Por Luigi Biondi*
(Imagem ilustrativa)
Na tarde do dia 27 de janeiro de 1945, uma patrulha avançada da 322ª divisão de fuzileiros do Exército Vermelho da União Soviética entrava no campo de extermínio de Auschwitz II Birkenau. Cerca de 7.000 deportados ainda estavam no campo, sobretudo crianças e doentes, e por isso foram deixadas ali, pois alguns dias antes os soldados da SS, força armada alemã, corpo de elite do Partido Nazista, que dirigia os campos de concentração, havia levado embora todos os internados que podiam caminhar em direção a outros campos, em uma chamada Marcha da Morte. Estávamos em pleno inverno da Europa centro-oriental, com neve, gelo e temperaturas frequentemente abaixo de zero. O exército vermelho estava realizando o avanço mais profundo dentro da Alemanha: faltariam ainda três meses para o fim derradeiro do Reich alemão e do poder nazista.
Auschwitz não foi o primeiro campo de extermínio a ser libertado, uma vez que os soviéticos já haviam entrado nos campos de Majdanek e Belzec no verão de 1944, mas os alemães não haviam deixado sobreviventes e tinham destruído boa parte das instalações. O campo de concentração de Birkenau foi o principal local de aprisionamento e progressivo extermínio construído pelo governo alemão com a finalidade de eliminar para sempre os judeus europeus — a chamada “solução final do problema judaico”-, embora muitas milhares de pessoas que não eram judeus, de diversos países europeus ocupados pelos alemães, da França, Itália, Holanda, até a Rússia, foram também aprisionadas e mortas ali: ciganos, homossexuais, prisioneiros de guerra, majoritariamente poloneses e soviéticos, padres católicos, e muitos opositores religiosos e políticos, em grande parte social-democratas e comunistas, inclusive alemães.
O campo de Auschwitz era um complexo de campos de concentração, trabalho e extermínio, próximos entre eles, localizados nas cercanias da cidade polonesa de Oswiecim, anexada à Alemanha logo no começo da Segunda Guerra Mundial, mudando o nome para sua versão alemã, Auschwitz. Foi outrora uma pequena, mas próspera cidade do multiétnico Império Austro-Húngaro, como tantas outras, um lugar que foi, ao longo dos séculos XVIII e XIX, um centro de encontro de diversidades culturais, povoado por poloneses, alemães e judeus da Europa Oriental de língua alemã iídiche, que ali conviveram pacificamente. Esse tipo de mundo havia sido transformado após o vendaval nacionalista da Primeira Guerra Mundial (1914–18), mas sobretudo pelo nacionalismo radical alemão que se firmou com o avanço do exército nazista em 1939, na eclosão da Segunda Guerra Mundial (1939–45). Aquela Auschwitz-Oswiecim e sua região já não existia mais, substituída por uma fábrica de morte, centrada nos grandes subcampos de Auschwitz I, Birkenau e Monowitz, onde foram mortos mais de um milhão de pessoas, quase totalmente judeus, egressos de todas as partes da Europa.
O governo alemão manteve entre 1940 e 1945 quase 15.000 campos de concentração, trabalho, aprisionamento ou de extermínio, localizados sobretudo nos ex- territórios da Polônia ocupada. Nesses campos e em ações diversas de repressão sobre a população durante a guerra, foram assassinadas pelos nazistas ao menos 15 milhões de pessoas. Dessas, mais de 42% eram judeus, 25% civis eslavos (sobretudo russos, poloneses e ucranianos), 20% soldados soviéticos, 10% opositores políticos.
Como foi possível o horror desse imenso genocídio programado é a pergunta e a reflexão que muitos fazem ainda hoje. Diversos historiadores, seguindo as reflexões de Hannah Arendt, explicam isso com a força de um poder totalitário nacionalista e racista que tornou o ato de dar a morte e a violência generalizada e desumana em banalidade cotidiana, onde todos, se imbuídos dos valores racistas ou pelo medo da repressão do Estado e dos seus superiores, podem contribuir inconsciente ou cientemente. Um poder sem controle, autoritário, ditatorial, pode transformar o ser humano em homicida serial, indiferente ao sofrimento alheio.
Daniel Goldhagen e muitos outros historiadores evidenciam uma cultura antissemita e geralmente racista (mas também antissocialista) subjacente na Europa cristã e liberal que conseguiu passar do estado latente da indiferença e agressão verbal para violência generalizada, graças à presença de ditaduras e Estados autoritários, com sociedades privadas das defesas do direito e justiça igual para todos, como foi a Alemanha nazista.
