Por Denis Dana
(Imagem ilustrativa)
No Brasil, o momento do cafezinho no trabalho e o happy hour com os(as) amigos(as), por vezes acompanhado de bebidas alcoólicas, são cenas, muitas vezes, comuns. No entanto, esses são hábitos que, na rotina de um(a) médico(a) cirurgião(ã), podem interferir diretamente em sua atuação. É o que revela uma sequência de estudos desenvolvidos pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). As pesquisas evidenciam que a cafeína para aqueles(as) que não estão acostumados(as) pode comprometer a destreza do(a) cirurgião(ã), impactando o resultado do procedimento, assim como o consumo de álcool, mesmo em doses baixas. O tempo insuficiente de sono na noite anterior e a prática de exercício físico intenso nas horas que antecedem a entrada do(a) médico(a) na sala de cirurgia são outros dois fatores observados pelos(as) pesquisadores(as).
Os achados estão reunidos na tese de doutorado Fatores externos relacionados à destreza manual analisada por um simulador oftalmológico microcirúrgico: princípios para aprimorar a habilidade em cirurgia vitreorretiniana. O estudo foi conduzido por Marina Roizenblatt, sob a orientação do professor Maurício Maia e co-orientação dos professores Rubens Belfort Junior e Michel Farah. O trabalho foi condecorado no Prêmio Capes como a melhor tese na área médica cirúrgica defendida no Brasil em 2021.
A ideia do estudo surgiu em 2017, quando Marina morava nos Estados Unidos, com auxílio financeiro da Fundação Lemann e do Instituto da Visão, e fazia pesquisa na Universidade Americana Johns Hopkins. Com sua volta ao Brasil, uniu a parceria internacional à nacional. O estudo contou com uma parceria público-privada, com o apoio da Capes e do CNPQ, além do Instituto da Visão e da empresa Latinofarma-Cristalia. Além do Departamento de Oftalmologia da Unifesp, a pesquisa teve cooperação multidisciplinar, envolvendo o Departamento de Medicina Esportiva, a Psiquiatria, a Psicobiologia, entre outros, bem como de inúmeros(as) voluntários(as) do Departamento de Oftalmologia e demais setores envolvidos no projeto.
“A cirurgia de retina exige a mais alta precisão, e os achados do nosso estudo podem ser extrapolados para as outras áreas da microcirurgia. Assim, se conseguirmos otimizar a performance do(a) médico(a), isso vai refletir em melhores resultados pós-operatórios aos(às) pacientes em diferentes áreas da medicina”, explica Marina.
Em linhas gerais, foram realizados três estudos: avaliação do desempenho dos(as) cirurgiões(ãs) após exposição à cafeína e/ou β-bloqueador (propranolol); análise após consumo de cafeína, propranolol, álcool, exercício físico ou privação de sono, separadamente; e análise da deficiência na motricidade fina de usuários(as) crônicos(as) de cocaína.
Para estudar as mudanças no desempenho, 15 cirurgiões(ãs) de retina novatos(as) com menos de dois anos de experiência cirúrgica foram submetidos a diversos testes em um simulador oftalmológico de realidade virtual chamado Eyesi. Assim, foi possível avaliar com segurança o desempenho em diferentes situações associadas a doses crescentes de cafeína ou álcool, privação de uma noite de sono ou uma sessão intensa de exercício físico focada nos braços. Viu-se também que baixas doses de medicações da classe dos beta-bloqueadores, como é o caso do propranolol, podem agir a favor do(a) cirurgião(ã) e neutralizar os impactos negativos que o café causa na destreza do(a) médico(a).
Por fim, a sequência de estudos incluiu para análise 24 pacientes não médicos(as) do Departamento de Psiquiatria da Unifesp que estavam se recuperando da dependência de drogas, como cocaína e maconha, os(as) quais foram comparados(as) com 24 controles, ou seja, pessoas que não estavam em recuperação. No grupo de pacientes em reabilitação, viu-se que o uso prévio de cocaína impacta na destreza manual, mesmo após a abstinência da droga, o que foi medido de modo objetivo por meio do mesmo simulador oftalmológico. Esse achado evidencia que não só a reabilitação social e mental desses(as) pacientes é importante, como também a sua reabilitação motora para atividades que envolvam a motricidade fina.
Os(As) participantes da pesquisa foram submetidos(as) a variadas exposições e análises, o que contribuiu para demonstrar os fatores que podem ou não interferir na destreza e qualidade do procedimento cirúrgico. “Observamos que o consumo de cafeína (2,5mg/kg) deteriorou a destreza e que o consumo do propranolol isolado melhorou a performance comparado à combinação de propranolol com cafeína. Também identificamos que o álcool diminuiu o desempenho de modo dose-dependentemente. Nesse sentido, vale ressaltar que o comprometimento do desempenho após duas taças grandes de vinho foi maior do que após a ingestão de duas xícaras de café expresso de 25 ml. O efeito foi menor após exercício ou privação de sono, exposições que ainda seguem em investigação. Já com relação ao uso crônico de cocaína, a destreza em tarefas bimanuais ou que exigiam coordenação dos membros superiores e inferiores ficou muito prejudicada”, afirma a pesquisadora da Unifesp.
Os resultados dessa sequência de estudos apontam evidências para que microcirurgiões(ãs) iniciantes evitem até mesmo uma dose baixa de cafeína nas horas pré-operatórias caso não estejam acostumados(as) a beber café todo dia. Esse cuidado garante que eles(as) mantenham a sua capacidade de desempenho geral.
Para o orientador do grupo de estudos, Maurício Maia, “apesar de ser realizado no departamento de oftalmologia, o estudo é de grande importância para a medicina mundial, uma vez que se baseia em conhecer os fatores externos que podem piorar ou melhorar a destreza cirúrgica, tendo repercussão direta em milhões de pacientes ao redor do mundo”.