Projeto pioneiro na costa brasileira avalia a biodiversidade do entremarés de costões rochosos, desde Itanhaém (SP) até Armação dos Búzios (RJ); resultados funcionam como um ‘IBGE da vida marinha’
Por Ligia Gabrielli
Paisagem do costão rochoso na Praia da Enseada (Ubatuba/SP), um dos locais onde os trabalhos de campo foram realizados
Um projeto inédito realizado por pesquisadores da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), em parceria com a Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF), Centro de Biologia Marinha da Universidade de São Paulo (CEBIMar/USP) e universidades do exterior, com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), mostra o impacto da temperatura do oceano, da força das ondas e do volume de água doce que chega no mar na biodiversidade marinha. Os resultados funcionam como um ‘IBGE da vida marinha’ e avaliam a variação na abundância e no tamanho de organismos em costões rochosos ao longo da costa sudeste e permitem prever os impactos que as alterações climáticas podem trazer para estes organismos.
Este foi o primeiro projeto na costa brasileira a avaliar a biodiversidade do entremarés em costões rochosos em uma escala espacial de mais de 800 km, desde Itanhaém (SP) até Armação dos Búzios (RJ). O projeto contou com várias etapas: primeiro, os pesquisadores fizeram campanhas de campo intensivas para coletar os dados em 62 costões rochosos em um espaço de poucos meses, garantindo que todos os dados estivessem sob influência de um mesmo regime de estação climática. Além disso, outras campanhas de coleta de campo foram realizadas para avaliação da predação entre as espécies principais. Por fim, foram realizados experimentos em 18 costões rochosos neste gradiente latitudinal para testar como fatores das mudanças climáticas podem influenciar a predação entre estes animais. Esse experimento envolveu uma força tarefa para instalar e monitorar gaiolas nas rochas na zona costeira.
Amostragem de mexilhões através de fotografias
Além das etapas de campo e análises dos organismos em laboratório, foram realizadas etapas de sensoriamento remoto e modelagem para obter dados de monitoramento de satélite da temperatura do oceano, da descarga de água doce por rios na zona costeira e da força de impacto das ondas para entender como cada um destes fatores varia em uma escala de menos de 10 km ao longo da costa. Ao todo, foram 4 anos de trabalho de campo e laboratório que envolveu uma equipe de 20 pesquisadores e estudantes que agora resultaram em diferentes publicações científicas nos últimos anos. Nos últimos 2 anos, artigos científicos do projeto começaram a mostrar os resultados da biodiversidade neste sistema. Nesta terça-feira, dia 23/7, uma nova publicação inédita na revista Marine Environmental Research reforça o alerta de como as comunidades de costões rochosos são impactadas pela variação na temperatura do oceano.
Amostragem da biodiversidade através de fotografias
O ineditismo e a importância do entremarés de costões rochosos
“Entender os impactos da mudança do clima na biodiversidade é complexo. Impactos como o aumento das chuvas intensas, da temperatura do oceano, da frequência de ressacas na costa e das ondas de calor atmosférico são desafiadores dada a larga escala espacial que estes eventos ocorrem, a dificuldade de manipular estes fatores para gerar experimentos controlados e o fato de que seu impacto nem sempre é pontual no tempo, mas reflete em processos de crescimento, alimentação, reprodução que ocorrem ao longo de semanas, meses e anos”, afirma Ronaldo Christofoletti, coordenador do projeto e do grupo de pesquisa.
Para vencer estes desafios, os pesquisadores tiveram uma abordagem para compreender os padrões ecológicos naturais dentro de um gradiente de variação que permite extrapolar previsões para os cenários futuros de mudanças do clima. “Compreender o sistema natural é nossa maior força para buscar as soluções para o futuro. Nós focamos em avaliar diferentes fatores ambientais em conjunto, desde a rugosidade das rochas até a temperatura do oceano. Dentre todos os fatores, três deles se destacaram como os de maior influência regulando a biodiversidade no ambiente natural: temperatura do oceano, impacto das ondas e aporte de água doce. O alerta é que exatamente estes fatores são aqueles que já mostram alterações dos seus padrões pela mudança do clima. Logo, se eles alteram, irão impactar a biodiversidade e, muitas vezes, sequer conhecemos quais eram os padrões antes da mudança do clima”, afirma Christofoletti.
Neste projeto, os pesquisadores buscaram entender como as populações de organismos marinhos variam em ambiente natural dentro de um gradiente de temperatura do oceano que varia naturalmente em aproximadamente 3ºC entre os locais com águas mais quentes (região da Baixada Santista até Ilha Grande no RJ) e mais frias (região dos Lagos no RJ). O entendimento de como esse gradiente de temperatura influencia no ambiente natural permite extrapolar os potenciais impactos do aumento da temperatura do oceano que, por exemplo, no último ano no Atlântico Sul tem estado entre 1 a 2ºC acima da média.
