Por José Alexandre Altahyde Hage*
(Imagem ilustrativa - wirestock/Freepik)
No dia 24 de fevereiro, a presente guerra da “Europa ampliada” completa seu primeiro aniversário. Mas antes de desenvolvermos esta redação, devemos explicar que por “Europa ampliada” pensamos o Velho Continente exercendo essa guerra com apoio, ainda que distante, dos Estados Unidos, Canadá, Austrália, Japão e outros. Talvez o correto seria substituir Europa ampliada por Ocidente, contudo, o conceito pode não ser preciso para esse assunto.
Isso porque dentro do que se chama Ocidente há países que não corroboram a atual aventura militar. Podemos citar Brasil e Argentina, embora, para o núcleo intelectual e original dos Estados Unidos e Europa, os sul-americanos não seriam, em essência, ocidentais. Na literatura geopolítica, o continente americano é denominado Extremo Ocidente, sob o comando estadunidense, mas somente a área setentrional seria vinculada à herança greco-romana.
Além do mais, há impressão de que por Ocidente se concebe somente aquilo que é formado por saxões e afins, como suecos e holandeses. Poderíamos então chamar essa parte do hemisfério norte de “Ocidente reduzido”, se continuarmos o exercício de criação de conceitos.
No fundo, se a América Meridional é ou não ocidental pouco importa para questões de desenvolvimento socioeconômico e ao apego do “amor-próprio”, importante ato na política, como foi comentado pelo pensador francês Raymond Aron. Devemos nos recordar que o conceito de desenvolvimento econômico foi gestado no Ocidente, após a Segunda Guerra Mundial, e passou a ser de grande importância para a Ásia. O problema é que há intelectuais e políticos no Brasil que se apegam à ideia de Ocidente como fetiche da mercadoria, sem refletir sobre o que é conveniente ou desgastante nos nomeados valores ocidentais.
De volta ao tema deste texto, escrevemos no subtítulo “Otan, Ucrânia e Rússia”. A razão para isso é que inicialmente a guerra entre as duas potências da Europa Oriental levava em conta disputas territoriais, sobre o Donbas, de minorias russas ou russificadas. O ponto era que Moscou não deveria deixar à própria sorte região de teor étnico que poderia sofrer preconceito, caso a Ucrânia fechasse fileira com a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), o condomínio militar no qual os poderes europeus se encontram sob liderança de Washington.
No final de fevereiro de 2022, havia a máxima de que a guerra seria travada entre Ucrânia e Rússia por motivos tipicamente vinculados às suas existências como Estados nacionais. Por isso, caberia às potências ocidentais olharem o conflito à distância ou exercer boicotes financeiros, políticos e sociais à Rússia, considerada responsável pela guerra. E assim tem sido, com a retirada de Moscou de vários eventos internacionais: 1- econômico, vide o mercado internacional de energia; 2- financeiro, no que se refere às compensações cambiais, impedidas, do dólar; e 3- esportiva, quando se nega à Rússia o direito de participar de jogos.
O subtítulo perdeu propósito, como mencionado, uma vez que não se trata mais de guerra entre Ucrânia e Rússia, ainda que esta lute para dominar regiões russificadas do Donbas e adjacências, configurando entre 15% a 20% do território ucraniano, fronteiriço ao russo. Agora, não é mais necessário frisar que a Ucrânia é parte original da guerra, visto que seu papel de guerreira unitária, em defesa de sua soberania, não é mais necessário.
O enfrentamento militar hoje se dá entre duas concepções de poder, de certa forma uma edição modificada de Leste e Oeste, entre o Ocidente, Estados Unidos e Europa ampliada, e Rússia. Esta como vanguarda armada dos poderes asiáticos diversificados: China, Irã, partes do mundo islâmico e Índia, embora Nova Deli exerça um jogo equidistante. Ou, para ser mais econômico, é uma guerra entre Rússia e a Otan. Todavia, independente disso tudo, há a vontade de resistir do soldado ucraniano. É necessário esse reconhecimento.
