Por Alexandre Milanetti
Foi realizada, nesta quinta-feira (22/12), a divulgação do mais recente relatório do Levantamento de Cenas de Uso em Capitais (Lecuca), que é realizado por pesquisadores/as da Unidade de Pesquisa de Álcool e Drogas (Uniad), da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
“Desde 2016, este trabalho vem abastecendo tanto a gestão pública quanto os serviços de saúde e assistência que atuam na cena de uso de álcool e drogas com informações epidemiológicas essenciais para planejamento, aprimoramento e elaboração de políticas públicas”, explica Ronaldo Laranjeira, professor do Departamento de Psiquiatria da Unifesp e diretor da Uniad.
Naquele ano, e desde então, a compreensão do perfil da população que reside na maior cena de uso do país (Cracolândia) tem sido fundamental para o planejamento de ações e serviços nas áreas da saúde, assistência social, segurança pública, moradia, trabalho e renda em São Paulo. A relevância deste levantamento levou a Secretaria Nacional de Cuidados e Prevenção às Drogas (Senapred) a solicitar a sua replicação também em outras duas capitais brasileiras, Fortaleza (CE) e Brasília (DF).
A definição das cenas de uso nas capitais cearense e de Brasília seguiram os mesmos parâmetros de São Paulo, com a determinação dos perímetros pelo critério de existência de pelo menos 15 indivíduos fazendo uso de crack por três dias consecutivos, sem estar em trânsito. Para a obtenção de resultados representativos de toda população que frequenta as cenas de uso se utiliza a amostragem por tempo-localização (TLS), que leva em consideração o caráter transitório e a constante flutuação da população no tempo e no espaço.
Os resultados de São Paulo são provenientes da coleta de dados realizada em junho de 2021 com atualizações dos resultados dimensionais em abril de 2022, considerando as movimentações da população no território – e incorporam as comparações da série histórica desde 2016. Os resultados de Fortaleza advêm da coleta de dados em agosto de 2021 e Brasília entre abril e maio de 2022.
Fortaleza - A cena de uso foi considerada “híbrida” onde uma maior parcela de usuários de crack (média de 64 indivíduos) faz parte e se mistura com a comunidade local que não faz uso da droga e é caracterizada pelo consumo recluso da droga. Há alta proporção de frequentadores/as antigos/as (43%, 10 anos ou mais), baixo influxo de novos/as frequentadores/as (15,6%) e baixo índice de frequentadores/as em situação de rua (33,9%), e o pior índice de suporte social, com 50% dos/as respondentes referindo que não possuem nenhuma fonte de amparo.
Brasília - Na capital federal, a cena de uso ocorre sem a mistura com a comunidade local (na sua maioria comerciantes). Mais da metade (58,5%) dos/as frequentadores/as da cena de uso em Brasília vem de outros estados; 23,2% são de Brasília. Desses/as, 94% referem ser da Asa Sul. Mais da metade dos/as frequentadores/as vive e dorme na cena de uso todas as noites (58,6%) e 30% passam o dia e dormem em outras localidades.
A cena de uso de Brasília teve o maior índice de influxo, com 26% de novos/as frequentadores/as e a menor proporção de frequentadores/as antigos/as (37,7% há 10 anos ou mais). A cidade teve o maior índice de respondentes em situação de rua (70,4%), ainda que tenha tido também o maior índice de indivíduos que referem possuir amparo social (89% dos/as entrevistados/as).
São Paulo - A coleta principal de São Paulo ocorreu antes da realocação do fluxo para a praça Princesa Isabel e acompanhou esse processo monitorando a ocupação total do local e posterior dispersão. O influxo de novos/as frequentadores/as em 2021 foi o menor da série histórica (20,2% de novos/as frequentadores/as), porém, apresentou um aumento na prevalência de frequentadores/as antigos/as (57,4% há pelo menos cinco anos, 39,2% estão na cena há 10 anos ou mais) e aumento de respondentes em situação de rua (66,3%), enquanto 41% referem não possuir rede de suporte. Desses, 40% contam apenas com os profissionais dos serviços na região.
Em São Paulo, também se observou uma diminuição da proporção de frequentadores/as sem nenhuma atividade remunerada (68,7%), e metade desses pratica atividades de reciclagem (52,3%). Houve uma diminuição da proporção de mulheres e trans no território, bem como baixa no nível educacional dos/as frequentadores/as quando comparado às demais edições do estudo.
Comparações entre as três capitais
Destaca-se aqui o resultado sobre a procedência dos/as frequentadores/as da cena de uso, prevalecendo aqueles/as que referem que vieram de suas casas ou de familiares antes de ir para a cena de uso, resultado semelhante em todas as capitais estudadas (73,1% em São Paulo, 75,5% em Fortaleza e 60,5% em Brasília). Esse dado não tem variação nas ondas anteriores do levantamento de São Paulo e sugere que, nas cenas de uso estudadas, prevalecem os casos em que o agravamento do transtorno aditivo levou à situação de rua, e não o inverso. A maior prevalência de casos que indicam essa relação temporal não exclui a existência da relação inversa e a interpretação do resultado deve ser ponderada levando em consideração a natureza multifatorial dos transtornos aditivos.
