Segunda, 21 Março 2016 16:44

Colecionadora de sorrisos

A Unifesp relembra, no mês de março, entrevistas anteriores com mulheres de muitas histórias e realizações. Acompanhe!

Por Juliana Narimatsu

Você já reparou nas pessoas por aí? Muitas correm contra o relógio, reclusas em seus próprios casulos, com os rostos fechados para qualquer conversa, olhares de uma noite mal dormida e ombros arqueados como se carregassem um mundo de problemas em suas costas. E as ruas estão cheias desses desconhecidos. No entanto, há de aparecer alguém que encara a vida com um sorriso de orelha a orelha, mostrando todos os dentes e que dá gosto de ver. Para esses indivíduos, se torna involuntário a retribuição do simples gesto de alegria. Dona Zezé é isso: colecionadora de sorrisos. Maria José Matias de Jesus, 72 anos, irmã de oito, mãe de seis, avó de três e amiga de muitos; distribui gratuitamente seus sorrisos por onde passa e os recebe de volta com carinho. Sabe por quê? Porque o tempo lhe ensinou a ser assim.

Ela che gou a o mundo abençoada, nascendo na Terra de Todos os Santos (Bahia) em primeiro de março de 1942. Sua documentação, uma pena, registra seu aniversário erroneamente no Dia do Trabalhador, característica que defi ne bem o perfi l de sua família. Dona Zezé, que nem dona era ainda, é de origem humilde. Das questões materiais, não dos valores. Seus pais garantiam o pão de todos os dias na roça. Era lavrar, plantar, capinar, suar e cansar. Serviço duro, que acontecia na interiorana Bom Jardim. O papai José Matias Leão, forte como o rei da fl oresta, lutou contra um derrame e uma anemia causada por um ferimento na perna. Não resistiu e faleceu jovem, aos 33.

Bandearam-se para a capital baiana. A mamãe Laura, baixinha danada, batalhou para colocar tudo em ordem. Os mais chegados, hoje em dia, falam que Zezé puxou para o lado dela. A mulher da casa deu a volta por cima: primeiro, foram uns bicos como doméstica para, em seguida, garantir seu lugar numa fábrica de estopa. E, em meio a um início atribulado, o lar aumentou. Dona Laura trocou o seu sobrenome por Oliveira, casando-se, pela segunda vez, com Seu Esmeraldo.

Arteira que só, Zezé curtiu a infância na brincadeira com a molecada. Jogava bolinha de gude, empinava arraia, batia uma bola no terreiro. De noite, aconchegava-se com as crianças no batente da vizinha contadora de fábulas. Meninas e meninos, fixos nas palavras da senhora, deixavam sua imaginação correr solta. Era bom demais! Os finais de semana ficavam reservados para a praia. Fizesse chuva, fizesse sol, todos estavam lá.

Ela cresceu e, aos 15, quis virar dona. Começou a lavar roupa para fora e engomar aquelas peças de linho. Ave Maria, que trabalheira! O dinheiro ajudava a mãe nas contas e o que sobrava para comprar roupas, essas usadas apenas em ocasiões especiais. Carnaval, São João e Natal desfilando com um modelito novo. Todavia, o que Zezé queria mesmo era economizar para o seu sonho: uma casa própria. Mas vale esperar, porque as oportunidades aparecem na hora certa. Quando pensou que não, veio um convite para mudar de vida. Sua irmã, com um barrigão carregando o quarto rebento, precisava de alguém para auxiliá-la nos afazeres. Zezé topou com a passagem na mão para a São Paulo.

Morou em Itaquera na época em que a Maria Fumaça atravessa a cidade. Após algumas garoas, arranjou um emprego no Brás. Seu trajeto era pegar o famoso seis e quinze. Abarrotado! Ela enfrentava o caos, descia na estação e subia uma ladeira até o seu destino, que a esperava para arrumar, lavar e passar. A rotina, entretanto, seria a mesma se um tal de Bonfim não tivesse mexido com ela. O sujeito a esperava cruzar o seu caminho todos os dias. Foi indo, indo, indo e se conheceram melhor. Algo falou mais alto, decidiram juntar as trouxas e selar a união com as alianças.

Uma dádiva ao casal foi quando, na sequência, chegaram Átila, Marcos, Sandra, Marcela e Marcia. Nessa fila de filhos era para somar mais dois, gêmeos, que perdeu por aborto espontâneo. Contudo, depois de onze anos, veio o último presente da família, o caçula Fabio. Dona Zezé e o marido ralaram para satisfazer tantas bocas. Ora tinha como ela só cuidar dos filhos, ora a situação dificultava, precisando arrumar um serviço de diarista com uma comadre.

Uma vez, Bonfim foi cortar seus cabelos. Como de costume, folheava o jornal até uma manchete chamar sua atenção. Não é que, de repente, a chance estava estampada diante da sua cara! Mal deixou acertar os últimos fios das madeixas e lá estava ele em casa para conversar com a mulher. Deu a notícia: Escola Paulista de Medicina abre vagas para concurso em diversas carreiras. Dona Zezé, esperta, foi atrás. Fez inscrição, prova e aguardou. Só um instante, por favor. Foi uma eternidade! No momento em que saiu o resultado, sua reação dizia tudo. Um sincronismo de pulos, sorrisos e palavras avisando a todos que tinha conseguido.

Em 30 de janeiro de 1985, ela se lembra muito bem, foi seu primeiro dia na limpeza. Esfregou as paredes e, posteriormente, foi incumbida de tomar conta dos banheiros, mesas e chão. Tirou aquilo de letra! Porém, Zezé tinha uma afeição pelo elevador. Não se sabe o motivo. Ela pegava o saco de lixo e usava a engenhoca para chegar aos andares. Foi, então, que tentou a sorte e pediu para ser ascensorista. Não faz mal perguntar, né?

Por 22 anos ela ficou no elevador. Os pacientes e cadeirantes que iam para o Hospital São Paulo eram prioridades, mas Zezé dividiu espaço com cada um. De ministro a presidiário. Foram tantas histórias. Uma vez, ela ficou em prantos ao presenciar, embaixo de um pano branco, a silhueta de um moço que acabara de falecer e estava a caminho da sala de cirurgia. Ele iria doar seus órgãos e o coração de mãe de Zezé sentiu um aperto forte ao ligar o fato a seus filhos. Em outra ocasião, foi na época do Natal, quando recebeu um mimo inesperado de um paciente frequente. Três Tele Senas e um recado “Espero que ganhe”. Infelizmente elas não estavam premiadas e Zezé não teve a chance de dizer isso, pois seu amigo se foi após o Ano Novo. Contudo, o sobe e desce não era só de tristezas. Desfrutou também festas, caixas de bombons, enfeites e agradecimentos. Muitos gestos de amizade de crianças, pacientes e colegas de trabalho.

Seu cargo foi extinto, mas Zezé continuou na Escola, sendo transferida para o que hoje é a Pró-Reitoria de Graduação. Quase com certeza você já a viu, de lá para cá, entre o Campus São Paulo e a Reitoria, entregando papelada atrás de papelada. Desde 2012, no entanto, ela está aposentada e, mesmo assim, permanece aqui, motivada a exercer sua função com um sorriso brilhante de felicidade e cumprimentando a todos com seu hino:

- Bom dia! Boa tarde! Como ‘cê’ tá? A senhora está bem? Eu vô indo...

Agora ela se sente realizada dando os últimos retoques na sua casa própria, além de espairecer seus pensamentos trabalhando para a instituição que a trouxe muitas coisas boas. Dona Zezé encontrou a paz, mas enfrentou momentos penosos. Há 23 anos ela perdeu um filho. Há oito, a mãe. Há sete, o marido. Maria José Matias de Jesus chorou, mas aprendeu. Aprendeu a dar valor a si mesma, a continuar sonhando e a aprontar as suas farras por aí.

- Imagine você que a vida é como um barco. Tem vezes que ele enche d’água por conta de uns furinhos que aparecem. As pessoas fazem disso uma tempestade. Não é para tanto. Só tape esses buracos e conduza seu barco novamente, que ele irá chegar, com certeza, a um lugar seguro.

 

Lido 8572 vezes Última modificação em Terça, 10 Janeiro 2017 09:14

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