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Clarice Madruga (Uniad/Unifesp) organizará dados no país; coleta de informações ocorre até 31 de janeiro de 2017

Publicado em Notícias Arquivadas
Quarta, 20 Julho 2016 10:43

Guerra às drogas viola os direitos

Modelo uruguaio reacende debate sobre alternativas à repressão

Lu Sudré

Em dezembro de 2013, o Uruguai tornou-se o primeiro país a legalizar a produção, distribuição e venda de maconha sob o controle do Estado e, com isso, suscitou novas discussões em torno do uso recreativo e medicinal da cannabis. Trata-se de um problema que também interpela a instituição universitária, por suas dimensões e significado social, político, ideológico, e cultural, além do impacto na saúde pública. Aceitando o desafio, em maio, a Unifesp promoveu a Conferência Internacional sobre Drogas, em conjunto com o Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes (Proad), desenvolvido pelo Departamento de Psiquiatria da Escola Paulista de Medicina da Unifesp (EPM/Unifesp).

A atividade contou com a presença do neurocientista Carl Hart, professor do Departamento de Psicologia e Psiquiatria da Universidade de Columbia (NY) e membro do Conselho Nacional dos Estados Unidos sobre o Abuso de Drogas, e da psiquiatra Raquel Peyraube, assessora da Secretaria Nacional de Drogas do Uruguai, com mediação do psiquiatra Dartiu Xavier da Silveira, responsável pelo Proad. Para Dartiu, a chamada guerra contra as drogas é um fracasso. “Somos herdeiros de uma guerra às drogas patética e falível porque escolhemos o inimigo errado. O inimigo não é a droga, é a vulnerabilidade social”.

Durante a adolescência, Carl Hart usou e traficou drogas em Miami. Como uma exceção à regra, conseguiu abandonar o passado para ser neurocientista. Aos 47 anos, defende a descriminalização das drogas e uma política educacional sobre as substâncias. Em mais 20 anos de profissão, o neurocientista debruçou-se em pesquisas sobre drogas e deparou-se com uma realidade contrária aos mitos sobre usuários de drogas e sobre as próprias substâncias, como o crack.

“É dito que uma vez que se usa, está viciado. Isso não é verdade. Não há nada no mundo que se usa uma vez e o indivíduo já torna-se um viciado imediatamente. Dessa forma, classificam os usuários de droga como seres irracionais”, argumenta Hart. Ele afirma que as drogas não viciam na proporção que se imagina - segundo o neurocientista, apenas 11% dos consumidores podem ser considerados viciados - e que os entorpecentes não causam danos cerebrais irreversíveis.

Raquel Peyraube, que acompanhou todo o processo de legalização da maconha no Uruguai, adota a mesma perspectiva. “Somos ensinados a pensar as drogas como um problema de saúde e criminal”, diz Raquel, “mas na verdade a problemática das drogas deveria ser entendida como uma questão geopolítica que se manifesta no meio social”. Segundo a psiquiatra, a lógica belicista do combate às drogas determina estratégias desumanas e intervenções ineficazes baseadas na repressão abusiva, aplicada indiscriminadamente contra os indivíduos que usam drogas, tratando-os como criminosos e atingindo setores específicos da população, o que estabelece uma política de extermínio e de higienização social.

De acordo com Hart, o uso de drogas não prejudica o desempenho profissional de uma pessoa. “Os três últimos presidentes dos Estados Unidos (Bill Clinton, George Bush e Barack Obama) afirmaram já ter usado drogas. Não falo como demérito, mas apenas para mostrar que é possível usar drogas e ser produtivo. O ponto é que pessoas podem usar drogas e ainda serem responsáveis”.

A “guerra às drogas”, para Hart, é uma estratégia de controle social. “Os negros sofrem o lado negativo como resultado da guerra às drogas”, diz Hart, destacando que as políticas de drogas nos Estados Unidos, assim como no Brasil, são racialmente discriminatórias. “Nós não temos problemas com drogas, é um problema com a polícia. Ser negro é ser constantemente questionado e estar submetido ao ódio o tempo todo”. Hart complementa que tal conflito social não é um fracasso e sim um grande sucesso para aqueles que ganham dinheiro por sua causa. É também “um grande sucesso para os políticos que não têm que lidar com os reais problemas que as pessoas enfrentam, com a injustiça social. Apenas excluem os pobres”.

Hart visitou a cracolândia, região no centro de São Paulo e definiu a área como ‘bizarra’. “A cracolândia é um bode expiatório. Existem inúmeras coisas acontecendo naquela região e as drogas são apenas uma pequena parcela delas”. Para o neurocientista, os governos criam bodes expiatórios com o discurso de combate às drogas. “Eles dizem que podemos vencer o crack e assim não precisam falar sobre a falta de educação e falta de saúde. Eles não precisam falar ou ensinar nada para as crianças sobre as drogas. Se formos atrás do crack, não precisaremos lidar com nenhum outro problema”.

A solução para o neurocientista é combinar a ciência com as políticas públicas. “Precisamos considerar a descriminalização de todas as drogas, não prender pessoas devido a violações envolvendo drogas. Não sou contra a legalização, mas acho que precisamos de mais educação pública antes de reivindicarmos a legalização. Se melhorarmos a educação e as pessoas conversarem sobre as drogas, tenho certeza que podemos legalizar”.

Os tratamentos para usuários de drogas violam os direitos humanos, diz Raquel. “As pessoas usuárias são como troféus e muitas vezes expostas como propaganda institucional. As políticas de drogas são determinadas por interesses políticos e econômicos mas também por uma moral hegemônica a qual todas as pessoas devem ajustar-se, e as que não se ajustarem, serão excluídas”, afirma. A psiquiatra ainda coloca a superlotação das prisões como uma das consequências mais desastrosas da guerra às drogas.

O processo de legalização da maconha no Uruguai foi formulado de modo a reforçar as estruturas democráticas e evitar violações da soberania nacional. Raquel destaca a legalização como um fenômeno antropológico, social e político estimulado pelo governo do ex-presidente Tabaré Vázques e concretizado pelo atual presidente José Mujica. “A estratégia foi a instalação em área pública de uma discussão sistemática por meio de uma campanha massiva nos meios de comunicação, fornecendo informações claras e objetivas”, afirma a psiquiatra, que evidencia “a palavra legalização no imaginário coletivo significa liberação, mas na verdade é o oposto. Legalização é sujeição às leis”.

A cannabis para fins recreativos pode ser obtida por meio de três mecanismos: autocultivo, clubes de produtores com até 45 membros e vendas em farmácias de até 40 gramas por mês para indivíduos cadastrados. Além de reduzir as taxas de encarceramento daqueles que usam drogas por livre distribuição da substância, a lei pretende promover a pesquisa científica e a produção de dados de diferentes áreas do conhecimento para orientar futuras políticas de drogas. Para Raquel, não há outra saída. “Não toleramos mais mortes de um setor da população integrado por muitas crianças e jovens de classes sociais vulneráveis. O Uruguai está ratificando convenções de direitos humanos hierarquicamente superiores a qualquer convenção sobre drogas”.

imagem de Carl Hart, e da psiquiatra Raquel Peyraube

 

foto da capa da edição 7 jornal entrementes, mostrando as folhas da maconha e comprimidos Sumário da edição 7

Publicado em Entrementes Edição 7
Segunda, 18 Julho 2016 15:16

Debate revela uma esfinge de muitas faces

José Luiz Guerra (*)

O debate acerca das drogas, sejam elas lícitas ou ilícitas, sempre está nas capas dos principais jornais e é tema que gera polêmica. Recentemente, a nova política governamental de combate ao crack reacendeu a discussão sobre o que é mais apropriado, tanto para o Estado quanto para o usuário.

Para melhor compreensão do assunto, Entrementes ouviu três dos principais pesquisadores da área de drogas da Unifesp: Dartiu Xavier da Silveira, coordenador do Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes (Proad); Elisaldo Carlini, coordenador do Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (Cebrid) e Maria Lucia Formigoni, coordenadora da Unidade de Dependência de Drogas (Uded).

Legalização das drogas ilícitas?

Dartiu Xavier da Silveira - Acho que em uma sociedade ideal os indivíduos deveriam poder tomar conta de si mesmos e não serem tutelados pelo Estado. As políticas proibicionistas na área de drogas foram um grande fracasso (talvez o maior exemplo disso sejam os estrondosos danos provocados pela Lei Seca americana, que foi revogada em decorrência de seus enormes malefícios).

Além disso, proibir apenas dificulta o acesso, mas não inibe o uso e tende a induzir formas mais perigosas de consumo (por exemplo, o período da Lei Seca americana foi o único da história da humanidade em que se constatou o uso injetável de álcool. Isto porque, ao dificultar o acesso e aumentar o preço, as pessoas queriam tirar o maior proveito possível de pequenas quantidades de álcool disponíveis, o que as levou a injetarem a substância). Não sabemos exatamente quais seriam as consequências da legalização, mas sabemos que as experiências de maior tolerância com relação ao uso de drogas resultam em menores prejuízos relacionados ao consumo. Por isso, a maioria dos países desenvolvidos tem caminhado para a descriminalização do uso. E essas experiências têm sido todas muito efetivas, conforme mostram as pesquisas científicas.

Elisaldo Carlini -Esse é o tipo de pergunta a que não se pode responder “sim” ou “não”. É preciso primeiramente saber até que ponto a população tem instrução a respeito das drogas. Até que ponto as leis são draconianas e põem na cadeia alguém que está com uma pequena quantidade de droga. Nos EUA, de 2001 a 2005, cerca de 700 mil jovens foram detidos anualmente por posse de droga. Destes, muitos foram condenados, e os que tinham dinheiro para conseguir bons advogados ficaram livres. No mesmo período ocorreram mais de 200 mil prisões por estupro. Aqueles jovens, que eram réus primários e membros de grupos pacifistas, passaram a conviver com esses criminosos. É preciso discutir muito o significado da legalização e, por outro lado, o médico não está suficientemente preparado para essa resposta, que vai além da Medicina. Envolve sociologia, religião, aspectos jurídicos, e tudo isso tem que ser discutido amplamente antes de se dizer “sim” ou “não”. Da maneira como está a lei, nada pior do que ela, mas resolver por uma outra em relação à qual nós não sabemos o que vai acontecer... Eu quero saber quais são as consequências e quais são as vantagens. A vantagem é você não botar na cadeia. As consequências, eu não sei ainda. Por exemplo: vale a pena liberar todo tipo de droga sem que haja uma grande campanha educativa sobre as consequências para o corpo humano pelo uso dessas drogas? São grandes, pequenas? Depende da quantidade, depende de cada um? Tudo isso tem que ser discutido.

