Quarta, 21 Outubro 2020 11:43

Opinião - “Caso André do Rap”: algumas perguntas e uma proposta de reflexão

Por Maíra Zapater*

Deusa Têmis, mulher símbolo da justica, representada de olhos vendados e com uma balança na mão
(Imagem ilustrativa - Injury Law Firm on Unsplash)

Nesta última semana, um caso envolvendo o sistema de justiça criminal dominou as conversas nos meios de comunicação e redes sociais: as desventuras em série protagonizadas pelos ministros do Supremo Tribunal Federal com suas decisões contraditórias sobre André de Oliveira Macedo (conhecido como André do Rap, segundo consta), que teve como desfecho sua fuga, ao que parece, para fora das fronteiras do Brasil.

O caso gerou, de um lado, uma onda de indignação na opinião pública, com afirmações no sentido de ser um absurdo liberar um traficante condenado. De outro, advogados criminalistas afirmando que a lei deve ser igualmente aplicada para todos — seja para um acusado de tráfico internacional, seja para aquele que está preso pelo furto de um pedaço de queijo.

Diante da miríade de tantas afirmações convictas, o Direito Processual Penal se coloca como um norte ao se fundar na certeza do que dizem a lei e a Constituição Federal: o art. 5º, inciso LXV da Constituição e o art. 316, §único do Código de Processo Penal são claríssimos ao determinar que a prisão não revisada em até 90 dias é ilegal, e por isso deve ser relaxada. Já a Lei nº 8.437/92 permite afirmar que ministro do STF não pode cassar decisão de um colega da mesma corte simplesmente por discordar dela. E, justamente por se adotar aqui como critério os textos da lei e da Constituição, não há que se discutir argumentos que, embora sem qualquer previsão legal, foram mobilizados no julgamento para justificar a revogação da liminar concedida em favor de André, tais como afirmar que se tratava de “caso excepcionalíssimo”, e que era necessário observar a “periculosidade do agente”. Nada disso está na lei.

Se a lei e a Constituição representam essa certeza sobre o que deve ser feito, do outro lado, surgem muitas perguntas que merecem reflexão e oportunidade de debate.

Há, antes de mais nada, questões de ordem prática, a respeito da atribuição de responsabilidades às autoridades envolvidas no caso, e que extrapolam a decisão de soltura. Por exemplo: se o Ministro Marco Aurélio determinou que André permanecesse em endereço residencial conhecido — o que vedava, portanto, sua saída do país — , por que falhou o controle de fronteiras? Isso nos leva a outra pergunta: como se descobriu a informação de sua fuga — e por qual motivo essa informação não impediu que ela ocorresse?

Mas, para além dessas indagações pragmáticas, é importante nos colocarmos outros questionamentos a partir do caso, para pensar sobre como nós, cidadãs e cidadãos concebemos nossa noção de Justiça. Para que possamos refletir por qual razão sentimos que nossa noção pessoal de Justiça às vezes parece distante — para não dizer conflitante — com o que diz a lei e a Constituição.

Partindo da decisão que deu início ao imbróglio judicial: se havia fundamento legal e constitucional para soltar André, por que ele estava preso? Mais ainda: por que a decisão do Plenário não foi unânime, se os textos da Constituição e do Código de Processo Penal são tão claros? Podem juízes — ou mesmo ministros do STF — decidir de forma contrária ao que dizem a lei e a Constituição?

No caso de André do Rap, a decisão de sua soltura representou a aplicação de previsões legais e constitucionais expressas, e implicou efetivar direitos fundamentais lá previstos. E aí cabe nos perguntarmos por qual motivo nos sentimos indignados quando pessoas presas têm seus direitos legais e constitucionais garantidos. E por que nos indignamos mais quando culpados são postos em liberdade do que com pessoas esquecidas na prisão, com processos parados e sem condenação, e que podem, de fato, ser inocentadas ao final.

Por que nos parece insuficiente justificar uma decisão de soltura dizendo que esta é constitucional? O que torna o texto constitucional tão abstrato, fazendo-nos sentir tão distantes dos direitos ali assegurados, a ponto de não conseguirmos enxergar justiça em sua aplicação?

Por que não conseguimos sentir de forma concreta que esses direitos, que visam assegurar nossa liberdade em face do Estado, como sendo realmente nossos? Por que não nos sentimos reconhecidos como os titulares de Direitos Humanos que, de fato, somos?

Os direitos fundamentais previstos na Constituição e nas leis se aplicam a todas e todos nós — e, inclusive, ao André do Rap. A certeza de um direito ser aplicado da mesma forma a todas e todos é uma garantia que nos protege de ordens arbitrárias de quem detém o poder. Será que queremos abrir mão da segurança de uma lei que saibamos, de antemão, que será aplicada de forma igual para todos? Ou preferiremos permitir que juízes decidam de acordo com suas preferências pessoais e o humor do dia a respeito do nosso destino?

Pensar e aplicar o Direito exige o conhecimento das razões pelas quais cada previsão foi incluída no ordenamento jurídico. E, no caso dos direitos e garantias processuais, é preciso saber que sua previsão existe para proteger nossa liberdade. Mais que um direito fundamental, a liberdade é uma tarefa: sua preservação demanda reflexão a cada escolha, não só dos atores do sistema de justiça, mas de todas as cidadãs e cidadãos.

A construção coletiva de uma sólida noção sobre a importância dos direitos de liberdade só é possível pelo incentivo ao pensamento crítico, que deve transbordar os muros das instituições formadoras dos profissionais do Direito.

*Docente do curso de Direito da Escola Paulista de Política, Economia e Negócios (Eppen/Unifesp) - Campus Osasco

As opiniões expressas neste artigo não representam a posição oficial da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp)

 

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