Por Nelson Sass**
(Imagem ilustrativa)
Na mitologia grega, Panaceia, filha de Asclépio, é a deusa que cura todos os males. Tal referência surgiu em minhas reflexões ao tomar ciência da lei que instituiu a cesárea a pedido como um direito legal das gestantes nas maternidades do Estado de São Paulo.
As bases que norteiam este documento devem ser louvadas, pois contêm a exigência de oferta de assistência obstétrica segura e digna para todas as parturientes e a intenção de contribuir para reduzir mortes maternas e problemas neonatais graves, como asfixia e morte do recém-nascido (RN).
Também devem ser exaltados os princípios bioéticos elencados no texto, em que os direitos de todas as gestantes devem ser respeitados. Eu entendo que, neste rol de direitos fundamentais, está implícita a garantia de oferta de uma linha de cuidados ao longo da assistência pré-natal, com abordagem de aspectos relacionados à parturição, informação sobre os riscos inerentes ao processo, bem como as melhores evidências científicas que apoiam as decisões clínicas e cirúrgicas de modo a oferecer segurança máxima para mãe e bebê.
Para o sucesso dessa missão, o vínculo e o acolhimento das instalações e das equipes assistenciais são fundamentais para proporcionar, além de segurança técnica, uma experiência positiva para a mulher e sua família, compreendendo que, do ponto de vista emocional, esse é um momento marcante.
Segurança técnica resulta de experiência clínica e informações sólidas para tomadas de decisões. Cabe então a reflexão: a cesárea a pedido é de fato mais segura que o parto normal? Para responder, apresento como referência o mais recente boletim (761/2019) do American College of Obstetricians and Gynecologists (ACOG) [1]. Esse documento reconhece essa situação na prática clínica e pontua de forma objetiva que na ausência de indicações para a cesárea, estabelecer um plano de parto vaginal constitui uma alternativa segura e apropriada, que deve ser encorajada.
Aponta que existem riscos durante a cesárea e cita um estudo canadense [2] que, ao longo de 14 anos, comparou as taxas de complicações entre pacientes submetidas à cesárea a pedido versus a partos vaginais. A cesárea foi associada a maior risco de problemas maternos graves (23,7 × 9 por mil), mais chances de parada cardíaca (5,1 vezes), histerectomia (3,2 vezes), infecção puerperal grave (3 vezes), tromboembolismo (2,2 vezes), complicações anestésicas (2,3 vezes) e hemorragia seguida de histerectomia (2,1 vezes). Para mulheres que planejam um número maior de filhos, também devem ser considerados riscos adicionais de ruptura uterina, placenta prévia e acretismo placentário, uma complicação hemorrágica gravíssima, relacionada com altas taxas de morbidade e mortalidade materna.
Além das informações do boletim citado, também existem referências de associação negativa entre a cesárea e a amamentação exclusiva até o sexto mês de vida, com possíveis implicações para a saúde do RN. [3]
Também cabe refletir sobre a associação entre mortes materna e “imposição do parto normal” como cita o texto da lei. Os indicadores relacionados com mortes maternas transcendem a área médica, pois têm estreita relação com a qualidade de vida e da oferta de assistência adequada para população. Além disso, estudos das causas relacionadas identificaram problemas independentes do parto, como a pré-eclâmpsia ou o abortamento inseguro.
Além disso, deve-se assinalar que a assistência obstétrica qualificada reduz o risco de hemorragias puerperais ou parto distócico, proporcionando ações em tempo oportuno para resguardar os interesses da mãe. A cesárea, evidentemente, constitui um grande avanço para diminuir riscos maternos e fetais, porém deve ser indicada de modo adequado, sem razão médica aceitável para considerar que ela possa substituir um processo fisiológico singular, como o parto normal. Em suma, qualquer tipo de parto, desde que indicado de forma judiciosa, a partir de evidências clínicas consistentes, e monitorado por equipe competente, resultará sempre em benefícios para a mãe e o bebê.
Um artigo publicado por Leal et al.4 em 2019, nos Cadernos de Saúde Pública, descreve os impactos de dois programas (Rede Cegonha e Nascer Saudável) aplicados em maternidades públicas e privadas para promoção da qualidade da atenção obstétrica. Detectou-se, entre os anos de 2011 e 2017, um aumento significativo do número de mulheres com acesso à tecnologia apropriada para o parto e redução de práticas prejudiciais, inclusive cesárea anteparto.