Maria Lucia Formigoni -Não há uma resposta simples. Há vantagens e desvantagens que precisam ser ponderadas. Se, por um lado, a legalização pode reduzir a criminalidade associada à comercialização ilícita, por outro, pode ser interpretada como um “aval” governamental para o uso de qualquer substância. A legalização poderia reduzir o enorme contingente de jovens presos por pequeno tráfico, que ocupam hoje mais de 20% do sistema carcerário do país, sistema este que não tem cumprido a função de promover a ressocialização e recuperação dessas pessoas. Além disso, em caso de legalização, a indústria responsável pela produção e comercialização utilizaria todo o seu arsenal de marketing para promover o uso, como ocorre com as bebidas alcoólicas. Especialmente os jovens, que nunca utilizaram drogas ilícitas pelo fato de serem legalmente proibidas, poderiam passar a experimentá-las e parte deles faria uso frequente, podendo desenvolver dependência. Experiências de “guerra às drogas”, assim como as da Lei Seca nos EUA, mostraram-se ineficazes. A legalização em pequenos países teve ainda efeitos contraditórios, reduzindo a criminalidade, mas atraindo usuários de outros países. O uso de substâncias para fugir ao estado normal de consciência acompanha a humanidade desde a pré-história e, existindo essa demanda, jamais será possível extinguir totalmente o uso de drogas na sociedade. Há que se considerar o nosso contexto sociogeográfico, a proximidade de países produtores, o atual conhecimento científico, as experiências bem e malsucedidas de outros países, assim como nossa realidade social, econômica e cultural, ao encarar o desafio de encontrar a melhor forma de enfrentar os problemas associados ao uso de drogas.

Política de internação compulsória?

DXS - As internações involuntárias (incluindo a compulsória) seriam situações de exceção que deveriam ser adotadas quando o indivíduo perdeu a capacidade de autodeterminação e está em risco de vida (por exemplo, uma pessoa convulsionando na rua será levada a um serviço de atendimento, independentemente de sua vontade). Porém, em relação aos dependentes químicos, os casos em que está indicada a internação involuntária são exceções e correspondem a menos de 5%. Deveria ser restrita aos dependentes que estão absolutamente fora de si (psicóticos, por exemplo), o que configura urgência psiquiátrica com incapacidade de autodeterminação. Por isso, não se pode pensar em internação compulsória enquanto política pública, mas sim como conduta clínica em situação de excepcionalidade. Utilizar internação compulsória em massa, como política pública, só se justifica enquanto medida higienista de caráter eticamente questionável e eficácia baixíssima, já que as taxas de sucesso terapêutico em tais situações são menores do que 10%. Além disso, a grande maioria dos dependentes internados contra sua vontade volta a usar drogas menos de um mês após a internação.

EC - Absolutamente contra. Isso é um atraso e uma vergonha para o país, é condenado pela ONU, que pede que os países que passaram a adotar essa política fechem as unidades e liberem todas as pessoas detidas. Não é novidade nenhuma. Existia uma lei federal, de 1921, que dava ao juiz o direito de internar compulsoriamente - pelo tempo que bem entendesse - esses pacientes, e outra, de 1938, dizendo exatamente a mesma coisa. Essas duas leis funcionaram? Não. Então nós estamos repetindo o mesmo erro crasso já cometido, pensando que repressão resolve o problema do comportamento humano. Não resolve. Essa questão, a que chamamos de “higienização” da sociedade, ocorreu em um passado bem recente, em 1920, na ascensão do nazismo na Alemanha, onde só poderia haver a raça pura, com o extermínio das demais. No Brasil, nesse mesmo período, existiu a Liga de Higiene Mental, e os psiquiatras que dela faziam parte eram chamados “mentalistas”. Eles achavam que, para poder “limpar” a sociedade, o melhor seria tirar esse pessoal de circulação, colocando-os em albergues e abrigos. Isso também aconteceu em Roma, em 460 a.C. Roma foi o apogeu do mundo e, por isso, precisava ter os melhores soldados. Então, cumpria-se ali uma lei segundo a qual quem apresentasse problemas de ordem mental era condenado à morte e jogado de uma rocha, chamada rocha tarpeia. Na realidade, isso é um atraso e um retrocesso injustificável. Por trás disso há uma briga enorme chamada “desospitalização” ou “luta antimanicomial”. A Psiquiatria nos últimos anos considera, cada vez mais, que não são precisos tantos hospitais psiquiátricos. Vale muito mais o trabalho ambulatorial, solidariedade, atendimento - e com isso a tendência é a de que os hospitais psiquiátricos diminuam. A internação compulsória tem um sentido inverso.

MLF - A internação compulsória pode ser indicada e necessária quando a pessoa se encontra em uma fase de problemas muito graves, para evitar que ela coloque a si mesma ou outras pessoas em situações de alto risco. Um período de abstinência forçada pode ser usado para ajudá-la a perceber com mais clareza seu comprometimento e motivá-la a aceitar tratamento. Entretanto, isto não significa que esta deva ser uma indicação rotineira, nem tampouco prolongada. É essencial para a recuperação que a pessoa aprenda a lidar com as situações desencadeadoras do uso na vida real, desenvolvendo outras respostas de enfrentamento. São de idêntica importância a participação da família e a reinserção no mercado de trabalho, em um ambiente social que não represente alto risco para o uso de drogas.

Política de redução de danos?

DXS - Redução de danos abrange uma série de estratégias que têm por objetivo reduzir os riscos (ou danos) relacionados ao consumo de substâncias psicoativas. Um exemplo de redução de danos na prevenção seria a campanha Se Beber Não Dirija. Isto é redução de danos porque não interfere no hábito de beber do indivíduo, mas apenas toma medidas de proteção com o indivíduo que bebeu. Outro exemplo é o tratamento de substituição para os dependentes de heroína, morfina e outros derivados do ópio. Prescreve-se metadona - também derivada do ópio - para que o indivíduo não precise usar as outras drogas que lhe são mais agressivas. Ou seja, o médico ao prescrever metadona, está dando uma droga de abuso ao paciente, que seria menos danosa do que as outras das quais ele se tornou dependente. Com as melhores estratégias de tratamento a dependentes, conseguimos que apenas um terço deles se torne abstinente de drogas (aqui incluindo drogas legais, como o álcool, ou ilegais, como a cocaína). Isto significa que, mesmo em condições ideais, dois terços dos pacientes de que tratamos não conseguem ficar abstinentes. Para essa maioria, podemos utilizar estratégias de reduzir os danos relacionados ao consumo, possibilitando que esses indivíduos tenham uma vida produtiva, mantenham relações interpessoais e sejam pessoas satisfeitas consigo mesmas, independentemente de usarem ou não drogas. E apenas para lembrar, os estudos epidemiológicos mostram que, à semelhança do que acontece com o álcool, a grande maioria dos usuários de drogas (incluindo as ilícitas) são apenas usuários ocasionais que nunca vão se tornar dependentes.

EC - Totalmente favorável. Aliás, não só eu, mas o mundo. A Organização das Nações Unidas (ONU). A Organização Mundial da Saúde (OMS). Quando fui integrante da ONU, visitei um centro de redução de danos na França. Era um local onde o dependente recebia agulhas para se drogar. Por que o governo francês fazia isso? Porque tinha certeza que, dando a agulha (não a droga), reduziria a contaminação por doenças como a Aids. Vale a pena: se você não consegue impedir o indivíduo de injetar drogas na veia, não vai evitar que ele tenha Aids e morra? Vale a pena. A redução de danos busca combater as piores consequências do mundo das drogas em condições que não têm mais jeito. Sou totalmente favorável e estou junto com a maioria.


MLF - Sim. Considerando que as pessoas usam drogas, seja por opção seja por terem perdido sua capacidade de controle ou escolha, todas as iniciativas que possam reduzir os problemas associados são válidas. Elas contribuem para a redução de doenças transmissíveis e dos gastos do sistema de saúde. É importante deixar claro que a política de redução de danos não deve ser confundida com um estímulo ao uso ou à legalização. Ela também não é excludente, mas complementar às políticas de prevenção, e frequentemente é uma porta de entrada para o tratamento.

(*) Colaborou Larissa Marolla

Uma perspectiva divergente

O coordenador da Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas (Uniad), professor e psiquiatra Ronaldo Laranjeira, foi procurado pelo Entrementes, mas não retornou o contato até o fechamento desta edição. Dado o fato de que o professor é publicamente reconhecido como porta-voz de uma opinião diferente dos demais pesquisadores da Unifesp, julgamos importante compilar algumas declarações representativas de seu pensamento, concedidas durante entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura, no dia 20 de maio de 2013:

Legalização das drogas ilícitas: Contra. Ao facilitar o acesso, o consumo tende a aumentar, fato que já acontece em Portugal, com a descriminalização das drogas em 2001, e no Brasil, após a redução da gravidade da conduta do usuário em 2006.

imagem de potes de remédios

Internação compulsória: Por ser um caso que foge ao controle da família e dos profissionais da saúde responsáveis, não é a forma mais adequada de tratamento, pois é decidida por um juiz ou promotor, e não por um médico.

Redução de danos: Contra. A melhor forma de tratar um dependente é fazer com que ele pare de usar drogas e não estimulá-lo a drogar-se, mesmo que de forma moderada. Diz não ter conhecimento de casos bem-sucedidos em que pessoas se curaram da dependência de uma droga usando outra.

 

imagem da capa do Entrementes especial 2 com um homem acendendo um cigarro  Sumário da edição especial 2

Publicado em Entrementes Especial 2
Segunda, 18 Julho 2016 14:23

Reitoria propõe o diálogo

Larissa Marolla

O consumo e o tráfico de drogas, lícitas e ilícitas, constituem uma questão de grande complexidade, que deve ser discutida, analisada e debatida como tal pela universidade, afirma Andrea Rabinovici, pró-reitora de Assuntos Estudantis (Prae) da Unifesp. Com o objetivo de promover o diálogo e troca de ideias e informações, a Prae organizará seminários e debates sobre o tema, no segundo semestre de 2013. Andrea explica, em seguida, as razões da Reitoria.