“Estratégias de prevenção primária, que inibem o uso precoce de substâncias, especialmente do álcool, que predispõe o desencadeamento de transtornos aditivos e de prevenção secundária, promovendo a detecção do uso abusivo e intervenção precoce, são prioritárias para reduzir o influxo em cenas de uso”, ressalta Clarice Sandi Madruga, professora afiliada do Departamento de Psiquiatria da Unifesp e coordenadora do Lecuca.
Para a pesquisadora, também é fundamental o aumento da disponibilidade de serviços que ofereçam tratamentos com evidência de eficácia fora das cenas de uso e que sejam compatíveis com o perfil dos indivíduos em maior risco.
Segundo Madruga, o aprimoramento das políticas públicas de prevenção ambiental ao uso de drogas e de amparo social, com retaguarda para o manejo de casos nas famílias combinado ao maior acesso a serviços que ofereçam intervenção precoce e tratamentos efetivos, diminuiria o influxo nas cenas de uso.
Indicadores de saúde e uso de serviços
Brasília se destacou com os maiores índices de busca por emergência pelo uso de drogas (51,4% comparado a 26,5% em São Paulo e 27,1% em Fortaleza), maiores índices de pensamento suicida (43,2% comparado a 38,3% na capital paulista e 37,7% na capital do Ceará) e de indivíduos com suspeita de quadro psicótico (40,7%, comparado a 39,3% em São Paulo e 24,6% em Fortaleza) indicando, possivelmente, a circulação de uma droga mais potente e nociva na capital federal. Em contrapartida, Brasília teve a melhor taxa de acesso a serviços especializados, com 81,7% dos/as entrevistados/as apresentando histórico de tratamento para transtornos aditivos. Os serviços de atenção primária como hospitais gerais e Unidades Básicas de Saúde foram os mais procurados nas três capitais.
Os indicadores de comorbidade psiquiátrica também reduziram entre 2019 e 2021 em São Paulo, e destaca-se também a baixa prevalência do indicador de quadro psicótico em Fortaleza, que pode estar relacionada ao fato de a cena de uso ser misturada com a comunidade local.
Um/a a cada 10 frequentadores/as das três cenas de uso referiu já ter tido experiência com trabalhos forçados em serviços de tratamento para dependência química (10,4% em São Paulo, 10,7% em Fortaleza e 14,8% em Brasília).
Saúde reprodutiva
A contracepção é um problema nas três capitais, mas desponta em Fortaleza. Nas três cenas de uso, também se observam índices preocupantes de sexo desprotegido (com aumento em São Paulo em relação à 2019). As prevalências de contaminação por Sífilis (confirmação através de testagem) e a baixa adesão das mulheres ao uso de métodos contraceptivos foram bastante relevantes em Fortaleza, onde um terço dos participantes testaram positivo para Sífilis, 13% para HIV e 4% e 2,1% Hepatites B e C, respectivamente.
Houve queda nos índices de testagem de IST’s em São Paulo (possível relação com limitação de uso de serviços pela pandemia), ainda que se observe bons índices de manutenção desses tratamentos. Destaca-se o aumento do uso de contraceptivos reversíveis de longa duração (implantes ou “Larc”) em São Paulo, atingindo a adesão de 16,2% das mulheres no território. Um terço das mulheres da cena de uso em São Paulo que não usam métodos contraceptivos referem interesse no uso de implantes. Os/as pesquisadores/as frisam a importância do uso da janela de oportunidade para ampliação de tais iniciativas.
Estágio motivacional
São Paulo apresentou aumento nos índices de frequentadores/as que demonstram estar altamente motivados para interromper o uso de crack (estágio de planejamento ou de ação) e teve o maior índice das três capitais. Combinadas, as três capitais têm 40% dos respondentes em estágio motivacional de ação, referindo a pontuação máxima da escala, que indica: “eu realmente quero parar e pretendo buscar ajuda quanto ao meu uso de crack agora”. Muitos/as tendo sido encaminhados/as para diferentes equipamentos da Rede de Atenção Psicossocial após a entrevista.
Não foram identificados fatores associados com a alta motivação para mudança e não se observou nenhuma relação entre desejo por interromper o uso de crack com características sociodemográficas, histórico de problemas de saúde ou tempo na cena de uso em nenhuma das capitais, caracterizando a inconstância dos estágios motivacionais.
“Nossos achados apontam a importância do acesso amplo e imediato a diferentes modalidades de assistência e tratamento, para que essas janelas de oportunidade sejam mais bem utilizadas”, avalia a pesquisadora. Para a coordenadora do levantamento, os indicadores e parâmetros apresentados no Lecuca demonstram a demanda por aperfeiçoamentos em diferentes domínios do cuidado de populações em cenas de uso nas três capitais, bem como a necessidade de que estratégias de prevenção primária e secundária sejam implementadas fora das cenas de uso para reduzir o influxo de novos/as frequentadores/as.
Os dados completos do relatório Lecuca, da Uniad/Unifesp, estão disponíveis neste link.