Quarta, 04 Março 2020 13:37

Opinião: A saúde mental nas grandes cidades

Por Jair de Jesus Mari*

Aglomeração de pessoas em rua de comércio popular
(Foto: Alex Reipert/Imagem ilustrativa)

O mundo está se tornando mais urbanizado, trazendo ganhos e perdas para a saúde, em particular para a saúde mental. A vida na cidade oferece oportunidades de emprego e de educação, mas expõe a população a um contato mais direto com a violência e eventos imprevistos, como inundações, abalos sísmicos, epidemias e acidentes de trânsito. As grandes cidades atraem cada vez mais fluxos imigratórios, formando subgrupos étnicos e culturais muitas vezes despreparados para enfrentar os desafios profissionais que a vida urbana exige. As grandes cidades do planeta tendem a ter elevada concentração de poluentes no ar, apresentam políticas facilitadoras para abuso de substâncias e uso generalizado de internet e smartphones que substituem gradativamente o contato humano presencial. A internet que veio para nos conectar, pode estar nos levando a níveis imprevistos de solidão e isolamento. Do ponto de vista social e político, novas frentes de nacionalismo, aumento do feminicídio, intolerância religiosa e de gênero e risco de novas epidemias aumentam a sensação de tensão nas grandes cidades. Como todas estas mudanças afetam a saúde mental das populações em grandes centros urbanos do planeta?

A evidência epidemiológica disponível sugere que a prevalência de depressão aumentou desde o século passado, especialmente nas últimas décadas. Estudos de Coortes recentes demonstram um aumento da incidência da depressão e consequente aumento da prevalência ao longo da vida.

Pode-se afirmar que vivemos uma epidemia da depressão. Ambientes competitivos, a desigualdade social e a solidão são os principais fatores da cultura ocidental moderna relacionada ao aumento das taxas de transtornos mentais, incluindo-se a depressão. Os humanos se tornaram mais bem nutridos (com porcentagem importante de subnutrição nas grandes cidades, mas com explosão da obesidade), sedentários, com baixa exposição à luz solar; eles estão com insônia e privação do sono, vivendo em ambientes altamente competitivos e com aumento do isolamento social.

O trauma quando precoce, onde quer que aconteça, terá um efeito pleiotrópico na depressão, transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) e psicose. O trauma precoce provoca uma alteração da função inflamatória, podendo afetar o funcionamento dos neurocircuitos cerebrais e, portanto, tornar os humanos mais vulneráveis ​​ao desenvolvimento de transtornos mentais graves na vida adulta.

No entanto, necessita-se identificar se as grandes cidades são, de fato, prejudiciais à saúde mental. Os locais urbanos sempre foram vistos como superpovoados, violentos e poluídos, com deficiência de saneamento básico. Mas isso pode estar mudando nas grandes cidades, com diferentes velocidades nas diversas áreas geográficas do planeta. Alguns locais urbanos oferecem hoje em dia melhores condições de moradia, combinadas com áreas verdes e espaços de lazer, que podem estar mudando uma percepção concebida de que há uma associação generalizada entre urbanidade e saúde precária. O aumento da depressão pode não ser restrito aos grandes centros urbanos, porque vai depender muito do tipo de área que a pessoa se desenvolve, uma vez que os grandes centros urbanos se dividem em áreas com recursos e espaços de muita carência e violência. Podemos dizer que as grandes cidades são formadas por agrupamentos de subpopulações, que contrastam riqueza e pobreza.

Os dados epidemiológicos sugerem que os grandes centros urbanos podem ser mais perigosos para as mulheres. Nestes lugares, as mulheres estão mais expostas a eventos traumáticos e violência, além de serem mais vulneráveis ao desenvolvimento de transtornos mentais do que os homens, quando submetidas a eventos adversos traumáticos. O risco maior para as mulheres é mais evidente nos países de baixa renda, onde são frequentes os comportamentos associados ao machismo, como as agressões físicas e sexuais, a violência doméstica, principalmente quando habitam áreas sociais carentes e negligenciadas. No meio urbano, o uso de cannabis e outras drogas é mais permissível e a sua interação com a urbanidade e maior frequência de traumas podem estar contribuindo para um incremento de estados psicóticos, embora esta interação de fatores não esteja tão bem elucidada, sendo sempre muito importante a vulnerabilidade genética das pessoas que desenvolvem estes distúrbios na vida adulta.

O reconhecimento de que a maioria dos casos psiquiátricos têm início na adolescência coloca a escola como um lugar potencial para a promoção e prevenção da saúde mental das populações nas grandes cidades. É essencial uma interlocução dos sistemas de saúde e escolar na implementação de programas que possam promover ambientes educacionais acolhedores para mitigar fatores de risco conhecidos, como o assédio moral e o bullying. Estes programas, quando bem implementados, podem abrandar perigos para uma variedade de comportamentos disfuncionais, como automutilação, distúrbios alimentares, abuso de substâncias e suicídio. O que funciona é o ensino de valores escolares e comportamentos positivos, e o que não funciona é a crença de que os estudantes devem receber sempre medidas punitivas e negativas, a qualquer momento e qualquer caso.

A introdução da internet, um facilitador para a vida, teve um impacto na saúde mental, com o aumento da frequência de transtornos associados a jogos on-line e o uso aditivo da internet conexos a um retraimento social patológico. No Japão, foi descrita uma nova síndrome, Hikikomori, na qual as pessoas apresentam um retraimento social de pelo menos seis meses, com uso abusivo da internet, sofrimento psicológico significativo e prejuízo funcional. A síndrome pode estar associada à solidão e ausência de interação social, às vezes co-ocorrendo com transtornos mentais, como a depressão, esquizofrenia e transtorno afetivo bipolar. A síndrome Hikikomori foi primeiramente descrita como síndrome cultural ligada à tradição japonesa, mas, com a disseminação global do uso de smartphones e acesso à internet, este retraimento social patológico está se disseminando em vários países.

E o que se passa nos grandes centros urbanos nos países de baixa renda, em especial no continente africano, onde há uma carência de recursos humanos treinados em saúde mental? Dadas as rápidas mudanças sociais acontecendo na África, caracterizadas por alto nível de urbanização e aumento da migração, especialmente de profissionais altamente treinados, há uma grande probabilidade de que provedores de saúde complementares e alternativos só se tornarão mais importantes para os cuidados de saúde mental. É sabido que nestes países, a etnia e religião são fatores importantes na compreensão do eu, tanto na saúde como na doença. A colaboração destes profissionais é proeminente para qualquer tentativa de expandir a provisão de cuidados de saúde mental nas populações africanas.

Em resumo, este artigo sobre a saúde mental nas grandes cidades pode ter deixado mais perguntas do que respostas, tornando estes dados importantes para que futuros pesquisadores possam descobrir como todos estes fatores se inter-relacionam para tornar a saúde mental das populações melhor ou pior nos grandes centros urbanos.

*Médico psiquiatra, professor titular e chefe do Departamento de Psiquiatria e Psicologia Médica da Escola Paulista de Medicina (EPM/Unifesp) - Campus São Paulo. É membro executivo da seção Urban Mental Health da World Psychiatric Association

As opiniões expressas neste artigo não representam a posição oficial da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp)

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