Entrementes – Porque a reitoria decidiu organizar o debate sobre a questão das drogas?
Andrea Rabinovici – Trata-se de um evidente problema social, político, cultural, econômico e policial, que afeta a vida dos brasileiros e também a comunidade da Unifesp, já que estamos inseridos nesse contexto. Entendemos ser o papel da universidade colaborar e contribuir com reflexões que ajudem a equacionar e, eventualmente, oferecer perspectivas de solução para os grandes problemas provocados pelo consumo e comércio das drogas, lícitas e ilícitas.

E – A Reitoria tem uma posição definida sobre as grandes questões colocadas em debate, como a legalização do comércio e consumo das drogas, a política de redução de danos e o internamento compulsório?
AR – Não temos uma posição sobre esses pontos, até porque sabemos que dentro de nossa comunidade há pesquisadores, médicos e cientistas que defendem posições muito distintas, eventualmente até antagônicas, todos ancorados em argumentos sólidos e respeitáveis. Por isso, a nossa posição é a de estimular o diálogo e a reflexão, com o objetivo de contribuir para que a sociedade encontre os melhores caminhos. Esse é o nosso papel.

E- Como a reitoria se posiciona face do eventual uso de drogas no espaço físico da universidade?
AR – Se nós acreditamos que o debate é legítimo e necessário, isso não quer dizer que nós ignoramos as leis brasileiras. Ter autonomia universitária não significa estarmos acima das leis. Elas devem ser respeitadas e cumpridas. Aqueles que acreditam que o uso das drogas deva ser legalizado, ou descriminalizado, têm todo o direito – e, por que não, o dever – de batalhar para que isso aconteça. Mas, enquanto as drogas forem proibidas, devemos estar cientes das consequências e penalidades.

E – Como será organizado o debate dentro da Unifesp?
AR – Vamos elaborar um calendário de atividades em todos os campi, no segundo semestre, e esperamos contar, para tanto, com a participação e o apoio das entidades representativas de estudantes, professores e funcionários. Vamos ouvir o que dizem os especialistas da própria Unifesp, além de convidados que possam contribuir para o debate.

imagem da capa do Entrementes especial 2 com um homem acendendo um cigarro  Sumário da edição especial 2

Publicado em Entrementes Especial 2
Terça, 21 Junho 2016 15:38

Um desafio do século XXI

O constante e persistente crescimento do mercado mundial de drogas ilícitas, que atinge a cifra astronômica de quase 900 bilhões de dólares ao ano, desafia a compreensão de pesquisadores, governantes, formuladores de políticas sociais, autoridades responsáveis pelos órgãos de vigilância e repressão e da sociedade como um todo. Trata-se de um panorama agravado pela indústria e comércio de medicamentos e substâncias como o álcool e o tabaco que, embora legalizadas, são fonte de grandes prejuízos para a saúde e para a vida social. No dossiê que agora apresentamos, o leitor poderá acompanhar o que pensam e produzem pesquisadores de cinco setores da Unifesp ligados ao tema.

Valquíria Carnaúba com colaboração de Ana Cristina Cocolo

Fotografia escura, mostra copos, garrafa de bebida, pinos de cocaína e comprimidos

Marcelo*, hoje com 39 anos, fuma maconha há seis. Do “baseado”, passou para o ecstasy, GHB (conhecido como “ecstasy líquido”), poppers e cocaína. Faz suas compras por meio de dealers, pois prefere pagar mais caro (cada 30ml de GHB custa entre R$ 150 a R$ 200) a correr riscos inerentes a contatos com comunidades e vendedores mais expostos à abordagem policial. Já Flávio* consome cocaína, ecstasy e, eventualmente, maconha, às quais tem acesso por meio dos amigos. Flávio garante não ser dependente: utiliza as drogas aos finais de semana e delas se vale para potencializar o prazer durante as relações sexuais. 

A realidade de ambos é o retrato de um fenômeno global, o consumo de drogas, longe de ser recente ou mesmo restrito a classe social, gênero ou etnia. Durante a primeira década do milênio, o narcotráfico faturou, em média, 900 bilhões de dólares ao ano, segundo o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (Unodc). A cifra é equivalente a 35% do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro ou a 1,5% de toda a riqueza produzida no globo. Trata-se de um mercado extremamente dinâmico, sempre alimentado por “novidades” (como as metanfetaminas e as sintéticas, em geral) ou por ondas renovadas de consumo de drogas antigas (como a heroína e os opiáceos, atualmente responsáveis por 40 mil mortes anuais nos Estados Unidos). 

O cenário é ainda mais grave quando se considera que o narcotráfico impulsiona e alimenta 40% das demais frentes de negócios mantidas pelo crime organizado, segundo a Unodc, com base em dados do final da década passada. As atividades, que incluem tráfico de armas, de pessoas e lavagem de dinheiro, entre outros, giraram 2,1 trilhões de dólares, ou seja, 3,6% do PIB global. Mas não é só. O narcotráfico ainda estabelece uma relação “cooperativa” com o mercado de drogas permitidas e socialmente aceitas, como o álcool e o tabaco, para gerar um quadro catastrófico para a saúde pública.

O Global Drugs Survey (GDS) desponta como uma ferramenta importante para compreensão do problema. Coordenado no Brasil por Clarice Sandi Madruga, psicóloga e professora afiliada da disciplina de Psiquiatria da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (EPM/Unifesp) – Campus São Paulo, a coleta on-line feita pela pesquisa contou, em 2015, com a participação de 107.624 pessoas. O relatório final revela dados surpreendentes, que envolvem consumo de álcool, versões alteradas de ecstasy, baixo preço da cocaína e, principalmente, o uso da maconha sintética no Brasil.

Mercado promissor no Brasil

O estudo detectou pela primeira vez o uso de maconha sintética no Brasil. A droga nada tem a ver com a versão natural. “O spice (nome comercial) é uma versão da molécula do THC sintetizada em laboratório. Por se ligar a receptores cerebrais de forma diferente que a molécula original, aumenta em até 60 vezes as chances do indivíduo desenvolver dependência química e em 30 as de ter uma emergência médica após o uso”, afirma Clarice. Das 434 entradas de emergência em hospitais detectadas pelo estudo, 50,9% ocorreram pelo seu uso. É vendido em forma de óleo para cigarros eletrônicos ou como fertilizante da planta Cannabis. 

Quanto ao álcool, os dados são alarmantes. “Comparado aos 21 países participantes do estudo, o Brasil fica abaixo apenas da Irlanda em indicadores como volume consumido e percepção de tolerância”. Cerca de 6,6% dos irlandeses do sexo masculino bebem mais de 10g de álcool para começar a sentir os efeitos da bebida, sendo que o limite recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), para consumo diário, é em média 30g. No caso do Brasil, esse número é apenas ligeiramente menor, em 6,3%. 

O GDS 2015 também revelou que cada pílula de ecstasy (em média R$ 40,00), há muito desprovida de seu constituinte original, a metilenodioximetanfetamina (MDMA), agora possui altas concentrações de similares às anfetaminas, além de catinonas sintéticas, altamente neurotóxicas e com poder de dependência superior ao do crack. As internações por complicações médicas pelo uso foram de 0,9%, contra 0,3% detectados no GDS 2013. 

O preço da cocaína brasileira é o mais baixo do mundo: em torno de R$ 50,00 o grama. O equivalente em crack também é barato – em torno de R$ 25,00, segundo órgãos brasileiros de entorpecentes. O “pó” também foi identificado como o mais potente, uma vez que o país apresentou os maiores índices de procura de serviços de emergência após o uso. 

Em 2012, o II Levantamento Nacional de Álcool e Drogas (Lenad) apontou que cerca de 1,8 milhão de brasileiros consumiu a “pedra” pelo menos uma vez na vida, número que salta para 5 milhões quando tratamos da cocaína. “Desde então, a demanda aumentou. Com isso, o tráfico optou por trabalhar a cocaína (última etapa de purificação) para voltar ao estágio de pedra”, pontua Clarice.

“O único exemplo nacional de combate às drogas bem-sucedido é o do tabaco”, relembra. Com efeito, a comparação entre o Lenad 2006 e o 2012 mostra que a prevalência de fumantes diminuiu tanto entre adultos (de 20,8% em 2006 para 16,9%) quanto entre menores de 18 anos (de 6,2% para 3,4%). Entretanto, o GDS apontou que o cigarro eletrônico, mesmo sem autorização da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), já é comercializado em território nacional e consumido por 5% dos usuários avaliados pelo levantamento. “O acessório tem potencial de introduzir o vício em consumidores que não começariam a fumar devido a cheiro ou restrições em ambientes fechados”, alerta Clarice.

O impasse se estende

Vistos de cima - copos, pinos de cocaína e comprimido, em uma fotografia escura

As discussões sobre criminalização do porte, legalização e regulamentação das drogas devem se intensificar no Brasil, principalmente após a autorização da Anvisa para uso de maconha medicinal no país, concedida em março deste ano. Nossos personagens iniciais, por exemplo, têm opiniões distintas. Marcelo* defende apenas a legalização da maconha, pois já viu muitas pessoas “serem levadas pelo Samu” durante festas e outras que morreram de overdose, por exagerarem no consumo de entorpecentes. Porém, para Flávio*, o ideal é legalizar tudo. “A proibição não proporciona nenhum benefício fiscal ao Estado, que poderia investir em programas de prevenção com a tributação das drogas”.

O coordenador do Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes (Proad), Dartiu Xavier, reforça que a proibição não diminuiu o número de dependentes, mas dificulta seu acesso a tratamento e prevenção. “O uso de substâncias ilícitas estimula uma carga enorme de estigma e preconceito”.

Maurício Fiore, coordenador científico da Plataforma Brasileira de Política de Drogas (PBPD), afirma que a proibição gera um mercado ilícito gigantesco e, no caso brasileiro, extremamente violento, causando milhares de mortes todos os meses. 

De fato, projeções do Departamento Penitenciário Nacional do Ministério da Justiça (Depen/MJ) mostram que o número de presos por tráfico cresceu 339% entre 2006 (31.520 presos), ano de entrada em vigor da lei 11.343 (Tráfico de Drogas e Associação para o Tráfico), e 2013 (138.366 presos). No entanto, contribuem para esses números os presos por contrabando de cigarro e álcool, drogas legais em território nacional. Segundo o Instituto de Desenvolvimento Econômico e Social de Fronteiras (Idesf), pelo menos 30% das vendas de tabaco no Brasil correspondiam, em 2014, a produtos ilegais vindos do Paraguai.

