Sexta, 30 Setembro 2022 10:52

Opinião - Mikhail Gorbatchov: as impossibilidades da social-democracia russa

O último líder comunista da União Soviética faleceu recentemente, deixando o legado das reformas socialistas democráticas que abriram uma nova era

Por Luigi Biondi*

Imagem White House Photo Office Mikhail Gorbachev 1987

Não somente rosas, mas também cravos vermelhos apareceram como decoração floreal no dia do velório e do funeral, que teve só uma discreta participação oficial por parte do atual governo russo — o presidente Putin não participou, só foi no velório -, e que ocorreu em um grande silêncio, ensurdecedor e emblemático do momento que a Rússia vive agora com o conflito na Ucrânia.

Os tantos cravos vermelhos da social-democracia revelavam discretamente o projeto fracassado do socialismo com democracia que Gorbatchov almejava alcançar com as profundas reformas de reestruturação do sistema soviético (a famosa Perestroika) implementadas a partir de sua nomeação como secretário geral do PCUS e, portanto, líder do país em 1985, aos 54 anos.

Sintetizou-se na sua figura fracassos e sucessos da história da Rússia soviética. Afinal, era um filho de camponeses criado em um kolkoz, fazenda coletiva cooperativa, nas décadas de 1930 e 1940 (nasceu em 1931, na emergência da era estaliniana e do processo de coletivização da sociedade rural russa), na região sulina de Stavropol, nas estepes meridionais recém- colonizadas na segunda metade do século XIX por russos e ucranianos (o pai era russo, a mãe em parte ucraniana), último reduto eslavo antes da região do Cáucaso.

Um filho de camponeses comunistas, que trabalhou como ceifador de trigo, formado em Direito e em Economia Agrária, que chegava após uma tradicional trajetória dentro do partido comunista, como liderança, desde a organização juvenil (Komsomol) até o secretariado regional, o comitê central e o Politburo, o importante núcleo político de direção da URSS. Apesar de ter crescido politicamente durante a era da estagnação brezneviana, afirmou-se como o continuador do reformismo da era Kruchov que havia terminado em 1964.

Pode-se dizer que Gorbatchov levou às extremas consequências este movimento de liberalização do sistema soviético, tentando manter o dirigismo estatal, mas enfatizando a formação de baixo, democrática, do corpo político, reforma essa que, quando foi tentada por Nikita Kruchov, esbarrou logo nos círculos mais restritos do aparato militar e dos(as) gestores(as) do partido.

Brevemente, em poucos anos, o sistema soviético vivenciou uma onda reformadora intensa com o governo Gorbatchov e dos(as) políticos(as) da “geração Komsomol”, que havia se formado politicamente na Juventude Comunista durante o processo de desestalinização de Kruchov dos anos de 1956 a 1964.

Com a lei das cooperativas, em 1988, se iniciou a reintrodução gradual do empreendimento particular na economia, limitado a algumas esferas, sobretudo cooperativismo e microempresa, mas também no maior reconhecimento das iniciativas particulares, autônomas e empreendedoras na gestão das empresas manufatureiras e agrícolas; este último o setor que Gorbatchov conhecia melhor e que queria tornar mais produtivo. Ao mesmo tempo, o processo eleitoral da Câmara dos Deputados aberto também a candidatos(as) que não eram expressão do PCUS (1989).

Antes, iniciou a distensão geopolítica e a diminuição dos armamentos nucleares (1987, tratado com os Estados Unidos sobre as armas nucleares de alcance médio, que vigora ainda hoje; 1988, retirada das tropas soviéticas do Afeganistão, depois de dez anos), ao passo em que renunciava à Doutrina Breznev de intervenção armada e política nos países do bloco socialista, o que levou ao abatimento do muro de Berlim, à reunificação da Alemanha (1989–1990) e à reintrodução do sistemas constitucionais liberais democráticos na Polônia, Tchecoslováquia, Romênia, Hungria e Bulgária, o que levou ao reconhecimento do Nobel da Paz em 1990.

