Terça, 22 Novembro 2016 08:36

Sociedade, universidade pública e questão racial

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Andrea Almeida Torres

Em tempos de judicialização dos conflitos sociais, acusações de racismo institucional e criminalização de estudantes acontecem na Unifesp - Campus Baixada Santista. Tempos de discussão mais do que necessária, e de forma mais participativa possível, sobre o espaço universitário aberto à comunidade para seu uso, assim como sobre a segurança que queremos nos campi. A questão racial na sociedade brasileira, na universidade federal, virou caso de polícia.

Criminalizar estudantes não é o papel da universidade em sua missão de formar futuros/as cidadãos/ãs e profissionais. Debater a questão racial na universidade pública trata-se de defender o acesso à instituição e as condições de permanência, com ensino, pesquisa e extensão de qualidade. Essa formação constitui-se de processos educativos, contínuos e transversais que perpassam o conjunto dos conhecimentos desenvolvidos no universo acadêmico e o respeito aos direitos humanos. Ela deve constar como princípio do projeto político-pedagógico dos cursos e aprimoramentos, assim como nas diretrizes da gestão acadêmico-administrativa. Isso porque é também dever da universidade combater os preconceitos, prevenir as possíveis atitudes discriminatórias e excludentes.

Para garantir a totalidade nas reflexões aqui presentes, sobre a sociedade e universidade que queremos, que se posiciona contra o racismo e outros tantos preconceitos e discriminações, não deixaremos cair no esquecimento as características da formação sócio-histórica, política e cultural brasileira: nossas bases coloniais e de exploração de classe, gênero, cor, etnia – resquícios da nossa herança “eurobranca”. E por mais que se negue no discurso, a cultura racista no Brasil ainda é preponderante, mesmo com a nossa mais do que visível miscigenação. Desigualdade social e racismo são duas faces da mesma moeda em nossa sociedade. Uma parcela considerável da população enfrenta cotidianamente esta realidade de violências e violações de direitos, principalmente os jovens negros e indígenas, de baixa renda, das regiões periféricas e desassistidas pelo poder público.

Somos todos socializados em uma ideologia discriminatória de que o/a negro/a é menos capaz, menos cidadão, sempre vistos pela ótica burguesa como “a cor da classe perigosa”. Foi possível retratar isso no recente episódio, quando do impedimento, pela polícia, de acesso de jovens negros e não brancos da periferia do Estado do Rio de Janeiro ao chegar de ônibus às praias da zona sul: “Acham que nós somos ladrões porque somos pretos” - retrato fiel de um higienismo social em curso sob o discurso racista de uma cultura dominante da falsa superioridade branca.

É preciso, portanto, desconstruir cotidianamente em todas as dimensões da vida social e das instituições, os referenciais preconceituosos enraizados culturalmente na sociedade brasileira, pois o preconceito é um julgamento a priori, superficial, pouco refletido, que valora pejorativamente; é intolerante, leva a atitudes hostis frente ao diferente que chamamos de discriminação. Isso porque o modelo que em geral orienta o pensamento social conservador no Brasil e em boa parte do mundo, é o do homem, branco, adulto, ocidental, heterossexual e dono de patrimônio. Pairamos na falsa compreensão de que somos um país caloroso, harmônico e de tolerância com as diferenças étnico-raciais e de gênero.

É mister da universidade que um fato ofensivo a qualquer membro da comunidade não desrespeite direitos e que os enfrentamentos dos conflitos superem a lógica da criminalização e penalização, com medidas alternativas e mais eficazes, como já são propostas em âmbito judicial, a modalidade “Justiça Restaurativa”. É necessário romper com a ordem punitiva como única possibilidade de responsabilização, pois o que realmente conseguiremos de justiça e reconhecimento dos valores da sociabilidade apenas criminalizando e penalizando? Qual será a efetiva transformação das consciências e das atitudes?

Como princípio, os direitos humanos possuem em si mesmos uma concepção de universalidade, ou seja, de todos e para todos, em quaisquer circunstâncias e contextos sociais, políticos, econômicos e culturais. Defender os direitos humanos é estabelecer uma cultura que se baseia nos valores do diálogo e respeito. O princípio da Justiça Restaurativa não é apenas o de mediar conflitos. Os atritos são reais, concretos e devem ser explicitados pelos sujeitos agredidos e agressores.

A situação de injustiça, violência ou violação não deve ser abafada ou minimizada, para que a reparação seja concreta e propositiva em termos de mudança de atitudes concretas. Agredidos e agressores enfrentam esse conflito pelo diálogo reparador das relações e, obviamente, nada garante que seja tranquilo esse enfrentamento. Porém importa a retratação e a postura de mudança. Trata-se de um princípio de não responder ao mal feito com um mal maior. Em termos jurídicos, a Justiça Restaurativa baseia-se em um procedimento de consenso, em que a vítima e agressor, assim como outras pessoas ou membros da comunidade afetados pela infração, participam coletiva e ativamente na construção de soluções dos traumas e perdas causados.

Reparar o dano é o princípio dessa metodologia, além de fazer com que as responsabilidades sejam assumidas. Trata-se de um modelo progressista na resolução dos conflitos, distanciando-se da judicialização formal, que uma universidade pública, socialmente referenciada que queremos construir, pode assumir em sua missão educacional.

A prof.ª Dr.ª Andrea Almeida Torres é do departamento de Políticas Públicas e Saúde Coletiva da Unifesp – Campus Baixada Santista. Participa da coordenação do Núcleo de Apoio ao Estudante - NAE/BS e do Núcleo de Estudos, Pesquisa e Extensão em Sistema Punitivo, Justiça Criminal e Direitos Humanos (Gepex.dh)

 

imagem com as capas das revistas Entreteses disponíveis em www.unifesp.br/entreteses

 

entrementes 12 nov 2015  Sumário do número 12

Lido 8995 vezes Última modificação em Segunda, 28 Novembro 2016 13:37

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