“Não estamos preparados para a legalização total e a economia das drogas é a grande responsável por isso. Sempre vai existir o traficante vendendo mais barato over the counter (ilegalmente). Superar esse fenômeno demanda a estruturação de uma verdadeira política de drogas, apoiada no tripé prevenção, tratamento e controle da oferta”, afirma Ana Cecília Marques, psiquiatra e presidente da Associação Brasileira de Estudos do Álcool e Outras Drogas (Abead). 

“Outra medida imprescindível seria treinar e educar a polícia, que se trata hoje de uma instituição extremamente corrupta, que culpa o jovem em situação vulnerável e aquele com um ‘baseado’ no bolso, mas não prende o traficante”, complementa a coordenadora do GDS. Todos os profissionais consultados rejeitam a política de “guerra às drogas”. Para Fiore, abordar a questão no âmbito da Antropologia é entender o que a droga significa para o usuário, respeitando-se a diversidade. Mas Ana Cecília é enfática: “O meu direito é aquele que termina quando invado o seu. A partir do momento que estou sob efeito de algo e mudo meu comportamento, já passei do limite e posso ser um risco à sua vida”.

* os nomes dos personagens foram alterados para resguardar suas identidades

Publicado em Edição 06
Terça, 31 Mai 2016 15:40

Edição 6 - Entreteses

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Versão em PDF

Junho 2016

Nessa edição, Entreteses apresenta um amplo debate sobre a problemática das drogas lícitas e ilícitas em nosso país. Pesquisadores da Unifesp abordam, entre outros temas, a dependência, o tratamento, os impactos, já verificados, criados pela legalização total ou parcial do comércio da maconha, o mercado bilionário do tráfico, as mortes e doenças associadas ao consumo do álcool e tabaco – e que poderiam ser evitadas –, a importância da atuação das universidades na elaboração de políticas públicas nessa área e na capacitação de profissionais para lidar com a questão e quebrar o estigma que a envolve.

A edição também aborda o combate ao mosquito Aedes aegypti e a proliferação de doenças como dengue, zika e chikungunya. À frente dos estudos preparatórios para a introdução da vacina da dengue no Brasil, o infectologista e professor da instituição Marcelo Nascimento Burattini explica os motivos pelos quais a luta contra o mosquito – erradicado no Brasil em 1955 e reintroduzido 12 anos depois devido ao relaxamento das medidas de combate – é tão difícil.

A seção “perfil” é dedicada ao hematologista Michel Pinkus Rabinovitch. Sua paixão pela ciência e sua busca pela cura do câncer faz com que, aos 90 anos, ainda pesquise moléculas com efeito antitumoral.

As mais de 40 páginas seguintes divulgam pesquisas de diversas áreas do conhecimento e abrangem temas de várias áreas do conhecimento, incluindo câncer, igualdade de gênero, engenharia tecidual, nanotecnologia, toxicologia, dependência de redes sociais, além de um vírus ainda pouco divulgado: o HTLV (vírus T-linfotrópico humano). Considerado “primo” do HIV, seus impactos no organismo podem ser cruéis e levar o indivíduo a desenvolver até mesmo leucemia.

Expediente

Editorial :: Pesquisadores enfrentam os desafios de nossa época

Carta da reitora :: As drogas e a universidade pública

APG :: Quando a ciência provoca deslumbramento

Entrevista • Marcelo Burattini  :: “Só a vacina não resolve, temos que mudar a atitude”

Perfil • Michel Rabinovitch :: “Na ciência, é preciso ser anarquista”

História e filosofia da ciência  :: Contágio, miasmas e microrganismos

Especial • Drogas :: Um desafio do século XXI

Álcool :: Problemas causados pelo consumo custam 7,3% do PIB

Maconha  :: Um mercado de 300 bilhões de dólares

Tabaco :: Principal causa de mortes evitáveis no mundo

Drogas sintéticas  :: Uma nova ameaça à saúde pública

Políticas públicas :: Participação da universidade é decisiva no país

Prevenção :: Educação continuada capacita profissionais

Assistência :: Microrregulação do acesso aos serviços das UBSs ainda é um desafio

Câncer :: Nova esperança para o diagnóstico

Zika vírus :: Muito além da microcefalia

Mal dos tempos :: Jovens desenvolvem dependência de redes virtuais

Neurologia  :: Enxaqueca em crianças está associada a déficit de atenção

Nutrição :: Crianças brasileiras consomem mais frutas

Síndrome metabólica :: Tratamento de obesidade demanda cuidado interdisciplinar

DST • HTLV :: Doença negligenciada

Toxicologia :: Manganês: um risco invisível

Farmacologia :: Pesquisadores apostam em nanotecnologia verde

Polímeros :: A incorporação de biocerâmica em polímeros anuncia novidades na engenharia tecidual

Feminismo :: Preconceito distorce luta pela igualdade de gênero 

 


Outras edições da Entreteses:

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Publicado em Entreteses
Quarta, 25 Mai 2016 16:48

Uma nova ameaça à saúde pública

De acordo com pesquisadores da Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas (Uniad), o aumento do consumo de drogas sintéticas tem sido um novo problema de saúde pública no Brasil e no exterior. Essa classe de drogas é composta por substâncias desenvolvidas a partir de alterações na estrutura molecular de substâncias previamente conhecidas e já proibidas, com o objetivo de burlar a lei, de modo que a sua comercialização possa ocorrer sem prescrições ou restrições legais. À luz da lei, essas substâncias ainda não são proscritas (proibidas), porém, sob o ponto de vista toxicológico, apresentam propriedades nocivas cujo impacto do consumo vem sendo estudado em vários países. O consenso é que estamos diante de substâncias neurotóxicas, com alto poder de dependência e capazes de causar importantes danos à saúde física e psicossocial dos seus usuários.

Vários saquinhos com comprimidos

Colaboraram neste artigo
Departamento de Psiquiatria da EPM/Unifesp: Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas (Uniad) e Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Políticas Públicas do Álcool e Outras Drogas do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (Inpad/CNPq)
Departamento de Psicobiologia da EPM/Unifesp: Núcleo de Pesquisa em Saúde e Uso de Substâncias (Nepsis)

Produtos cada vez mais potentes burlam a vigilância

Infelizmente, a indústria da droga está à frente na criação de derivados de produtos já proibidos. No Brasil, desde 1999, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), órgão que fiscaliza setores relacionados a produtos e serviços que possam afetar a saúde da população brasileira, realizou 37 atualizações na Portaria 344/1998 (que trata dos medicamentos de controle especial), sendo a última em 2014, a partir da lista de 2012.

Muitos países vêm tentando manter suas listas de drogas proscritas atualizadas, mas o aparecimento de novas substâncias psicoativas, conhecidas como New Psychoactive Substances (NPS), tem sido mais rápido que os processos burocráticos de inclusão. Como consequência, uma grande quantidade de novas substâncias psicoativas sintetizadas não regulamentadas é mundialmente comercializada, inclusive por meio da internet. Na Europa elas são conhecidas como "legal highs" ou "smart drugs". Estudos mostram que tais substâncias estão se tornando facilmente disponíveis também fora do eixo Europa-América do Norte.

De acordo com o efeito dessas substâncias no sistema nervoso central (SNC), elas podem ser classificadas em três categorias: psicoestimulantes, canabinóides e alucinógenos.

As ATS (amphetamine-type stimulants ou estimulantes do tipo anfetamina) são compostos sintéticos estimulantes que compreendem o grupo das anfetaminas, metanfetaminas, metacatinonas e substâncias análogas ao ecstasy (MDMA). Após os efeitos agudos do consumo, os usuários podem apresentar alterações de comportamento que evidenciem a dependência da substância. É relatado o aumento do risco de suicídio causado pela depressão nos períodos de abstinência e, vale acrescentar aqui, 87% dos usuários de estimulantes apresentam sinais de abstinência com a cessação do uso.

Diversos análogos sintéticos ao Δ9-THC (Δ-9-tetrahidrocanabinol) foram desenvolvidos. Do ponto de vista toxicológico, essas novas substâncias podem ser até 100 vezes mais potentes. Os canabinóides sintéticos são comercializados misturados a ervas em produtos chamados de K2, Spice ou incensos herbais. Alguns nomes comerciais do Spice incluem: Spice Silver, Spice Gold, Spice Diamond, Spice Arctic Synergy, Spice Tropical Synergy, Spice Egypt, Zombie World, Bad to the Bone, Black Mamba, Blaze, Fire and Ice, Dark Night, Earthquake, Berry Blend, The Moon e G-Force 2,3.

Ignorando o potencial tóxico desses compostos e a restrição nos rótulos indicando “impróprio para consumo humano”, na busca pelos efeitos semelhantes aos obtidos com o uso de maconha, os usuários consomem esta droga colocando em risco sua integridade física e mental. Constatou-se que após o uso, um em cada 30 usuários buscou serviços de atendimento médico de emergência no último ano. A Cannabis sintética é a substância que mais tem levado os usuários a buscarem esses serviços. As consequências do uso envolvem aumento de risco para o desenvolvimento de quadros psicóticos e chances 60 vezes maiores para instalação da síndrome de dependência.

Entre outros, os efeitos clínicos adversos relatados com o uso de Spice ou K2 estão relacionados a alterações no SNC, tais como convulsões, agitação, surtos psicóticos, acidentes vasculares cerebrais (AVC), perda de consciência, ansiedade, confusão e paranoia ou no sistema cardiovascular (taquicardia, hipertensão, dor no peito e isquemia cardíaca).

Os canabinóides sintéticos disponíveis atualmente no mercado ficaram mais potentes que os naturais, implicando em maiores prejuízos à saúde física e mental dos usuários. O uso desses derivados sintéticos da maconha foi relatado por 1,7% da amostra brasileira no último ano, ficando atrás apenas da Polônia, Hungria e Nova Zelândia, onde a Cannabis sintética era legalizada até a data da coleta dos dados.

Nos EUA, relatos de aumento do uso dos serviços de emergência, suicídio e assassinato já foram noticiados em razão do uso de Cannabis sintética e as autoridades continuam a alertar a população para o risco de novas ocorrências. Iniciativas de alerta e prevenção foram implementadas e a venda da droga passou a ser criminalizada em diversos Estados americanos.