Os historiadores, em geral, concordam sobre o que chamamos de “possibilidade histórica do genocídio”, considerando o contexto do momento, aquela conjuntura do conflito militar e da ocupação, por parte da Alemanha e de seus aliados (Itália, Hungria, Bulgária e Romênia) de quase toda a Europa, o que tornou operativo um programa de assassinato em massa dos seres humanos diferentes das normas estabelecidas pelo governo nazista, seja por motivos étnicos, religiosos ou políticos, tendo os judeus como os principais alvos de aniquilamento físico imediato.
A guerra e a ocupação militar, além de acirrar os conflitos entre ocupantes e ocupados, colocou os alemães também em contato com os países da Europa oriental, majoritariamente eslavos e onde também residia a maior parte da população judaica da Europa. Ambos, eslavos e judeus, eram considerados pelos nazistas racialmente inferiores, levando-os então a pensar programas mais efetivos de subjugação, aprisionamento, discriminação e eliminação progressiva, com o objetivo de povoar essas regiões somente com alemães. O que ocorreu de forma planejada somente a partir de 1942, após a Conferência de Wansee, que reuniu em Berlim diversas autoridades do partido nazista e do governo, para a realização da chamada solução final e a ativação dos campos de extermínio, planejados para a eliminação física imediata em massa. De fato, desde 1933 (ano de início do governo de Hitler) até o começo da guerra, o sistema de campos de concentração havia sido montado na Alemanha para aprisionar e controlar basicamente os opositores políticos, não estando claro ainda quais medidas definitivas teriam sido tomadas para expulsar ou eliminar os judeus alemães, que eram, no país, uma pequena minoria.
Os interesses capitalistas e a crise econômica recessiva que antecedeu a guerra também jogaram um papel importante na implementação da política de genocídio, pois empresas alemãs de todo tipo se aproveitaram cientemente do trabalho escravo dos deportados nos campos de concentração. Todos os adultos hábeis para o trabalho eram empregados em fábricas ou canteiros de obras, em condições de trabalho desumanas, morrendo dentro de um ou dois anos por inanição e cansaço. “Os mataremos de trabalho”, disse certa vez Himmler, o chefe da SS. Ao lado do campo de Monowitz, por exemplo, os deportados construíram o maior estabelecimento químico da Europa da época, de propriedade da empresa IG Farben.
Crianças, idosos, doentes e fracos fisicamente eram eliminados dentro de poucos dias ou até horas desde a chegada ao campo, em câmaras de gás, e seus corpos queimados, sendo que algumas crianças eram “salvas” em um primeiro momento por serem selecionadas como cobaias para todo tipo de experiência médico-científica.
A decisão de tornar Auschwitz e outros campos de extermínio um patrimônio memorial material foi um passo importante inicialmente das nações que hospedaram os campos e finalmente pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco, 1975) para nunca esquecer os perigos das ditaduras. Trata-se de monumentos contra o horror da supremacia racial e social, qualquer que ela seja. Uma advertência de que não existem povos superiores e nações abençoadas.
Atualmente, a crise capitalista global recessiva e os novos fluxos migratórios em direção aos países mais ricos, o acirramento do desequilíbrio global entre países abastados e pobres ou caracterizados por desigualdades internas, o desemprego juvenil massivo na Europa e o desmantelamento progressivo dos estados de bem-estar social com o desamparo frente aos efeitos negativos do mercado têm provocado um ressurgimento dos egoísmos sociais e também dos nacionalismos radicais, contemporaneamente chamados de “soberanismos”. Pensava-se que a tragédia da Segunda Guerra Mundial, com o genocídio racial e social, e as políticas educacionais do pós-guerra voltadas para a tolerância e o respeito da diversidade na igualdade tivessem afastado de vez os perigos do racismo violento, mas recentemente, sobretudo na Europa e nos EUA, houve um retorno das ações antissemitas, nacionalistas, racistas e antidemocráticas em geral, cada vez mais difusas.
Com o desaparecimento das gerações que experimentaram o conflito, a memória sobre o genocídio precisa ser constantemente alimentada para se tornar patrimônio histórico comum.
Por isso, tornou-se também mais forte a resposta institucional, sobretudo das organizações internacionais, de reafirmação do Dia da Memória, instituído simbolicamente desde 2005 para ocorrer na data da libertação de Auschwitz. Nesse ano de 2020, por ocasião do 75º aniversário da liberação do campo, o Parlamento Europeu dedicou uma especial sessão solene de lembrança e em Jerusalém houve um encontro internacional extraordinário dos chefes de Estado no Yad Vashem, o centro mundial da memória do holocausto.
Afinal, como disse o escritor judeu italiano Primo Levi, sobrevivente do campo de Auschwitz III Monowitz: “se aquele horror aconteceu, ele é real e possível, e pode acontecer de novo”.
*Docente da Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (EFLCH/Unifesp) - Campus Guarulhos
As opiniões expressas neste artigo não representam a posição oficial da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp)