Por um instante me questionei se no título dessa carta colocaria antes o termo “negra” ou o termo “estudante”, mas logo pensei, “que tolice a minha!”, pois antes de ter o meu diploma, antes de estar na universidade, eu sou negra; antes de abrir a boca para fazer qualquer afirmação sobre quem ou o que sou, é uma negra que veem; quando passo por humilhações como ser perseguida por um segurança em um shopping ou museu, quando me olham exalando nojo, me fazem os mais baixos julgamentos, quando me interesso por um garoto de uma etnia qualquer e penso que há a possibilidade de ser rejeitada por ele ou sua família, não é por ser estudante, mas por ser negra. Ora, o estudo implica diretamente as possibilidades de se conseguir um bom emprego, mas vejam, para muitas empresas, ser negro também se faz um fator determinante, não para que seja contratado, mas para imediata exclusão.
Poderia dizer que sou apenas mais uma garota negra estudante universitária, mas geraria a falsa impressão de que somos muitas, quando na verdade somos uma mísera porcentagem da população negra que pode se dar ao luxo das vivências acadêmicas.
Sempre me perguntei o motivo de, para tanta gente, minha cor fazer tanta diferença. Até hoje não consegui encontrar uma resposta racional e bem fundamentada. Seria possível, nessa carta, tentar explicar tais atos pela psicanálise, pela psicologia sócio-histórica ou pelo mais puro marxismo, mas optei apenas por apelar ao respeito à dignidade humana, que tanto se admira em teoria, mas tão pouco se vê na prática.
Não tente determinar o meu lugar, não tente negar o lugar que escolhi como meu, porque ainda que caia e assim permaneça por um tempo, eu vou me levantar e encontrarei outra forma para buscar o que é meu por direito. Canso de ouvir discursos apelando ao esforço individual, afirmando que “se um é capaz, por que os demais não o são?”. Nessa hora respiro fundo e penso se de fato se trata de uma cegueira política crônica ou simples falta de interesse em tentar compreender que as pessoas são diferentes em suas experiências, contexto histórico, cultural, familiar, social e oportunidades. Quem dera todos pudessem encontrar as mesmas oportunidades no caminho e quanto eu lamento por tantos estarem tão absortos nas ideologias que os inferiorizam, que não sejam nem ao menos capazes de enxergar uma oportunidade.
Me questionei durante a escrita se assinaria a carta, pois para alguns, saber sobre o autor é importante, mas para outros uma negrinha nada mais é que uma negrinha e por tratar-se de uma negrinha, pouco importa quem escreveu - leia negrinha como bicha, traveco, judeuzinho, gordo nojento, tribufu, puta, favelado, mongoloide, cabeça chata, aidético, enfim, conforme mandar o gosto do leitor.
Ser negra, mulher, pobre, à margem dos padrões de beleza, me faz estar na base da pirâmide social. Isso poderia me fazer chorar, e de fato já me fez por muitas vezes e me fez sofrer a um ponto que não sou capaz de expressar, mas minhas lágrimas já se secaram, às vezes algumas ainda teimam em cair, às vezes ainda tenho vontade de viver em um mundo paralelo onde fenótipo ou características inofensivas das pessoas não se façam motivo para que sejam odiadas (características que em sua essência não são, mas que pela intolerância se configuram como motivo para sofrimento).
Não me vejam como uma histérica melodramática que faz apelos aos vossos corações, me coloco como como qualquer pessoa que exige ser respeitada e questiona a intolerância, seja em sua forma mais branda ou brutal. Não tento justificar o opressor, olho pela condição do oprimido; acho fácil falar em vitimização quando não se é o alvo, só quem sente na pele a dor do racismo, da homofobia ou de qualquer opressão é que sabe o que sente. As pessoas trazem marcas diferentes em sua história, são sensíveis para coisas diferentes, em níveis diferentes, portanto não é você ou eu quem deve determinar o quanto uma pessoa deve sofrer por uma determinada situação.
Se você vê isso como vitimização, eu te vejo como indiferente, como carente de empatia; é a mesma cena vista por olhares diferentes. Felizmente eu pude aprender a quando olhar determinada situação, contextualizá-la socio-historicamente, não mais vê-la de forma isolada e mais que isso, tentar sempre me colocar no lugar do outro (independente de poder um dia vir ou não a passar por tal situação). Me canso de ver a sutil e dissimulada reafirmação de lugares e papeis sociais (mesmo que o sujeito que lidere essa ação não o faça de forma consciente). Sei que ninguém está livre de agir de forma preconceituosa, e não isento a mim mesma dessa possibilidade. A diferença está no fato de se acomodar a isso ou de por meio de um exercício diário confrontar esses conceitos pré-estabelecidos. Ser preconceituoso não é exclusividade aos discípulos de Hitler, mas pode permear o cotidiano de uma pessoa qualquer; enquanto não se for capaz de admitir tais sentimentos em si próprio, mesmo que doa, nunca se poderá mudá-los.
Em uma sociedade em que se nega enxergar as imensas desigualdades, desejar equidade é “pedir para sofrer”. Penso que esse comportamento/sentimento que se chama de vitimização possa ser sucintamente explicado pelo provérbio popular “gato escaldado tem medo água fria!”. De fato atitudes agressivas não me agradam, mas percebo que quando as pessoas têm seus direitos frequentemente negados, quando suas necessidades são tratadas como menos dignas, como questões secundárias, tendem a cair em insensatez. É comum ainda, quando me deparo com esses enfrentamentos, que eu me chateie e me feche, mas há quem coloque pra fora sua agressividade na tentativa de preservar seus direitos, sua dignidade e isso eu não vejo como vitimização, muito pelo contrário, vejo como coragem e disposição pra luta!
Peço licença e escrevo essa carta em nome de toda a escória social que polui as ruas em que caminha a classe média brasileira.
Atenciosamente,
Negrinha