Até pouco tempo atrás, o composto alucinógeno sintético mais conhecido era o LSD, porém, a busca por uma substância com preço mais barato e sem restrições legais que reproduzisse seus efeitos, introduziu uma nova série de drogas alucinógenas que ganhou destaque. Uma nova substância, o NBOMe, que apresenta um mecanismo de ação muito similar ao do LSD, surgiu na Alemanha em 2003, mas atualmente já se apresenta com 11 variações. Comercializado em muitos países como se fosse LSD, o NBOMe é mais forte e tóxico que a dietilamida do ácido lisérgico. A concentração do princípio ativo encontrado em doses de NBOMe pode ser até 40 vezes mais alta que no LSD, dependendo da forma como é consumido.

Os efeitos da droga no organismo podem durar até 12 horas, quase o dobro da duração média do ácido lisérgico. Ela começou a ser consumida no exterior em 2010 e chegou ao Brasil em 2011. Desde 2012, a comunicação do número de mortes e a busca de serviços de emergência após o uso está em ascensão. 

Fotografia que mostra vários saquinhos com comprimidos de ecstasy e uma mão que segura alguns comprimidos

Entre 2013 e 2015, triplicou o número de usuários de ecstasy que buscaram atendimento médico de emergência no país

Dados do II Levantamento Nacional de Álcool e Drogas (II Lenad), realizado no Brasil em 2012, e do The Global Drug Survey 2015 Findings, que apresenta dados mundiais relativos ao consumo de drogas no ano de 2015, incluindo uma amostra brasileira, apontam que o consumo de ATS entre as mulheres foi maior que em anos anteriores, tanto quanto ao uso na vida como quanto ao uso no último ano. O uso de ATS pelo menos uma vez na vida foi referida por 4,1% da amostra, sendo 4,6% entre as mulheres e 3,8% entre os homens. As prevalências mais altas foram observadas entre os indivíduos de 25 a 34 anos (6,6%), solteiros (4,9%), com níveis mais elevados de educação (7,4%) e maior renda (13,6%). O uso da substância no ano anterior ao da realização da pesquisa foi referido por 1,6% da amostra, verificando-se que o consumo entre as mulheres (2,2%) alcançou o dobro do consumo entre os homens (1,1%). Observa-se mudança de faixa etária, sendo os mais jovens, aqueles entre 15 e 24 anos, os maiores consumidores (2,2%).

Com relação ao uso associado a outras substâncias, usar estimulantes aumenta em sete vezes e meia a chance de um indivíduo usar maconha e outras drogas ilícitas, e em vinte e uma vezes a chance do uso de cocaína.

A prevalência de consumo de inibidores de apetite a base de anfetaminas no Brasil, considerando o uso na vida, é a mais alta entre todos os países pesquisados, sendo 4,1% entre os homens e 6,4% entre as mulheres. Estes dados reforçam a urgência de atenção para o uso de estimulantes entre mulheres na nossa população. 

Infográfico - Fatores associados ao consumo de estimulantes do tipo das anfetaminas (ATS). A chance de um usuário de ATS ( amphetamine-type stimulants ou estimulantes do tipo anfetamina) se envolver em episódios de violência urbana é duas vezes maior quando comparado ao usuário de cocaína e quase seis vezes maior quando comparado a um indivíduo que não consome nenhuma das duas substâncias.  (OR= Odds Ratio, razão de chances). / Ser mulher or: 2x mais chances. / 5 salários ou mais  or: 7,5x mais chances. / Consumo de outras drogas ilícitas or: até 21x mais chances. / Educação  Fator protetor. / Violência urbana: ATS X Cocaína. / ATS: or: 3,5x mais chances. / COCAÍNA: or: 5,6x mais chances

Em 2015, 12,2% dos pesquisados relataram o uso de ecstasy (MDMA). Entre 2013 e 2015, triplicou o número de usuários de ecstasy que buscaram atendimento médico de emergência. Há que se considerar não só os casos de overdose, situações onde há a ingestão de grande quantidade de substância de uma só vez, mas também, a mistura de adulterantes altamente tóxicos, pois mesmo o consumo de pequenas quantidades pode levar o indivíduo ao atendimento médico de emergência. Como consequência desta experiência, 55,6% dos usuários reduziram o uso da substância e 22,2% diminuíram o consumo concomitante de álcool. 

As intervenções de redução de danos partem de um conjunto de políticas, programas e práticas baseadas em evidências científicas, que tem por objetivo diminuir o impacto do uso de drogas lícitas e ilícitas, salvaguardando a saúde física, social e econômica dos usuários, de suas famílias e da comunidade. 

Com relação às drogas sintéticas, uma estrutura conhecida como “legal party pills” passou a ser usada em alguns países como uma alternativa segura para o consumo. A estratégia consiste em limitar o uso a determinados ambientes, principalmente festas e eventos ligados à música eletrônica, pontos onde o usuário tem a possibilidade de testar a substância antes de consumi-la, evitando, assim, a ingestão de adulterantes desconhecidos potencialmente perigosos, e até mesmo fatais, encontrados nas drogas de rua. O teste é rapidamente realizado por meio de reações químicas, utilizando uma pequena quantidade da substância que vai ser consumida e alguns produtos reagentes. Atualmente, os kits de testagem podem ser adquiridos pela internet e usados em casa.

• Ronaldo Ramos Laranjeira, Clarice Sandi Madruga e Luciana Massaro – Uniad/Inpad

Festas rave estimulam uso entre jovens

Fotografia de uma festa rave - várias pessoas em um ambiente com luzes coloridas

Festa rave, local onde o ecstasy surgiu e se disseminou nos anos 1.990

Na década de 1980, o estilo musical eletrônico se popularizou na Espanha, em festas rave. No decorrer dos anos 1990, as festas tornaram-se frequentes entre os jovens de várias nacionalidades. Foi nesse cenário que o uso de ecstasy (MDMA – metilenodioximetanfetamina) teve seu início e disseminação. A partir de então, muitas outras drogas sintéticas passaram a ser consumidas, bem como surgiram outros cenários de uso.

As sintéticas se diferenciam das demais drogas, não apenas pela sua natureza e efeitos, mas também em relação ao perfil dos usuários. São predominantemente jovens, com boa inserção social e que adquirem as drogas em rede de comércio específico.

O ecstasy é uma das principais drogas sintéticas usadas atualmente. Estudos realizados pelo Nepsis sugerem que os jovens tendem a minimizar os danos da droga e os comportamentos de risco, como dirigir após usar e praticar relações sexuais sem preservativo. Os estudos mostram também que a percepção de risco pode ser um importante componente preventivo na tomada de decisões.

Vários pesquisadores da área ressaltaram a importância de ações de redução de danos em contextos de uso como forma de intervenção junto aos usuários do ecstasy e outras drogas sintéticas. Com o objetivo de minimizar os danos decorrentes do uso, existem iniciativas brasileiras de redução de danos em festas, como o Projeto Respire, da ONG É de Lei, idealizado por pós-graduandos da Unifesp.

• Ana Regina Noto - Nepsis

Publicado em Edição 06

Além de ser a primeira causa evitável de doenças, o álcool traz relevantes problemas sociais, causando prejuízo nas funções laborativas, além de gastos com emergências clínicas e psiquiátricas decorrentes do seu uso. Essa característica está intimamente ligada ao fato de o álcool ser culturalmente aceito em diversas sociedades e de ser uma droga lícita, afirmam pesquisadores do Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes (Proad). De acordo com dados da Organização Mundial de Saúde (OMS), estima-se uma perda de 7,3% do Produto Interno Bruto (PIB) do Brasil, em decorrência de problemas relacionados ao álcool, ou seja, cerca de R$ 372 bilhões em 2014. Incluem-se, entre outros prejuízos para a economia, os gastos do Sistema Único de Saúde (SUS) com o tratamento de doenças associadas ao uso de álcool e às perdas da capacidade de trabalho em decorrência de acidentes de trânsito provocados por motoristas bêbados, desemprego e afastamento do trabalho custeado pela Previdência Social.

Homem deitado ao lado de um copo de uísque, a fotografia é escura

Colaboraram neste artigo
Departamento de Medicina Preventiva da EPM/Unifesp: Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (Cebrid)
Departamento de Psicobiologia da EPM/Unifesp: Unidade de Dependência de Drogas (Uded) e Núcleo de Pesquisa em Saúde e Uso de Substâncias (Nepsis), setores que são da Disciplina de Medicina e Sociologia do Abuso de Drogas (Dimesad)
Departamento de Psiquiatria da EPM/Unifesp: Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes (Proad), Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas (Uniad) e Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Políticas Públicas do Álcool e Outras Drogas do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (Inpad/CNPq)

47 milhões de anos de vida são perdidos por incapacitação, diz OMS

A dependência de álcool é um dos quatro principais problemas relacionados ao trabalho. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), mais de 47 milhões de anos de vida são perdidos por incapacitação atribuídos ao seu consumo. O número anual de mortes diretamente relacionadas à substância, em todo o mundo, é de 774 mil pessoas, além de sua associação com acidentes automobilísticos, episódios de violência e agressão, atividade sexual não planejada e conflitos com a lei.

O uso do álcool está presente na nossa estrutura social, estando relacionado a momentos festivos e religiosos e, nos tempos atuais, estimulado por interesses econômicos. É a substância psicoativa lícita mais consumida no mundo e também uma das mais prejudicais à saúde pública, tanto em termos de morbidade como mortalidade. Das mortes atribuídas ao álcool, quase metade deve-se a acidentes (como afogamentos, queimaduras, intoxicações e quedas) ou a atos deliberados de violência contra si mesmo ou outros. Segundo o Relatório Global sobre Álcool e Saúde de 2014 da OMS, o álcool é consumido praticamente em todo o mundo.

Segundo estimativas, pessoas com 15 anos ou mais consumiram em torno de 6,2 litros de álcool puro em 2010 (equivalente a cerca de 13,5g por dia). No Brasil, estimava-se, na época, um consumo total de 8,7L por pessoa. Homens consumiam 13,6L por ano e mulheres 4,2L. Eliminados os abstêmios, a média sobe para 15,1L de álcool puro.

O uso nocivo de álcool destaca-se entre os fatores de risco de maior impacto para a morbidade, mortalidade e incapacidades em todo o mundo, estando associado a quase 6% de todas as mortes. Além disso, 22% dessas doenças e incapacidades estão relacionadas a violências interpessoais.