Todavia, deve-se ponderar um dado interessante: como explicar as taxas de cesárea anteparto extremamente elevadas nas instituições privadas? Serão todas a pedido? Esses números são suficientes para inferir que existe um padrão superior de qualidade em relação ao que se verifica na assistência pública? As autoras concluem, e eu concordo, que políticas públicas bem conduzidas podem mudar a atenção ao parto, reduzindo desfechos maternos e neonatais negativos. Assim, há de se reconhecer que o Brasil, nos últimos anos, demonstra progressos na assistência materna, a partir de esforços direcionados para a promoção da autonomia das mulheres e empoderamento de suas decisões, bem como para redução de intervenções desnecessárias e frequentemente prejudiciais, o que inclui a diminuição significativa de cesáreas em todos os cenários.
Evidências científicas robustas apoiam o artigo 3.º da lei aqui referida:
[…] é ético o médico realizar a cesariana a pedido, e se houver discordância entre a decisão médica e a vontade da gestante, o médico poderá alegar o seu direito de autonomia profissional e, nesses casos, referenciar a gestante a outro profissional.
Portanto, é possível afirmar que profissionais, cujas decisões são baseadas em evidências consistentes e trabalham sob os princípios da beneficência/não maleficência, obterão respaldo para não realizar o procedimento. Entendo que esta interpretação também pode ser aplicada aos protocolos assistenciais de maternidades comprometidas genuinamente com o princípio: primum non nocere*.
Ademais, é importante refletir sobre as possíveis razões que fundamentam uma cesárea a pedido: receio das dores do parto? Má experiência obstétrica anterior? O parágrafo único do artigo 2.º da lei citada pode contorná-las: “garante-se à parturiente o direito à analgesia”.
Como já mencionado, essa é uma questão essencial no aconselhamento ao longo da assistência pré-natal. Toda gestante tem o direito de ser ouvida quanto a anseios e se sentir acolhida, obtendo orientações claras com base no melhor conhecimento científico, além de receber garantia de que diversas alternativas, inclusive a anestesia, estarão disponíveis para atender suas necessidades, se julgar necessário. Isso influenciará positivamente sua sensação de confiança e segurança.
As estruturas assistenciais e as equipes responsáveis pela assistência devem estar preparadas para atender de imediato em um modelo que poderia ser chamado de “analgesia a pedido”. Esse exemplo não se resumiria apenas à anestesia, mas também a suporte emocional e outras providências capazes de garantir o conforto da parturiente e tornar sua experiência singular, segura do ponto de vista técnico e emocionalmente positiva. Todo esse conjunto de ações é de competência daqueles que têm a responsabilidade de gerir serviços, em todos os níveis, sendo que os resultados desta política deveriam ser monitorados por meio de pesquisa de satisfação e auditados de maneira judiciosa.
Finalizo essas reflexões com alguns aspectos filosóficos tendo em vista que o fenômeno da parturição humana transcende os saberes técnicos, pois agrega também outros conhecimentos e valores culturais. Entendo que a construção de um ambiente social que promova o desenvolvimento educacional para a inclusão social, garanta a boa governança e priorize o desenvolvimento sustentável e inclusivo de toda a sociedade, terá como resultado um ambiente de segurança global na vida das pessoas, incluindo a assistência obstétrica.
Por isso, entendo que a lei proposta, ainda que possa causar polêmica, abre novas oportunidades de reflexão sobre a assistência obstétrica e induz políticas na direção de qualificar a assistência ao parto, tendo como ponto central a garantia de atendimento adequado e seguro para todas as mulheres brasileiras. Trabalhar para a implantação desse cenário certamente terá efeitos positivos na percepção da assistência obstétrica no Brasil, fazendo com que a cesárea a pedido seja exceção absoluta.
*Nota do autor: termo latino da bioética que significa “primeiro, não prejudicar”. Também conhecido como princípio da não maleficência.
**Professor associado do Departamento de Obstetrícia da Escola Paulista de Medicina (EPM/Unifesp)
Referências bibliográficas:
- Cesarean Delivery on Maternal Request. ACOG Committee Opinion №761. Obstet Gynecol. 2019;133(1):e73-e77.
- Liu S, Liston RM, Joseph KS, Heaman M, Sauve R, Kramer MS et al. Maternal mortality and severe morbidity associated with low-risk planned cesarean delivery versus planned vaginal delivery at term. CMAJ. 2007;176(4):455–60.
- Prior E, Santhakumaran S, Gale C, Philipps LH, Modi N, Hyde MJ. Breastfeeding after cesarean delivery: a systematic review and meta-analysis of world literature. Hyde Am J Clin Nutr. 2012;95:1113–35.
- Leal MC, Bittencourt AS, Esteves-Pereira AP, Ayres BVS, Silva LBRA, Thomaz EBAF et al. Progress in childbirth care in Brazil: preliminary results of two evaluation studies. Cad Saúde Pública.2019;35(7):e00223018.
Artigo originalmente publicado em: https://www.academiademedicina.com.br/genmedicina/cesarea-a-pedido-a-panaceia-para-a-assistencia-obstetrica-do-brasil/
As opiniões expressas neste artigo não representam a posição oficial da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp)