O século dos desequilíbrios
Cristina Soreanu Pecequilo
No início do mês de outubro a conclusão das negociações da Parceria Transpacifico (TPP, o Pivô Asiático) foi alardeada como prova do sucesso da cooperação global. A criação da área de livre comércio que une nações dos continentes asiático e americano foi anunciada como a maior do mundo. Sustentando essa avaliação, apresentavam-se em sua lista de membros: Estados Unidos, Japão, Canadá, México, Peru, Chile, Cingapura, Austrália, Nova Zelândia, Malásia, Vietnã e Brunei. Anunciava-se que esse passo era apenas o primeiro da nova experiência de acordos macrorregionais, que incluem as negociações secretas em andamento da Parceria Transatlântico de Comércio e Investimentos (TTIP, o Pivô Transatlântico), com previsão de conclusão em dezembro de 2015.
O mundo estaria caminhando em definitivo para uma era de prosperidade e progresso sustentada na liberalização dos fluxos de mercadorias, provando a consolidação da interdependência e da transnacionalização. A globalização, afinal, estaria voltando a seus rumos, após alguns obstáculos avaliados como menores pelos defensores dessas teses. E quais teriam sido essas barreiras?
As crises nos Estados Unidos, de George W. Bush, e na União Europeia, que eclodiram no biênio 2007/2008, foram geradas por erros de governantes específicos. São exemplos as guerras contra o terrorismo no Afeganistão e no Iraque promovidas pelos estadunidenses depois dos atentados de 11 de setembro de 2011, que levaram a gastos excessivos, com perda de foco econômico. Por sua vez, a crise da Zona do Euro fora gerada pela irresponsabilidade dos PIIGS (Portugal, Irlanda, Itália, Grécia e Espanha), ao maquiar suas contas públicas para poder pertencer ao seleto clube de nações da moeda comum.
O fato de que agências de rating conhecidas, que avaliam se os países seriam ou não confiáveis economicamente, como Standard Poor’s, Fitch Ratings e Moody´s (as mesmas que rebaixaram o Brasil), terem dado nota máxima aos PIIGS pouco antes da sua implosão econômico-social é ignorado, assim como a decisão da União Europeia de aceitá-los no Euro. Os déficits estadunidenses, as ameaças periódicas de que os Estados Unidos “fechem” o governo por não terem dinheiro, é outro fato encoberto. De prático, anunciava-se: o mundo estava mudando e o Brasil mais uma vez ficava de fora.
Ora, do TPP e do TTIP não é só o Brasil que fica de fora: os demais “RICS” (Rússia, Índia, China e África do Sul) estão alijados desses processos, assim como a Organização Mundial de Comércio (OMC), instituição multilateral global que zela pelo comércio internacional livre e justo.
Nenhum desses acordos exige que padrões ambientais, trabalhistas e sociais elevados sejam seguidos pelos membros, colocando em xeque conquistas nesses setores para impedir a exploração indevida de mão de obra e garantir o desenvolvimento sustentável. Muito pelo contrário, eles traçam suas regras, ignorando esses padrões, assim como iniciativas das Nações Unidas previstas nos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) que sucedem aos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM). Apesar de pouco noticiado, o TPP já foi alvo de protestos de trabalhadores, especificamente na Alemanha.
Esta é uma era de sombras, que ignora as fragmentações contemporâneas, simbólicas, dos fracassos do século XXI e encobre uma guerra de posições. Tal disputa se manifesta em escala global, com tentativas do eixo de poder dominante, Estados Unidos-União Europeia, de barrar a ascensão dos emergentes, sintetizados no acrônimo BRICS, enquanto estes tentam traçar um modelo político-econômico de desenvolvimento e igualdade. Ambos são vulneráveis: seja por seu desejo de manter poder e suas deficiências internas, seja por sua mescla de força e fraqueza. Isso gera instabilidade, pois predomina o vácuo de poder entre os que declinam no eixo Norte, e os que não ascenderam plenamente no eixo Sul.