O consumo nocivo de bebidas alcoólicas, especialmente durante os episódios de intoxicação, está associado ao risco para a perpetração de atos violentos, incluindo homicídios, crimes sexuais e violência familiar. O abuso de álcool por agressores e/ou vítimas está presente em 30% a 70% dos casos de estupro. Uma proporção bastante variável de mulheres abusadas sexualmente (30 a 55%) refere história regular de uso de álcool e de outras substâncias. Estudos apontam para uma grande frequência de abuso e dependência de álcool entre mulheres vítimas de agressão sexual familiar, segundo as quais seus agressores estavam sob a influência de álcool em 53,3% dos casos.

Uma pesquisa realizada pelo Centro de Referência em Álcool, Tabaco e Outras Drogas (Cratod), da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, apurou que adolescentes que bebem excessivamente são influenciados pelo consumo dos pais. A pesquisa envolveu mais de 500 pacientes entre 12 e 17 anos, dos quais 86% são do sexo masculino. Desses, 256 afirmaram ter parentes que também fazem uso abusivo de álcool. O estudo mostra ainda que 4,36% dos entrevistados referem o álcool como droga que mais consomem. Dos entrevistados que apontaram o álcool como droga principal, 22% começaram a beber aos 13 anos de idade e 15% aos 11 anos.

Os efeitos do uso nocivo de álcool representam um relevante fardo na economia, uma vez que geram gastos públicos para o sistema de saúde, judiciário e de outras instituições. Estima-se em 30% as taxas de absenteísmo e de acidentes de trabalho causadas por dependência de álcool na Costa Rica. Na França, os acidentes de trabalho ocasionados pelo uso de álcool atingem números que variam de 10% a 20% do total de acidentes dessa natureza ocorridos no país.

• Dartiu Xavier da Silveira, Thiago Marques Fidalgo, Adriana Moro Maieski, Claudia Chaves Dallelucci – Proad

Binge potencializa os efeitos entre os jovens

A gravidade das consequências do consumo de álcool depende da frequência e das quantidades consumidas. Um padrão de consumo de risco que tem despertado interesse internacional e que nos últimos anos começou a ser investigado no Brasil é denominado de Binge Drinking (BD) ou “beber em binge”. Esse padrão é caracterizado pelo consumo de, no mínimo, quatro doses de álcool em uma única ocasião por mulheres e cinco doses por homens. Os episódios de uso abusivo agudo de álcool não apenas têm influência na mortalidade geral, mas contribuem para desfechos agudos como acidentes e agressões. O BD está associado a maiores índices de abuso sexual, tentativas de suicídio, sexo desprotegido, gravidez indesejada, overdose alcoólica, quedas, gastrite e pancreatite.

O álcool é a droga mais consumida pela população brasileira e, apesar de ser uma droga lícita, sua venda e consumo não são permitidos para menores de 18 anos. Apesar disso, estudo realizado pelo Cebrid, em 2010, em uma amostra nacional de estudantes de ensino fundamental e médio nas 27 capitais brasileiras, evidenciou que não só os adolescentes bebem, como o seu padrão mais comum é o BD. Cerca de três em cada dez adolescentes relatou que este comportamento ocorreu pelo menos uma vez no ano anterior à pesquisa.

O fato de uma criança experimentar bebida alcoólica na infância, mesmo que apenas um gole, aumenta em quase 60% a chance de ela ser uma praticante do beber em binge na adolescência. Além disso, este comportamento está associado a questões parentais, como a falta de percepção de punição. Adolescentes que acreditam que não serão punidos apresentam 2,2 vezes mais chance de se engajarem em binge na adolescência. Além disso, ser filho de mãe que bebe com frequência e estar em uma escola particular também aumentam a chance desta prática. Por fim, é mais comum que o binge ocorra entre adolescentes mais ricos. A associação entre classe socioeconômica e binge é mais forte nas regiões norte e nordeste do Brasil.

O BD também é o comportamento de risco mais prevalente em baladas em São Paulo. Estudo realizado em 2013, entre baladeiros dos mais diferentes perfis, evidenciou que cerca de 30% dos entrevistados saiu do estabelecimento com dosagem no sangue equivalente à prática de binge. O BD, nas baladas, multiplica por 9, para homens, e por 5, para mulheres, a chance de que ocorra um “apagão”, ou seja, que eles não saibam o que ocorreu após a saída do estabelecimento, quando comparados a baladeiros que beberam, mas não praticaram o binge.

As festas open bar favorecem este comportamento em ambos os sexos. O fato de cobrarem uma quantia fixa (em geral, baixa) e permitirem que o frequentador beba quanto quiser, “até cair”, faz com que este se sinta compelido a ingerir o máximo que pode. É crucial, por isso, que a sociedade debata a adequabilidade deste tipo de festas.

• Zila van der Meer Sanchez Dutenhefner – Cebrid

No Brasil, cresce a taxa de usuários frequentes

O Brasil tornou-se um dos principais mercados de substâncias psicoativas legais e ilegais. O aumento da renda per capita de uma nação é geralmente acompanhado por um elevado consumo de substâncias recreativas. Uma combinação de fatores, tais como uma indústria não regulamentada, um grande mercado e uma rede ampla e organizada de drogas ilícitas, pode levar a um resultado negativo e facilmente previsível. A obtenção de dados epidemiológicos é fundamental para estabelecer estratégias nacionais e locais para a prevenção, tratamento e controle do uso dessas substâncias.

No Brasil, como em muitas economias emergentes, há uma grande disponibilidade de álcool, graças à profusão de pontos de venda, à falta de regulamentação quanto a horários permitidos para sua comercialização e preços relativamente baixos. Embora as taxas de abstinência continuem idênticas nos últimos 6 anos (48% em 2006 e 52% em 2012, diferença não significativa), houve um aumento de 20% na proporção de bebedores frequentes (que bebem uma vez por semana ou mais), que subiu de 45% para 54%. Destaca-se um aumento maior entre as mulheres, de 29% em 2006 para 39% em 2012. Entre 2006 e 2012, houve um aumento significativo do consumo no padrão binge (5 ou mais doses na mesma ocasião), que passou de 45% para 59% entre bebedores.

Fotografia da equipe Uniad, aparecem seis mulheres e três homens. Eles estão na calçada, em frente a placa de identificação do local - Uniad/Inpad

Clarice Sandi Madruga, ao centro, com a equipe da Uniad/Inpad

Outra maneira de avaliar a forma como a população ingere álcool é calcular a distribuição do volume consumido: 5% dos adultos que mais bebem são responsáveis pela ingestão de 24% de todo álcool consumido por adultos e os 10% que mais consomem por 45%. A maioria (80%) da população bebe menos da metade (44%) de todo o álcool consumido no país e 20% bebem 56%.

O início do consumo do álcool na população jovem ocorre pouco abaixo dos 15 anos (3 anos antes da idade permitida por lei). Não há diferença entre os sexos na etapa inicial. Praticamente metade dos jovens consome álcool, e esta taxa é de 26% entre os menores de idade. Grande parte dos adolescentes e jovens que relataram beber fazem uso nocivo de álcool (em forma de binge).

A associação do consumo de álcool com violência é largamente conhecida. Contudo, a disponibilidade de dados referentes a este fenômeno ainda é escassa no Brasil. Na segunda edição do Levantamento Nacional de Álcool e Drogas (Lenad), observou-se que 8% da população possuía pelo menos uma arma de fogo. Entre homens, a prevalência de andar armado era de 5% e esta proporção aumenta quando analisamos esse comportamento entre bebedores problemáticos (com abuso ou dependência de álcool), chegando a 10.3% entre adultos jovens (com menos de 30 anos de idade).

A proporção de homens que relatam terem se envolvido em alguma briga com agressão física, em 2015, aumenta exponencialmente quando são considerados fatores de risco, como uso de álcool e de substâncias ilícitas.

O consumo do álcool também aumenta a tendência a comportamentos agressivos, nas ruas e dentro de casa. A violência física na infância é um grande problema. Crianças que sofrem abuso precocemente têm maiores chances de desenvolverem doenças psiquiátricas e de se tornarem usuárias problemáticas de álcool e drogas ilícitas na vida adulta. O II Lenad constatou que dois a cada dez brasileiros já sofreram algum tipo de violência física na infância. Destes, em 20% dos casos a vítima relatou que o abusador havia ingerido alguma bebida alcoólica na situação de abuso.

Cerca de 6% dos brasileiros relataram terem sido vítimas de agressão física por seu parceiro(a). Observou-se relação com o consumo de álcool na metade destes casos.

• Clarice Sandi Madruga, Ilana Pinsky, Marcelo Ribeiro, Ronaldo Ramos Laranjeira, Sandro Mitsuhiro, Sergio Duailibi - Uniad/Inpad

Associação perigosa

A partir da década de 1990, aumentou o consumo de álcool associado a bebidas energéticas. Os primeiros estudos científicos controlados, em seres humanos e em animais de laboratório, sobre esta interação foram realizados no início dos anos 2000, pelos pesquisadores Sionaldo Eduardo Ferreira e Maria Lucia O. S. Formigoni. Eles demonstraram que as bebidas energéticas aumentam o efeito estimulante do etanol e potencializam a sensibilização (o efeito se torna progressivamente maior com uso crônico). Além disso, as bebidas energéticas induziram estimulação em animais que não apresentavam este efeito após a administração de etanol isoladamente. Se o mesmo ocorrer em seres humanos, o uso desta associação poderá levar a um aumento da proporção de pessoas com problemas associados ao uso de álcool. Usuários brasileiros relataram recorrer à combinação para reduzir os efeitos de sonolência e amplificar os efeitos estimulantes do álcool. Entretanto, foi demonstrado que embora a sensação subjetiva de embriaguez seja atenuada, os prejuízos na coordenação motora permanecem inalterados – ou seja há uma falsa sensação de estar menos bêbado, o que pode levar uma pessoa a julgar erroneamente que estaria em condições de dirigir ou realizar outras tarefas que requerem sobriedade.

Estudos realizados em outros países mostram que os sintomas de dependência surgem mais precocemente em jovens universitários que fazem uso de bebidas alcoólicas associadas a energéticos quando comparados àqueles que utilizam somente álcool em quantidades e frequência similares.

Efeitos prejudiciais do beber

32% dos adultos que bebem referiram já ter sido capaz de conseguir parar depois de começar a beber (21,8 milhões de pessoas).

10% referiram que alguém já se machucou em consequência do seu consumo de álcool (6,6 milhões de pessoas).

8% admitem que o uso de álcool já teve efeito prejudicial no seu trabalho (7,4 milhões de pessoas).

4,9% dos bebedores já perderam o emprego devido ao consumo de álcool (4,6 milhões de pessoas).