A diferença para aquela antiga disputa da Guerra Fria é que a atual não aponta para o socialismo ou defesa do capitalismo, mas sim na adoção de agenda que se torna valiosa ao Ocidente pós-industrializado: relativização da soberania, apego a visões particulares da política, valorização de uma ideia de defesa ambiental que fica acima de todas as coisas. Em suma, a denominada Agenda 30-Otan, cujos itens podem levar desconforto ao Oriente e à Rússia. E, paradoxalmente, a agenda desestrutura os países ocidentais, embora dê a impressão de ser ao contrário, por ser apoiada por Estados Unidos e União Europeia.
Assim, a Ucrânia serve como área de passagem, e de exercício, dos poderes ocidentais, na qual as forças da Aliança Atlântico procuram constranger Moscou para que se estabeleça na condição de Estado semiperiférico, ou “enquadrado” como era a preferência dos Estados Unidos nos anos 1990, em que a Rússia política e economicamente se destroçava.
Eis a função da Ucrânia para o Oeste: se tornar área de pressão contra a Rússia, como se Kiev fosse a primeira base de contenção para, logo depois, ser a Polônia e Hungria, por exemplo. Por isso, fica patente que a existência da Ucrânia como Estado nacional é conturbadíssima, mas por quê? Uma das explicações é porque esse país tornou-se vítima de sua própria geopolítica, ou melhor, de sua localização estratégica para as grandes potências – e como tal, seu grau de movimentação e autonomia é drasticamente diminuto. A depender de Moscou o status político ucraniano deveria ser o de “Estado-Tampão”.
Por outro lado, a Ucrânia seria, para a Otan, área de contenção anti-russa, por isso a possibilidade, mesmo que dificultada, de integrá-la em seus quadros militares, semelhante ao que ocorreu com países do leste europeu. E, para a Rússia, o Estado ucraniano é compreendido como “estrangeiro próximo”. Ser estrangeiro próximo significa integrar a cultura e tradição russas, mesmo que os povos sejam separados por fronteira. O caráter estrangeiro da Ucrânia seria, para Moscou, licença poética de um país artificial, uma vez que sua história não pode ser desligada da russa. Sob esse aspecto, a Ucrânia é a Rússia com praia.
Em razão disso, a operação militar de 2014, na qual a Rússia tomou a Criméia da Ucrânia foi exatamente para manter a base naval de Sebastopol, tão importante para Moscou desde os tempos do czarismo. Não obstante, a independência da Ucrânia, após o fim da União Soviética, procurou-se manter aquela cidade portuária sob o interesse militar russo. Será que a tomada manu militari da Criméia não havia sido feita pela hipótese da Ucrânia se tornar membro da Otan?
Afinal, foi de grande impacto para a política europeia o movimento denominado Euromaidan, (Praça Maidan, em Kiev), também em 2014, na qual não se escondeu o entusiasmo que a União Europeia teve para defenestrar governante que era mais próximo da Rússia, de Vladmir Putin. Vale dizer, ao retirar Viktor Yanokovytch do poder os “ocidentalistas” de Euromaidan procuraram estreitar laços com agenda socioeconômica de Bruxelas e Washington. Daí a adotar sugestões estratégicas a favor da Aliança Atlântica, na avaliação do Kremlin, seria apenas um passo. Então, na dúvida, que a Crimeia ficasse definitivamente com a Rússia.
Agora, para apontarmos conclusão deste texto, quais seriam as possíveis (já com sinais de realização) vantagens e perdas dessa guerra para seus participantes, diretos ou não? É licito dizer que em guerras os ganhos devem ser vistos como relativos, pois grandes são os variados desgastes, sendo os humanos os mais notados. No entanto, alguns pontos podem ser comentados:
1 – Para a Ucrânia, o desfecho da guerra será trágico. Grande parte do seu território foi devastado e seu parque industrial, localizado ao sul, nas zonas de combate, não teve sorte melhor. O fornecimento de energia elétrica está altamente comprometido. Mesmo que o país se integre à União Europeia, uma hipótese aventada, haverá dúvidas se os países da região terão condições, ou projetos, para financiar a reconstrução econômica da Ucrânia conforme sua necessidade.