Ainda, neste gradiente de temperatura do oceano na costa sudeste brasileira, os pesquisadores buscaram costões rochosos que têm diferentes graus de impacto das ondas, desde áreas mais abrigadas com pouca força das ondas até áreas de alta energia de ondas. Com isso, foi possível avaliar, além da temperatura do oceano, o efeito local da força das ondas. Neste caso, torna-se possível avaliar como o aumento das ressacas no mar, que geram ondas mais fortes, podem influenciar na biodiversidade.
Por fim, ao longo de toda a região do estudo, os pesquisadores buscaram costões rochosos próximos e distantes da foz de rios para avaliar como a chegada da água doce pode influenciar nos processos. Essa influência é importante para entender como o aumento das chuvas e descarga de água doce no oceano pode influenciar a biodiversidade.
A biodiversidade do entremarés de costões rochosos foi escolhida como modelo ideal por diferentes razões. Primeiro porque as espécies do entremarés – área localizada entre as marés baixa e alta – habitam um ambiente altamente estressante, ficando submersas e expostas ao ar várias vezes ao dia conforme a maré sobe e desce. Desta forma, são organismos adaptados a estes fatores de estresse e excelentes modelos de estudo sobre como os impactos da mudança do clima podem afetar suas populações. Além disso, essas espécies enfrentam grandes variações de temperatura (por exemplo, a superfície das rochas pode atingir mais de 50ºC em dias quentes de verão que fica tão quente quanto o asfalto nas cidades), de umidade e de salinidade e têm sido mundialmente afetadas pelas ondas de calor atmosférico, sendo bons indicadores de impactos na zona costeira.
As caracterizações das espécies do costão rochoso foram como um censo do IBGE. Os pesquisadores coletaram informações sobre como a distribuição e quantidade de várias espécies (onde estão e em quais quantidades), assim como seus tamanhos. O tamanho das espécies é uma característica importante pois determina a influência dela na comunidade, seja pela competição por espaço ou por sua ação de predação (seja ela carnívora ou herbívora) na relação com outras espécies. Todas essas informações depois foram cruzadas com dados ambientais de temperatura do mar, grau de exposição às ondas, e influência de água doce vindo de rios.
Principais resultados
Os dados inéditos, liderados pelo pesquisador Cesar Cordeiro, mostram que a maior parte das espécies avaliadas tendem a ser menores nas áreas de água mais quente (região da Baixada Santista até o litoral sul do RJ) do que em áreas de águas mais frias (como a região dos Lagos no RJ). As espécies filtradoras (cracas e mexilhões) foram 25 a 35% maiores em águas mais frias, enquanto a espécie carnívora chegou a ser 50% maior e as espécies herbívoras 100 a 130% maiores na região de águas mais frias. A diferença de tamanho pode ocorrer por duas razões. Primeiro, porque em águas mais quentes os animais tendem a alcançar a maturidade sexual mais cedo. Logo, investem energia em crescimento por menos tempo e ficam menores, pois depois investem mais energia na reprodução. Segundo, a região dos Lagos RJ é influenciada pelo processo de ressurgência, que traz nutrientes do fundo do oceano e enriquecem a água, podendo trazer mais energia na cadeia trófica. Os estudos não mostraram que a alimentação era limitante em nenhuma região, pois sempre havia presas disponíveis para os animais se alimentarem. Mas o fato de termos águas naturalmente mais ricas em nutrientes pode influenciar em uma maior taxa de crescimento. Esta hipótese teria sido avaliada pelo projeto, porém esta etapa foi interrompida pela pandemia de covid-19 e não foi possível dar sequência posteriormente.
No período e no gradiente latitudinal na região de estudo, a variação da temperatura do oceano era de aproximadamente 3ºC entre as regiões mais quentes e frias. Agora, os pesquisadores possuem dados para começar a monitorar e estimar os impactos devido às mudanças do clima. “Como estudo pioneiro nesta escala espacial, criamos uma base de dados do momento atual. Considerando os cenários previstos da mudança do clima para o futuro próximo que mostram o aumento da temperatura do oceano, nossos resultados mostram uma possível alteração na biomassa desses organismos no ambiente, o que pode gerar um desbalanço de energia na cadeia trófica e impactar outros organismos que se alimentam deles. Temos agora a possibilidade de monitorar o que irá ocorrer. Se apenas no último ano a temperatura média do oceano já subiu quase 0,5ºC e na costa brasileira o Oceano Atlântico estava entre 1 a 2ºC acima da média, podemos ter processos reprodutivos e de crescimento já sendo alterados que vão reverter em impactos na biodiversidade nos próximos anos”, afirma Cesar Cordeiro, autor do estudo inédito publicado esta semana.
O projeto também mostra resultados que as espécies avaliadas tendem a ser mais abundantes em áreas sob maior influência de ondas, aumentando em até 50% abundância de cracas e triplicando as de mexilhões e a do predador o caracol Stramonita brasiliensis (também conhecido como saquaritá). Isso se dá devido ao aumento na chegada de nutrientes, alimento e larvas através das ondas. Além disso, o experimento que foi realizado nos costões rochosos para testar a influência destes fatores na predação mostrou que, em locais com maior influência de ondas, a predação pelo caracol Stramonita brasiliensis sobre cracas é reduzida pois o impacto das ondas atrapalha os predadores que podem ser removidos das rochas. A predação é mais importante em locais com menor influência de ondas, onde as presas são encontradas em menores quantidades e os predadores são mais eficientes em comê-las, uma vez que não são atrapalhados pelas ondas.
O caracol marinho (Stramonita brasiliensis) se alimentando de uma de suas presas, a craca Tetraclita stalactifera. Essas foram as espécies utilizadas como modelo no estudo para entender como as características do oceano influenciam na interação entre as espécies
Logo, os resultados mostram que, quanto maior a influência das ondas, maior é o aumento na população dos animais, porém que estes enfrentam mais desafios para se alimentar. Segundo André Pardal, que liderou os estudos de modelagem e cadeia trófica no projeto, “entender a predação é um elemento chave para entender a dinâmica dos processos que regulam a biodiversidade. Em um cenário de aumento do nível do mar e da frequência de eventos extremos, nossos resultados mostram que os organismos podem se tornar mais abundantes, porém com maiores desafios para se alimentar, o que pode gerar um desequilíbrio ecológico. Isto é ainda mais forte somado ao aumento da temperatura do oceano onde eles também tendem a se tornar menores em tamanho, configurando uma completa alteração das populações naturais do ambiente”.
Além da temperatura do oceano e das ondas, o estudo mostrou a influência do aporte de água doce. Neste caso, a influência de água doce teve efeitos variáveis: nas áreas com maior influência de rios, cracas foram menores, enquanto mexilhões foram mais abundantes. Isso indica que as espécies têm tolerância diferente em relação à salinidade. Ambos os animais, cracas e mexilhões, são as presas principais do predador saquaritá. Logo, o efeito combinado dos impactos das mudanças do clima altera novamente o equilíbrio ecológico.
Christofoletti explica que “o interessante de estudos em campo como este é que, apesar de todos os desafios, nos permite entender os processos de forma integrada. Vamos imaginar o cenário a partir de um mexilhão, e como todos os resultados se somam. As mudanças do clima têm intensificado os períodos de chuva extrema, que por sua vez resultam em mais água doce chegando ao mar pelos rios. Em um costão rochoso com influência de água doce, a abundância destes mexilhões tende a aumentar. Para este mesmo costão rochoso, os dados de temperatura do oceano mostram que, com o aumento da temperatura do mar, os animais devem ficar 25% menores. Logo, temos mais mexilhões menores, o que gera uma competição por espaço e por alimentação entre eles. E mais, se este mesmo costão rochoso estiver em uma área de maior influência das ondas, teremos o caracol Stramonita, que é o predador natural do mexilhão, que terá menor força de predação devido ao aumento do impacto das ondas. Logo, em um costão rochoso próximo a rio que traz mais água das chuvas intensas, sob exposição das ondas que aumentam na ressaca e em um oceano mais quente, teremos aumento de mexilhões e diminuição da predação sobre eles, que faz com este animal se torne mais abundante, domine o espaço e altere toda a biodiversidade natural do ambiente. Este é um exemplo a partir da perspectiva de uma única espécie. Imagine o que ocorre ao agora buscarmos entender os impactos em toda a comunidade. É essencial entender que estes processos não ocorrem da noite para o dia, são processos integrados ao longo do tempo, igual ao nosso desenvolvimento como ser humano e, por isso, precisamos de estudos integrados que permitam entender o que está ocorrendo”.
Uma gaiola experimental utilizada para enclausurar o caracol marinho (Stramonita brasiliensis) junto com sua presa, a craca Tetraclita stalactifera. Prendendo predador e presa juntos dentro de uma gaiola, possibilitou entender como as variações do oceano influenciaram na interação entre os dois através da força de predação (quanto o predador come a presa em determinado tempo)
Coletivamente, esses estudos mostram que espécies costeiras estão intimamente ligadas às características do oceano. Os pesquisadores continuam etapas seguintes do projeto para aprofundar como esses processos climáticos e da biodiversidade impactam e são impactados por diferentes ações da nossa sociedade. “As alterações no oceano ligadas a atividades humanas, como urbanização costeira, poluição e mudanças climáticas, certamente impactarão as espécies costeiras e, potencialmente, os benefícios que elas trazem para nós”, afirma Pardal. Segundo Cesar Cordeiro, “investir em ciência e monitoramento passa a ser ainda mais essencial para que possamos entender as alterações que vão ocorrer nos próximos anos e décadas e como isso pode influenciar na cadeia de pesca, na economia, na saúde do oceano e que, de todas as formas, impactam a nossa sociedade”.
Sobre a pesquisa e os autores
O artigo Environmental factors have stronger effects than biotic processes in patterns of intertidal populations along the Southeast coast of Brazil foi publicado na revista Marine Environmental Research em 23 de julho e é mais um dos trabalhos de uma série de publicações recentes deste projeto. A pesquisa foi realizada por pesquisadores do Instituto do Mar da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) em parceria com a Universidade Estadual do Norte Fluminense, Centro de Biologia Marinha da USP e universidades do exterior, com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e faz parte do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciência e Tecnologia do Mar da Unifesp.