9% admitem que o uso de álcool já teve efeito prejudicial na sua família ou relacionamento (12,4 milhões de pessoas).

A fotografia mostra copos de chopp e outra bebida em uma mesa de bar

Medidas preventivas alcançam melhores resultados

O fato de o álcool ser uma substância legalizada e com poucas restrições quanto à sua comercialização contribui para a disseminação de uma falsa ideia de que ele não causaria sérios problemas. Além disso, apesar de haver uma legislação adequada, o mesmo não se aplica à sua fiscalização. A despeito de uma rigorosa lei de trânsito, que prevê punição para quem dirige sob qualquer nível de álcool no sangue, o Brasil ainda é recordista no número de acidentes e vítimas fatais associadas ao uso da droga.

As consequências desse uso são bem heterogêneas e variam em diversos países (questões culturais, econômicas, etc.). Segundo os dados do Relatório Global sobre Álcool e Saúde, da OMS, publicado em 2014, muitas destas mortes são decorrentes de acidentes, assassinatos ou suicídios e estão aumentando na maioria dos países monitorados. Além disso, na Rússia e em países do leste europeu, uma em cada cinco mortes de homens está relacionada ao uso de álcool, sendo esta substância associada a 8% das mortes de indivíduos entre 15 e 29 anos. Aproximadamente 3,3 milhões de mortes por ano, no mundo, estão relacionadas ao abuso de álcool, sendo 30% decorrentes de cirrose hepática.

No Brasil, alguns estudos indicam que 35% dos motoristas afirmam fazer uso de bebidas alcoólicas antes ou durante o ato de dirigir. Estudantes que ingeriram, pelo menos, uma dose de álcool tiveram uma chance quatro vezes maior de pegar carona com um motorista alcoolizado. Aqueles que relataram utilizar mais de cinco doses apresentaram uma chance cinco vezes maior de se envolverem em acidentes automobilísticos.

Os impactos do uso de álcool são consideráveis na sociedade. Por exemplo, há alguns anos, um grupo de pesquisadores da Unifesp analisou 726.429 internações hospitalares decorrentes do uso de substâncias psicotrópicas entre os anos de 1988 a 1999 e observou que o uso abusivo de álcool era responsável por 90% daquelas internações. Apesar dos dados alarmantes, segundo a OMS, até o início do ano 2000, somente 34 países adotavam oficialmente algum tipo de política para reduzir os danos provocados pelo uso do álcool. Existem poucas ações de prevenção com resultados comprovados cientificamente. O antigo modelo, baseado no amedrontamento, apresenta baixa efetividade e adesão.

As mais recentes linhas preventivas mostram melhores resultados na medida em que focam em habilidades, qualidade de vida e redução de riscos relacionados ao consumo. Na perspectiva de redução de riscos (potencial de dano), o projeto School Health and Alcohol Harm Reduction Project (SHAHRP), desenvolvido na Austrália pela professora Nyanda McBride, do National Drug Research Institute e adaptado na Irlanda do Norte, tem sido apontado como efetivo para mudança de comportamento e latência dos resultados ao longo dos anos. O projeto é conduzido por professores em dois anos subsequentes, com oito sessões/aulas no 1º ano e cinco sessões no 2º ano. As atividades são interativas e informativas, com técnicas de role-playing e exercícios de tomadas de decisões focadas na redução de riscos do álcool. No Brasil, com auxílio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), o projeto SHAHRP foi adaptado e avaliado em escolas particulares, recebendo o nome de Programa de Estímulo à Saúde e Redução de Riscos Associados ao Uso de Álcool Aplicado a Ambientes Educacionais (Perae). No primeiro ano, o programa foi aplicado pela equipe do Nepsis em quatro escolas, atingindo 266 alunos do oitavo ano do ensino fundamental. Com apoio do CNPq, está em curso um estudo exploratório para avaliar as adaptações do programa para estudantes de escolas públicas.

Apesar de existir uma regulamentação sobre horário de veiculação de propagandas sobre bebidas alcoólicas, as restrições são limitadas e as sobre bebidas com menor concentração alcoólica, como as cervejas, são muito frequentes. Além disso, as propagandas apelam para supostas propriedades do álcool como facilitador da desinibição social, associando seu uso a situações alegres, de riqueza e forte apelo sexual. A advertência obrigatória sobre riscos à saúde é veiculada em poucos segundos, de forma acelerada e ineficaz.

Por ser uma molécula pequena (CH3-CH2-OH), o álcool penetra facilmente nos tecidos do corpo humano, afetando praticamente todos os órgãos e causando os mais diversos problemas, incluindo gastrite, úlceras, cirrose, vários tipos de câncer (esôfago, intestino), problemas cognitivos, de memória, demência, hipertensão, alterações ósseas, etc. O seu uso abusivo durante a gravidez pode causar danos irreversíveis ao feto, tais como malformações craniofaciais, redução de peso e perímetro cefálico ao nascer e, o mais grave, problemas cognitivos e retardo mental.

Um dos primeiros estudos nesta área resultou na tese de doutorado Álcool e Teratogênese (1981) de Vilma A. Silva, orientada por Jandira Masur (1940-1990), na época, docente do Departamento de Psicobiologia e que havia sido autora da primeira tese de doutorado defendida no Programa de Farmacologia da Escola Paulista de Medicina (EPM/Unifesp), em 1971, e uma das cientistas brasileiras pioneiras no estudo dos efeitos do álcool no sistema nervoso central. Foi desenvolvido sob sua orientação um estudo que mostrou não existir tolerância, mas sim sensibilização aos efeitos estimulantes do álcool. Essa linha de pesquisa foi continuada pelas pesquisadoras Maria Lucia Oliveira de Souza Formigoni e Isabel Marian Hartmann de Quadros, que, com diversos pós-graduandos, estudaram por mais de uma década, em animais, a importância da variabilidade individual no efeito estimulante do álcool. Assim como em seres humanos, alguns animais apresentavam efeitos estimulantes, reforçadores, mas outros não e isto pode ter uma importante relação com desenvolvimento do uso abusivo. Estes estudos ajudaram a entender as bases biológicas da dependência de álcool, um transtorno que atinge entre 10% e 15% da população adulta e traz muitas consequências deletérias à saúde física, mental e ao relacionamento social.

Para evitar problemas decorrentes do uso crônico de álcool, é essencial a sua detecção precoce e a oferta de intervenções breves – utilizadas para ajudar o usuário a reconhecer seus problemas e a motivá-lo a mudar seus hábitos. Esta é uma das principais linhas de atuação da equipe da Unidade de Dependência de Drogas (Uded) do Departamento de Psicobiologia, setor criado na década de 1980 por Jandira Masur e atualmente coordenado por Maria Lucia Formigoni e por José Carlos F. Galduróz. O desenvolvimento e validação, no Brasil, de um importante instrumento para detecção do uso de risco de álcool e outras drogas (Alcohol, Smoking and Substance Involvement Screening Test - Assist) associado à realização de intervenções breves, para adultos, foi desenvolvido na década de 1990 pela equipe da Uded em parceria com pesquisadores de diversos países, com o apoio da OMS, gerando alguns dos artigos mais citados na literatura da área. Na década seguinte, essas técnicas foram adaptadas para adolescentes por Denise De Micheli. De modo complementar às abordagens psicossociais, a equipe liderada por José Carlos F. Galduróz têm avaliado a efetividade de novas ferramentas farmacológicas para tratamento da compulsão de dependentes de álcool, tabaco e cocaína/crack.

O uso excessivo de bebidas alcoólicas e os problemas físicos decorrentes têm sido fortemente associados ao absenteísmo e aos inúmeros problemas de relacionamento no ambiente de trabalho e familiar. Em especial, a violência doméstica é um problema bastante complexo, que tem sido alvo de estudos do grupo coordenado por Ana Regina Noto.

• Ana Regina Noto, Denise De Micheli, José Carlos Fernandes F. Galduróz e Maria Lucia Oliveira de Souza Formigoni - Nepsis/Uded

Simbolo Lenad, desenho de uma garrafa sobre uma peça de quebra-cabeça Síntese dos resultados do II Lenad quanto ao consumo de álcool no Brasil

• Embora não tenha aumentado a quantidade de pessoas que bebem álcool no Brasil, houve um aumento do comportamento de uso nocivo.

• As mulheres são a população em maior risco, apresentam índices de aumento entre 2.006 e 2.012 e bebendo de forma mais nociva.

• Quase dois a cada dez bebedores consomem álcool de forma nocivas sendo bebedores abusivos ou dependentes.

• Houve uma diminuição no comportamento de beber e dirigir entre 2.006 e 2.012.

• Quase um a cada dez brasileiros possui arma de fogo, sendo que 5% dos homens andam armados. Este índice sobe para mais de 10% entre homens jovens bebedores abusivos.

• Quase um terço dos homens jovens bebedores abusivos já se envolveu em uma briga com agressão física no último ano. Este índice sobe para 57% entre os que também usam cocaína.

• Mais de dois a cada dez brasileiros relataram terem sido vítimas de violência física na infância. Em 20% dos casos, os pais ou cuidadores que agrediram haviam bebido.

• 6% dos brasileiros(as) sofreram violência doméstica no último ano. Em metade destes casos, o(a) parceiro(a) que exerceu a violência havia bebido.

• A depressão está associada ao beber problemático.

Fonte: http://inpad.org.br/lenad/

Publicado em Edição 06

Principal causa de mortes evitáveis no mundo

O tabaco é hoje a principal causa de mortes evitáveis em todo o mundo e está associado a aumento no risco de múltiplos problemas de saúde, como doenças cardiovasculares, respiratórias e diversos tipos de cânceres, afirma Zila van der Meer Sanchez Dutenhefner, do Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (Cebrid). Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), o tabagismo é a principal causa de morte evitável no mundo. Dados do Instituto Nacional do Câncer (Inca) mostram que 10% dos fumantes chegam a reduzir sua expectativa de vida em 20 anos. No entanto, o controle publicitário sobre o tabaco, ocorrido a partir de 1988, já reflete mudanças de comportamento bastante significativas, explicam pesquisadores do Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes (Proad).