Ao mesmo tempo em que cria mecanismos que desafiam a ordem, como o Novo Banco do Desenvolvimento, instituição financeira organizada para o crescimento dos BRICS, e o Banco Asiático de Desenvolvimento em Infraestrutura, o Sul permanece sujeito às variações do dólar, dos fluxos de crédito e de investimentos ocidentais. A contrarreação hegemônica dos Estados Unidos não se limita a essa esfera, incluindo sua dimensão tradicional de poder: a projeção estratégica, reforçada pela criação de novos comandos militares, como o da África, que permitem sua rápida presença bélica em todos os continentes.
Houve o aumento de investimentos em regiões chave para os emergentes, como o Atlântico Sul, zona de produção de gás, petróleo do pré-sal e rota de passagem e intensificação do conflito contra as drogas na Colômbia e no México. Nunca é demais lembrar que desde o fim da Guerra Fria, em 1989, a superpotência restante esteve envolvida em quase uma dezena de guerras e intervenções com (ou sem) o aval das Nações Unidas (algumas justificadas pelo combate ao terrorismo, outras por razões humanitárias associadas à “Responsabilidade de Proteger - R2P”): Iraque (1990/1991), Ex-Iugoslávia (1992/1995), Kosovo (1999), Afeganistão (2001/2014), Iraque (2003/2011), Líbia (2011), sem mencionar os bombardeios unilaterais ao Estado Islâmico iniciados em 2014.
Como resultado, ondas de refugiados chegam à União Europeia pelo mar e pela terra, aos quais não se aplica a “R2P”, e se esquecem das convenções de direito internacional. Iniciativas como as do ODM e dos ODS são adiadas ou apenas usadas como retórica diante dos novos blocos econômicos. A xenofobia cresce, ao lado da intolerância, provocada pelo medo do diferente e da mudança. Similar à bipolaridade, dois modelos se confrontam: os do Norte e os do Sul. Muitos falam que estaríamos chegando ao futuro. Não estamos, permanecemos no passado vivendo guerras presentes: ninguém ganha e todos perdem no século dos desequilíbrios.
Estudantes criam Memorial Digital do Refugiado
Projeto visa facilitar a integração na sociedade brasileira
José Luiz Guerra
Um grupo de alunos da Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas do Campus Guarulhos da Unifesp (EFLCH/Unifesp) criou o Memorial Digital do Refugiado (MemoRef), projeto que visa inserir refugiados na sociedade brasileira, por meio de aulas de português, intervenções culturais e registros escritos, fotográficos e audiovisuais produzidos com base nos trabalhos, além de integrar a comunidade acadêmica a um projeto cultural de cunho humanitário.
A ideia surgiu a partir das reflexões da discente de Letras da EFLCH/Unifesp e coordenadora do projeto, Marina Reinoldes, que ministrava voluntariamente aulas na ONG Oásis Solidário, na mesquita do Pari. “Comecei a dar aula em maio e fiz uma publicação chamando outros estudantes da Unifesp para ajudarem. Como a procura foi grande, decidi tentar levar o projeto para a EFLCH/Unifesp e começamos a organizá-lo”, explica. Segundo ela, o formato do MemoRef foi pensado durante cerca de cinco meses.
O MemoRef trabalha em três eixos: o primeiro, ministrando aulas gratuitas de português para os refugiados, usando o idioma como meio principal de inserção dos mesmos na sociedade; o segundo, promovendo ações culturais para promover a integralização dos refugiados com a comunidade acadêmica; e o terceiro, elaborando um banco de dados construído a partir das ações culturais, que poderá servir como fonte de dados para futuras pesquisas acadêmicas.
O material didático, formulado pela equipe do MemoRef, traz lições que ensinam os alunos a usarem expressões cotidianas, conhecerem os nomes dos estados brasileiros e de objetos comuns. O grupo de ensino é atualmente formado por 11 membros, sendo uma coordenadora, uma vice-coordenadora, cinco organizadores e quatro monitores.
As aulas tiveram início em 02 de setembro, contemplando 15 refugiados vindos da Nigéria, Camarões e Síria, todos encaminhados pela Cáritas Arquidiocesana de São Paulo. Além das aulas de português, que ensinam o básico para que os alunos possam se virar em situações cotidianas, os estrangeiros são estimulados a conhecer a cultura brasileira na prática e interagir não só presencialmente, como também à distância, utilizando redes sociais, além de ter contato com particularidades da cultura nacional, como caldo de cana, caipirinha e churrasco. Em uma das atividades extraclasse, os alunos participaram de uma apresentação da Bateria Malagueta, grupo instrumental da EFLCH/Unifesp, tendo a oportunidade de conhecer os nomes dos instrumentos e tocar junto com os ritmistas.
Ingrid Albuquerque, vice-coordenadora do grupo, vê o trabalho não apenas como aulas de português, mas como uma ação de perspectiva humanitária e recíproca de ambos os lados. “Eles sentem a energia que nós passamos para eles e se sentem privilegiados quando veem que nós sabemos alguma música ou algum tópico de cultura deles”.
Dentro da Unifesp, o projeto conta com o apoio do Laboratório Interdisciplinar de Formação de Educadores (Life), ambiente voltado à realização de práticas pedagógicas, da Cátedra Sérgio Vieira de Mello, que auxiliará na seleção de dados para o memorial, realizará algumas atividades específicas sobre refúgio e mediação com o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur) e da biblioteca da Unifesp, que cederá espaço para a realização de uma exposição fotográfica que apresentará o olhar do refugiado sobre a comunidade em que vive.
As coordenadoras citam os diferentes níveis de português como uma das dificuldades a serem enfrentadas no trabalho. “Alguns alunos estão com muitas dificuldades, pois só sabem o árabe e temos de dar uma atenção especial a eles. Em contraposição alguns querem entrar no ensino superior e estamos procurando atender essa necessidade”, diz Ingrid. Os alunos que têm mais dificuldades são acompanhados mais de perto por um dos monitores que dão o suporte aos professores.
Quando redigido, o projeto do MemoRef previa o atendimento a um grupo de 15 refugiados em aulas que iriam de setembro a dezembro de 2015, com possibilidade de abertura de nova turma em 2016. No entanto, a aprovação do projeto no programa Pró-cultura da Unifesp e a visibilidade que a ação ganhou dentro e fora da universidade fizeram com que a organização sonhasse mais alto. “Escrevemos o projeto até dezembro porque estávamos com medo de pensar muito alto e não conseguirmos fazer o que estávamos propondo. No entanto, bateu aquele arrependimento, porque estamos vendo que é possível organizar e por isso vamos procurar outros meios de continuar o projeto”, explica Marina.
Atualmente, a cidade de Guarulhos abriga 242 refugiados, 72 deles chegaram em 2015. A intenção do MemoRef é a de que, até o final de 2016, esses refugiados passem pelo curso, meta que Marina encara como um sonho. “Espero que nós consigamos atender a essa demanda, pois faz parte do papel da universidade. É algo que eles precisam e é uma forma de nós retribuirmos à comunidade todo o aprendizado que a gente tem dentro da universidade”, finaliza.
Luc Tadieu Kovam, de 45 anos, veio de Camarões e é um dos estudantes do MemoRef. Ele afirma que as aulas são boas, assim como os professores. Por ter o francês como idioma nativo, sente um pouco de dificuldade com o português. “Entender é fácil. Difícil é falar. Consigo fazer tudo sozinho e quando preciso de algo que não sei o nome, aponto”. Para ele, a evolução é nítida, pois quando chegou não sabia nenhuma palavra em português. “Como você vai se relacionar com uma pessoa sem falar a língua dela? Você tem que aprender”, diz.