2 – A Rússia também não terá grande proveito daquilo, mesmo ganhando o embate. Apesar de o país poder reafirmar sua posição como potência regional, em ascensão, sua economia exigirá grandes somas para retomar posição anterior a fevereiro de 2022. Apesar de tudo, na visão do governo Putin, os gastos econômicos e boicotes serão preço compensável a pagar pelo reposicionamento geopolítico, ainda mais se houver empenho financeiro de China, Índia e alguns países islâmicos – grupo que alenta o empenho do Kremlin para demarcar ponto no qual as potências ocidentais não devem passar rumo ao Oriente.
3 – A União Europeia já paga grande preço por apoiar incondicionalmente a guerra contra a Rússia. Em grande parte, esse conflito é da Otan, e isso demanda grandes fluxos financeiros dos países europeus, vide Alemanha e Reino Unido, para que a Ucrânia continue no conflito. O boicote contra os hidrocarbonetos russos, consumidos à larga pela Europa, resultou perdas elevadas às suas sociedades, uma vez que não há como substituir aqueles energéticos por outros fornecimentos no tempo esperado. No final das contas, o custo de consumo do gás natural russo sofreu reajustes acima de 300%, custo insuportável para as classes médias e baixas europeias. Por conseguinte, a estabilidade econômica da Alemanha, por exemplo, foi comprometida pela falta de gás natural, o que diminuiu sua produção industrial. O prejuízo alemão pode ser encontrado nos setores químicos, eletrônicos e mecânicos.
4 – Frisamos acima que o fornecimento alternativo de gás natural não pode ser feito no tempo necessário, na urgência que a sociedade europeia pede em tempo de crise. No entanto, há condições desse fluxo ser retomado pelos Estados Unidos, à primeira vista, o que deve acontecer. Pelo fato de os Estados Unidos serem os maiores produtores mundiais do insumo, isso permite que o gás natural seja exportado para a Europa por meio de navios específicos, de criogenia, que compacta o volume do energético. Ao chegar a portos europeus haverá necessidade de plantas industriais para converter o gás natural embarcado para que ele possa ser transportado por gasodutos. Dessa forma, fica à vista que a economia norte-americana terá grandes ganhos econômicos, porque o gás natural exportado será mais caro para os europeus em virtude do transporte, seguros e questões técnicas. E ainda poderíamos falar dos ganhos por exportação de material militar para a Ucrânia.
Por fim, haveria ainda muitas questões a serem versadas, mas nas dimensões de um pequeno texto não logramos fazê-lo a contento. Teríamos que comentar o papel da China que, de alguma forma, pode tirar proveito do relativo desmonte das cadeias internacionais de produção que a Europa deixou aberta para boicotar a Rússia. Do mesmo modo, haveria também que falar dos Brics, para saber qual seria sua possível relação com os acontecimentos da guerra.
Com destaque ao Brasil, emergiriam algumas indagações: quais seriam os possíveis efeitos da premissa de que haja “governança global” sobre a Amazônia? Por que essa região é praticamente tema central quando se fala de Brasil em reuniões no exterior? Caso o tema ambiental seja o mais premente na política internacional da atualidade, isso significa dizer que Estados Unidos, China, Rússia, Índia ou Indonésia permitiriam que suas questões ambientais também sejam objeto de atenção dessa governança global?
Enfim, a guerra entre Ucrânia e Rússia é acontecimento fértil em interpretações e posicionamentos, pois dela há como vincular os temas mencionados acima. Isto porque o Fundo Amazônia, abastecido com mais de um bilhão de dólares de Alemanha, Dinamarca e Noruega, é parte integrante da agenda propagada pelas potências ocidentais e organizações internacionais sobre a urgência de se criar governança global, a saber a Agenda 30-Otan, premissa que a Rússia não deve endossar. Caso ela ganhe a guerra, tal agenda poderá ter dificuldades de implantação.
*Professor do Departamento de Relações Internacionais da Escola Paulista de Política, Economia e Negócios (Eppen/Unifesp) - Campus Osasco
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