Fotografia mostra uma gestante segurando um cigarro

Colaboraram neste artigo
Departamento de Psiquiatria da EPM/Unifesp: Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes (Proad) e Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas (Uniad)
Departamento de Medicina Preventiva da EPM/Unifesp: Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (Cebrid)
Departamento de Psicobiologia da EPM/Unifesp: Núcleo de Pesquisa em Saúde e Uso de Substâncias (Nepsis)

Campanha reduz consumo no Brasil

Os danos do cigarro à saúde são amplamente conhecidos. Desde o estudo clássico de Doll e Hill, que comprovou a relação causal do cigarro com o câncer de pulmão, a literatura médica vem associando o tabagismo às mais variadas doenças. O cigarro é considerado o principal fator de risco modificável para as doenças do sistema cardiovascular, por estar intimamente relacionado ao processo de aterosclerose e seus desdobramentos. Além dos acometimentos letais, o tabagismo predispõe a uma série de doenças incapacitantes: fumar aumenta o risco de demências, como a doença de Alzheimer e a demência vascular, assim como acelera a piora de condições neurodegenerativas, como a esclerose múltipla. 

Segundo a Sociedade Brasileira de Cirurgia de Cabeça e Pescoço (SBCCP), o tabagismo associado ao uso de álcool aumenta em 20 vezes a chance de desenvolver algum câncer. O espectro de morbidade que o cigarro deflagra inclui doença pulmonar obstrutiva crônica, doenças autoimunes, disfunção erétil e menopausa precoce. O tabagismo passivo também é perigoso, especialmente na gestação, estando associado a sofrimento fetal e descolamento de placenta. 

Uma importante estratégia de combate ao tabagismo é a restrição publicitária. No Brasil, medidas que regulamentam a veiculação de publicidade dos cigarros ocorrem desde 1988, com a implementação da obrigatoriedade da frase "O Ministério da Saúde adverte: fumar é prejudicial à saúde" nas embalagens de derivados de tabaco. A partir de então, outras medidas de grande relevância foram instituídas, como impressão de imagens agressivas nas embalagens de cigarro e proibição de publicidade em revistas, outdoors, televisão e rádio. O impacto de tais medidas é altamente significativo em níveis epidemiológicos: pesquisa da Organização Panamericana da Saúde (Opas), divulgada em 2013, aponta que um em cada três fumantes cessaram o tabagismo desde 1988, ano de início da restrição publicitária. Além disso, pesquisa do Ministério da Saúde de 2008 aponta que cerca de 65% dos entrevistados pensaram em parar de fumar devido à influência das imagens de advertência presentes nos maços de cigarros.

Um estudo de 2005 sobre custos diretos do tabagismo à saúde pública no Sistema Único de Saúde (SUS) revela dados alarmantes. Nele, foram mensurados custos totais e atribuíveis ao tabagismo para três grupos de doenças relacionadas ao uso de tabaco (câncer, doenças do aparelho circulatório e do respiratório) em indivíduos maiores de 35 anos. Foram considerados valores gastos com internações e quimioterapia (em caso de neoplasias). Dos cerca de 1,3 bilhão de reais gastos pelo governo federal para tratamento desses grupos de doenças, aproximadamente 338,7 milhões de reais foram atribuíveis diretamente ao tabagismo (27,6% do total). Relatou-se, ainda, que esses valores estão subestimados, por não considerar gastos municipais e estaduais. Além disso, os custos indiretos (diminuição de produtividade) e os custos intangíveis, como sofrimento dos pacientes e familiares, também não foram considerados.

A prevalência do tabagismo no Brasil sofreu uma queda substancial nas últimas décadas. Tal redução pode ser atribuída às ações desenvolvidas pelo Programa Nacional de Controle do Tabagismo e outros fatores de Risco de Câncer (PNCTOFRC), como restrição da disponibilidade, controle do marketing e comercialização, atividades educativas nas escolas, melhora no atendimento primário e controle do consumo em locais públicos e de trabalho. Dados disponíveis no Observatório da Política Nacional de Controle do Tabaco, do Inca, mostram que, em 1989, 34,8% da população acima de 18 anos era fumante, de acordo com a Pesquisa Nacional sobre Saúde e Nutrição (PNSN). Uma queda expressiva foi observada no ano de 2003, segundo a Pesquisa Mundial de Saúde (PMS), no qual o percentual observado foi de 22,4%. No ano de 2008, a Pesquisa Especial de Tabagismo (Petab) apontou 18,5% de fumantes e, em 2013, o índice total de adultos fumantes foi de 14,7%, segundo a Pesquisa Nacional de Saúde (PNS).

Fotografia da equipe Proad, são quatro homens e duas mulheres, sentados em um muro baixo. Eles olham para a câmera e sorriem.

Thiago Marques Fidalgo com a equipe do Proad

A regulamentação publicitária, como já descrito, teve papel importante nos resultados encontrados. Em estudo realizado entre adolescentes dos 11 aos 18 anos, foi encontrada em apenas sete anos uma diminuição de 24% do uso dos derivados de tabaco. A proibição total do fumo em ambientes fechados de uso coletivo, privados ou públicos, foi aprovada por 71,1% da população que participou de uma consulta pública de 2007, evidenciando o interesse da população em promover ambientes saudáveis. Em pesquisa realizada um mês após a implementação da lei, o apoio foi de 94%, com aumento de cerca de 30% na procura de tratamentos para abandonar o uso.

• Dartiu Xavier da Silveira, Thiago Marques Fidalgo, Cláudio Augusto Bernardelli de Gaspar, Marcelo Polazzo Machado, Mariana Pimentel Padua do Lago, Vitor Soares Tardelli - Proad

Também os jovens fumam cada vez menos

Um estudo comparativo das tendências no uso de tabaco entre adolescentes brasileiros identificou uma redução significativa em 9 das 10 capitais de Estados brasileiros investigadas nos últimos 20 anos, tendo atingido suas menores prevalências históricas em anos recentes. A maior queda foi encontrada em Fortaleza, onde o predomínio era de 23% em 1993 e chegou a 8% em 2010. 

Essa queda ocorreu muito provavelmente como reflexo das ações de ponta do Brasil no controle do tabagismo, tendo sua liderança no processo de elaboração da Convenção-Quadro para Controle do Tabaco, da Organização Mundial da Saúde, refletido na mudança radical da legislação brasileira para esse tema. 

A referida convenção, um marco na história da saúde pública mundial, sugere medidas restritivas nas áreas de publicidade, patrocínio, tabagismo passivo, comércio, preços e tratamento para fumantes, reduzindo, assim, tanto a oferta, quando a demanda de tabaco e estipulando regras claras para o consumo em ambientes públicos.

No entanto, apesar da importante queda no consumo de tabaco entre brasileiros nos últimos anos, em decorrência da sólida política antitabagista, que engloba especialmente a proibição de propagandas e ambientes livre de fumo, o tabaco ainda tem um impacto significativo na saúde pública brasileira, sendo a segunda droga mais consumida pela população, perdendo espaço apenas para o álcool.

Fatores psicossociais diversos têm sido associados ao início do uso de cigarros por adolescentes, incluindo a pressão dos colegas, falta de supervisão dos pais, tabagismo dos familiares próximos e atividades noturnas de lazer. Estudo brasileiro realizado com estudantes da cidade de São Paulo evidenciou que cerca de 4% dos estudantes de ensino médio reportaram uso pesado de álcool, isto é, consumo em 20 dias ou mais nos últimos 30 dias, enquanto cerca de 14% deles declarou ter fumado pelo menos uma vez nesse mesmo período.

Ser mais velho e estar exposto a fumo passivo em casa aumentou em cerca de 70% a chances de um adolescente paulistano ter relatado uso recente de tabaco. Adolescentes que reportaram constante frequência a festas e baladas tinham de 9 a 14 vezes mais chance de fumar do que os que saíam com menor frequência para esses eventos. Para as meninas, os dados sugerem que o consumo recente de tabaco esteve também associado a uma percepção de falta de atenção e cuidados dos pais e ausência de frequência a práticas religiosas. 

Por fim, destaca-se um esforço do governo nos últimos anos na divulgação de serviço integral de tratamento do tabagismo em todas as regiões do Brasil. Por meio do número de telefone 136, a população pode ser informada sobre formas e motivos para abandonar o consumo de tabaco e locais de tratamento no Sistema Único de Saúde mais próximos de sua moradia. 

• Zila van der Meer Sanchez Dutenhefner – Cebrid

Gráficos 'Prevalência de Fumantes' São gráficos que mostram a porcentagem de fumantes em regiões do Brasil, por genêro e adolescentes, nos anos de 2006 e 2012. O número de fumantes diminuiu entre 2006 e 2012.

Dependência desafia programas

De acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 17,1% das pessoas de 15 anos ou mais fumam cigarros no Brasil, sendo que 85,4% delas o fazem diariamente. Desemprego, baixo grau de escolaridade e poder aquisitivo, idade entre 30 e 59 anos, foram fatores associados ao maior risco de fumar. Apesar das estratégias do governo brasileiro de combate ao tabagismo terem avançado nos últimos anos, os dados ainda confirmam o considerável impacto que o consumo do tabaco tem na saúde pública. Embora a maioria dos fumantes declararem intenção de parar de fumar, apenas cerca de 3% conseguem sem ajuda formal.

O tratamento foi padronizado e disseminado no país. Apesar dos avanços conquistados, as recaídas ainda são bastante frequentes no processo de tentativa de parar de fumar. Assim, o programa de prevenção de recaída (PR), desenvolvido por Marlatt e Gordon (1993), passou a ser uma importante ferramenta terapêutica.

Um dos mais recentes avanços da prevenção de recaídas é a incorporação de práticas de Mindfulness Based Relapse Prevention (MBRP). Mindfulness é a habilidade de manter atenção plena que pode ser desenvolvida por práticas baseadas em conhecimentos orientais de meditação. Estudos clínicos indicam que o MBRP apresenta resultados superiores aos de abordagens de prevenção de recaída tradicionais. No Brasil, a nova abordagem está sendo estudada pelo MBRP-Brasil, um núcleo de pesquisas vinculado ao Nepsis, do Departamento de Psicobiologia, que visa o desenvolvimento de pesquisas e formação profissional. Com apoio da Fapesp e do CNPq, estão sendo concluídos os primeiros ensaios clínicos de efetividade do MBRP entre fumantes. Os resultados são positivos na medida em que indicam a aceitação pela população e melhores índices de resposta ao tratamento. O MBRP também está sendo avaliado como alternativa para mulheres com insônia em uso crônico de benzodiazepínicos. Os resultados também têm sido promissores, tendo o MBRP como adjunto ao processo de redução ou retirada da medicação.

• Ana Regina Noto – Nepsis

Publicado em Edição 06