Já o nigeriano Ogurieti Marvin Tunde, de 30 anos, está achando fácil aprender o português e afirma que recebe muita ajuda dos professores. Assim como Luc, ele também já consegue pedir as coisas em português, mas acha o idioma difícil em comparação com o inglês, sua língua nativa. “O vocabulário do português é muito diferente e falar e escrever ainda é muito difícil”, completa.
Carta de uma negra estudante
Por um instante me questionei se no título dessa carta colocaria antes o termo “negra” ou o termo “estudante”, mas logo pensei, “que tolice a minha!”, pois antes de ter o meu diploma, antes de estar na universidade, eu sou negra; antes de abrir a boca para fazer qualquer afirmação sobre quem ou o que sou, é uma negra que veem; quando passo por humilhações como ser perseguida por um segurança em um shopping ou museu, quando me olham exalando nojo, me fazem os mais baixos julgamentos, quando me interesso por um garoto de uma etnia qualquer e penso que há a possibilidade de ser rejeitada por ele ou sua família, não é por ser estudante, mas por ser negra. Ora, o estudo implica diretamente as possibilidades de se conseguir um bom emprego, mas vejam, para muitas empresas, ser negro também se faz um fator determinante, não para que seja contratado, mas para imediata exclusão.
Poderia dizer que sou apenas mais uma garota negra estudante universitária, mas geraria a falsa impressão de que somos muitas, quando na verdade somos uma mísera porcentagem da população negra que pode se dar ao luxo das vivências acadêmicas.
Sempre me perguntei o motivo de, para tanta gente, minha cor fazer tanta diferença. Até hoje não consegui encontrar uma resposta racional e bem fundamentada. Seria possível, nessa carta, tentar explicar tais atos pela psicanálise, pela psicologia sócio-histórica ou pelo mais puro marxismo, mas optei apenas por apelar ao respeito à dignidade humana, que tanto se admira em teoria, mas tão pouco se vê na prática.
Não tente determinar o meu lugar, não tente negar o lugar que escolhi como meu, porque ainda que caia e assim permaneça por um tempo, eu vou me levantar e encontrarei outra forma para buscar o que é meu por direito. Canso de ouvir discursos apelando ao esforço individual, afirmando que “se um é capaz, por que os demais não o são?”. Nessa hora respiro fundo e penso se de fato se trata de uma cegueira política crônica ou simples falta de interesse em tentar compreender que as pessoas são diferentes em suas experiências, contexto histórico, cultural, familiar, social e oportunidades. Quem dera todos pudessem encontrar as mesmas oportunidades no caminho e quanto eu lamento por tantos estarem tão absortos nas ideologias que os inferiorizam, que não sejam nem ao menos capazes de enxergar uma oportunidade.
Me questionei durante a escrita se assinaria a carta, pois para alguns, saber sobre o autor é importante, mas para outros uma negrinha nada mais é que uma negrinha e por tratar-se de uma negrinha, pouco importa quem escreveu - leia negrinha como bicha, traveco, judeuzinho, gordo nojento, tribufu, puta, favelado, mongoloide, cabeça chata, aidético, enfim, conforme mandar o gosto do leitor.
Ser negra, mulher, pobre, à margem dos padrões de beleza, me faz estar na base da pirâmide social. Isso poderia me fazer chorar, e de fato já me fez por muitas vezes e me fez sofrer a um ponto que não sou capaz de expressar, mas minhas lágrimas já se secaram, às vezes algumas ainda teimam em cair, às vezes ainda tenho vontade de viver em um mundo paralelo onde fenótipo ou características inofensivas das pessoas não se façam motivo para que sejam odiadas (características que em sua essência não são, mas que pela intolerância se configuram como motivo para sofrimento).
