como fator fundamental na conduta humana em contraste com a longa rejeição por parte da psicologia da dimensão cultural. O denominador comum corresponde à perspectiva universalizante da suposição de que processos psicológicos são compartilhados por todos os humanos, mas sua forma de desenvolver-se e expressá-los variam conforme a cultura.

A chegada de novos grupos para o país e seu impacto precisa ser abordado e compreendido a fim de que o Estado possa implementar políticas voltadas para medidas preventivas que propiciem um contato pautado em conhecimento e compreensão do processo migratório.

Infelizmente, temos visto em países de governos de extrema-direita a criminalização do imigrante. O imigrante e refugiado tornam-se bodes expiatórios em épocas de crise econômica e política, ou seja, são vistos como objeto de culpa do sistema social, sendo a eles atribuída a causa do desemprego e de outros problemas sociais. Dessa forma, aspectos dos sistemas sociais, como a exploração capitalista e a competição gerada por esta, são ocultados do público a fim de não gerar seu possível questionamento.

Em alguns países, como no Canadá, notamos que a política migratória envolve todo o processo de inserção do migrante e refugiado, como aprendizado da língua local, verba para manutenção, moradia, inserção no mercado de trabalho, educação e assistência à saúde.

É importante entender que todos temos o direito de ir e vir, um direito fundamental que está em nossa constituição e na declaração de Direitos Humanos das Nações Unidas. O contato entre culturas, com outras formas de entender a vida ao invés de ser uma ameaça é a possibilidade entendermos o quanto o ser humano é criativo, nada está dado e temos uma oportunidade de ampliar nossos horizontes para um bem viver de todos.

*Professora e coordenadora do curso de Especialização Saúde Mental, Imigração e Interculturalidade da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

As opiniões expressas no artigo não representam a posição oficial da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

 

 

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