O objetivo principal foi democratizar politicamente e desmilitarizar a União Soviética, sem abdicar à sua pluralidade etnonacional, aliás, aumentando as autonomias federativas, preservando, do sistema socialista, o papel do Estado na educação e saúde, na redistribuição da renda e no equacionamento das desigualdades.

Em parte, era um retorno, atualizado, à Nova Política Econômica (NEP) de Lenin do período pós-guerra civil, quando da inicial consolidação do Estado soviético, de 1922 até o progressivo aumento de poder de Stalin a partir de 1928, com a escolha da coletivização radical e, portanto, do abandono dos elementos de livre mercado controlados pelo Estado, introduzidos pela NEP.

Para Gorbatchov, devia ser uma volta às raízes do horizonte e do mundo socialista democrático do qual Lenin e outros(as) bolcheviques haviam participado, junto com os(as) mencheviques, como membros do Partido Operário Socialdemocrata Russo, anterior à Primeira Guerra Mundial e às revoluções russas de 1917.

O Eurocomunismo dos partidos comunistas europeus ocidentais dos anos de 1970–80, como Itália, França e Espanha, constituía outro inspirador teórico e politico das reformas de Perestroika (reestruturação) e de Glasnost (transparência e liberalização/libertação). Era possível um marxismo-leninismo democrático, mais crítico e resistente das tradicionais social-democracias europeias frente às desigualdades do capitalismo, agora na sua vertente neoliberal.

O socialismo com liberdade política e econômica, contemporizadas pelo papel equalizador do Estado soviético, atento ao meio ambiente (o desastre nuclear de Chernobyl em 1986 havia marcado o começo do reformismo gorbatchoviano), não frutificou na nova União Soviética. Décadas de dirigismo estatal haviam reduzido estruturalmente os espaços de discussão e de iniciativa dos(as) cidadãos(ãs), ao mesmo tempo em que a liberalização do sistema econômico e de abrandamento do controle estatal mostravam aos(às) gestores(as) das unidades industriais, do comércio internacional, da finança, que haviam, progressivamente, mantido algumas relações, contatos e conhecimento do mercado global desde os anos de 1970, e aos(às) principais políticos(as) nacionais e regionais do partido, as possibilidades de ganhos estratosféricos que a definitiva derrocada do sistema soviético podia proporcionar.

O sonho gorbatchoviano da social-democracia não encontrou espaço nem com o fim da URSS em 1991. Passada, em um certo isolamento, a “década perdida” da conflituosa e dramática reconfiguração geral do mundo ex-soviético, Gorbatchov tentou ativar o projeto político de um partido de massa social-democrata na Rússia, a partir de 2000–2001, inserido na tradição da social-democracia europeia, se conectando historicamente à cultura de reformismo social de origem marxista do socialismo democrático menchevique do começo do século XX. Mas o partido nunca conseguiu eleger sequer um(a) deputado(a) na Duma, o atual Parlamento russo, até os nossos dias.

Acompanhando a crise de novo milênio da social-democracia europeia, a sociedade russa parece ter decretado a própria impossibilidade da ação política do socialismo democrático, até mais do que ocorreu durante a época de clandestinidade e repressão do partido social-democrata russo de Lenin no império czarista russo. Restaram, assim, cravos e rosas vermelhas na Casa dos Sindicatos de Moscou, depositadas no derradeiro adeus a um político que atuou em uma transformação epocal do século XX.

*Docente associado de História Contemporânea no Departamento de História da Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (EFLCH/Unifesp) - Campus Guarulhos

As opiniões expostas nos artigos são de responsabilidade do(a) autor(a) e não expressam a posição oficial da universidade

 

Lido 3263 vezes Última modificação em Terça, 02 Abril 2024 13:43

Mídia