Não me vejam como uma histérica melodramática que faz apelos aos vossos corações, me coloco como como qualquer pessoa que exige ser respeitada e questiona a intolerância, seja em sua forma mais branda ou brutal. Não tento justificar o opressor, olho pela condição do oprimido; acho fácil falar em vitimização quando não se é o alvo, só quem sente na pele a dor do racismo, da homofobia ou de qualquer opressão é que sabe o que sente. As pessoas trazem marcas diferentes em sua história, são sensíveis para coisas diferentes, em níveis diferentes, portanto não é você ou eu quem deve determinar o quanto uma pessoa deve sofrer por uma determinada situação.
Se você vê isso como vitimização, eu te vejo como indiferente, como carente de empatia; é a mesma cena vista por olhares diferentes. Felizmente eu pude aprender a quando olhar determinada situação, contextualizá-la socio-historicamente, não mais vê-la de forma isolada e mais que isso, tentar sempre me colocar no lugar do outro (independente de poder um dia vir ou não a passar por tal situação). Me canso de ver a sutil e dissimulada reafirmação de lugares e papeis sociais (mesmo que o sujeito que lidere essa ação não o faça de forma consciente). Sei que ninguém está livre de agir de forma preconceituosa, e não isento a mim mesma dessa possibilidade. A diferença está no fato de se acomodar a isso ou de por meio de um exercício diário confrontar esses conceitos pré-estabelecidos. Ser preconceituoso não é exclusividade aos discípulos de Hitler, mas pode permear o cotidiano de uma pessoa qualquer; enquanto não se for capaz de admitir tais sentimentos em si próprio, mesmo que doa, nunca se poderá mudá-los.
Em uma sociedade em que se nega enxergar as imensas desigualdades, desejar equidade é “pedir para sofrer”. Penso que esse comportamento/sentimento que se chama de vitimização possa ser sucintamente explicado pelo provérbio popular “gato escaldado tem medo água fria!”. De fato atitudes agressivas não me agradam, mas percebo que quando as pessoas têm seus direitos frequentemente negados, quando suas necessidades são tratadas como menos dignas, como questões secundárias, tendem a cair em insensatez. É comum ainda, quando me deparo com esses enfrentamentos, que eu me chateie e me feche, mas há quem coloque pra fora sua agressividade na tentativa de preservar seus direitos, sua dignidade e isso eu não vejo como vitimização, muito pelo contrário, vejo como coragem e disposição pra luta!
Peço licença e escrevo essa carta em nome de toda a escória social que polui as ruas em que caminha a classe média brasileira.
Atenciosamente,
Negrinha
Sociedade, universidade pública e questão racial
Andrea Almeida Torres
Em tempos de judicialização dos conflitos sociais, acusações de racismo institucional e criminalização de estudantes acontecem na Unifesp - Campus Baixada Santista. Tempos de discussão mais do que necessária, e de forma mais participativa possível, sobre o espaço universitário aberto à comunidade para seu uso, assim como sobre a segurança que queremos nos campi. A questão racial na sociedade brasileira, na universidade federal, virou caso de polícia.
Criminalizar estudantes não é o papel da universidade em sua missão de formar futuros/as cidadãos/ãs e profissionais. Debater a questão racial na universidade pública trata-se de defender o acesso à instituição e as condições de permanência, com ensino, pesquisa e extensão de qualidade. Essa formação constitui-se de processos educativos, contínuos e transversais que perpassam o conjunto dos conhecimentos desenvolvidos no universo acadêmico e o respeito aos direitos humanos. Ela deve constar como princípio do projeto político-pedagógico dos cursos e aprimoramentos, assim como nas diretrizes da gestão acadêmico-administrativa. Isso porque é também dever da universidade combater os preconceitos, prevenir as possíveis atitudes discriminatórias e excludentes.
Para garantir a totalidade nas reflexões aqui presentes, sobre a sociedade e universidade que queremos, que se posiciona contra o racismo e outros tantos preconceitos e discriminações, não deixaremos cair no esquecimento as características da formação sócio-histórica, política e cultural brasileira: nossas bases coloniais e de exploração de classe, gênero, cor, etnia – resquícios da nossa herança “eurobranca”. E por mais que se negue no discurso, a cultura racista no Brasil ainda é preponderante, mesmo com a nossa mais do que visível miscigenação. Desigualdade social e racismo são duas faces da mesma moeda em nossa sociedade. Uma parcela considerável da população enfrenta cotidianamente esta realidade de violências e violações de direitos, principalmente os jovens negros e indígenas, de baixa renda, das regiões periféricas e desassistidas pelo poder público.
Somos todos socializados em uma ideologia discriminatória de que o/a negro/a é menos capaz, menos cidadão, sempre vistos pela ótica burguesa como “a cor da classe perigosa”. Foi possível retratar isso no recente episódio, quando do impedimento, pela polícia, de acesso de jovens negros e não brancos da periferia do Estado do Rio de Janeiro ao chegar de ônibus às praias da zona sul: “Acham que nós somos ladrões porque somos pretos” - retrato fiel de um higienismo social em curso sob o discurso racista de uma cultura dominante da falsa superioridade branca.
É preciso, portanto, desconstruir cotidianamente em todas as dimensões da vida social e das instituições, os referenciais preconceituosos enraizados culturalmente na sociedade brasileira, pois o preconceito é um julgamento a priori, superficial, pouco refletido, que valora pejorativamente; é intolerante, leva a atitudes hostis frente ao diferente que chamamos de discriminação. Isso porque o modelo que em geral orienta o pensamento social conservador no Brasil e em boa parte do mundo, é o do homem, branco, adulto, ocidental, heterossexual e dono de patrimônio. Pairamos na falsa compreensão de que somos um país caloroso, harmônico e de tolerância com as diferenças étnico-raciais e de gênero.
É mister da universidade que um fato ofensivo a qualquer membro da comunidade não desrespeite direitos e que os enfrentamentos dos conflitos superem a lógica da criminalização e penalização, com medidas alternativas e mais eficazes, como já são propostas em âmbito judicial, a modalidade “Justiça Restaurativa”. É necessário romper com a ordem punitiva como única possibilidade de responsabilização, pois o que realmente conseguiremos de justiça e reconhecimento dos valores da sociabilidade apenas criminalizando e penalizando? Qual será a efetiva transformação das consciências e das atitudes?
Como princípio, os direitos humanos possuem em si mesmos uma concepção de universalidade, ou seja, de todos e para todos, em quaisquer circunstâncias e contextos sociais, políticos, econômicos e culturais. Defender os direitos humanos é estabelecer uma cultura que se baseia nos valores do diálogo e respeito. O princípio da Justiça Restaurativa não é apenas o de mediar conflitos. Os atritos são reais, concretos e devem ser explicitados pelos sujeitos agredidos e agressores.
A situação de injustiça, violência ou violação não deve ser abafada ou minimizada, para que a reparação seja concreta e propositiva em termos de mudança de atitudes concretas. Agredidos e agressores enfrentam esse conflito pelo diálogo reparador das relações e, obviamente, nada garante que seja tranquilo esse enfrentamento. Porém importa a retratação e a postura de mudança. Trata-se de um princípio de não responder ao mal feito com um mal maior. Em termos jurídicos, a Justiça Restaurativa baseia-se em um procedimento de consenso, em que a vítima e agressor, assim como outras pessoas ou membros da comunidade afetados pela infração, participam coletiva e ativamente na construção de soluções dos traumas e perdas causados.
Reparar o dano é o princípio dessa metodologia, além de fazer com que as responsabilidades sejam assumidas. Trata-se de um modelo progressista na resolução dos conflitos, distanciando-se da judicialização formal, que uma universidade pública, socialmente referenciada que queremos construir, pode assumir em sua missão educacional.