Reitoria propõe o diálogo
Larissa Marolla
O consumo e o tráfico de drogas, lícitas e ilícitas, constituem uma questão de grande complexidade, que deve ser discutida, analisada e debatida como tal pela universidade, afirma Andrea Rabinovici, pró-reitora de Assuntos Estudantis (Prae) da Unifesp. Com o objetivo de promover o diálogo e troca de ideias e informações, a Prae organizará seminários e debates sobre o tema, no segundo semestre de 2013. Andrea explica, em seguida, as razões da Reitoria.
Entrementes – Porque a reitoria decidiu organizar o debate sobre a questão das drogas?
Andrea Rabinovici – Trata-se de um evidente problema social, político, cultural, econômico e policial, que afeta a vida dos brasileiros e também a comunidade da Unifesp, já que estamos inseridos nesse contexto. Entendemos ser o papel da universidade colaborar e contribuir com reflexões que ajudem a equacionar e, eventualmente, oferecer perspectivas de solução para os grandes problemas provocados pelo consumo e comércio das drogas, lícitas e ilícitas.
E – A Reitoria tem uma posição definida sobre as grandes questões colocadas em debate, como a legalização do comércio e consumo das drogas, a política de redução de danos e o internamento compulsório?
AR – Não temos uma posição sobre esses pontos, até porque sabemos que dentro de nossa comunidade há pesquisadores, médicos e cientistas que defendem posições muito distintas, eventualmente até antagônicas, todos ancorados em argumentos sólidos e respeitáveis. Por isso, a nossa posição é a de estimular o diálogo e a reflexão, com o objetivo de contribuir para que a sociedade encontre os melhores caminhos. Esse é o nosso papel.
E- Como a reitoria se posiciona face do eventual uso de drogas no espaço físico da universidade?
AR – Se nós acreditamos que o debate é legítimo e necessário, isso não quer dizer que nós ignoramos as leis brasileiras. Ter autonomia universitária não significa estarmos acima das leis. Elas devem ser respeitadas e cumpridas. Aqueles que acreditam que o uso das drogas deva ser legalizado, ou descriminalizado, têm todo o direito – e, por que não, o dever – de batalhar para que isso aconteça. Mas, enquanto as drogas forem proibidas, devemos estar cientes das consequências e penalidades.
E – Como será organizado o debate dentro da Unifesp?
AR – Vamos elaborar um calendário de atividades em todos os campi, no segundo semestre, e esperamos contar, para tanto, com a participação e o apoio das entidades representativas de estudantes, professores e funcionários. Vamos ouvir o que dizem os especialistas da própria Unifesp, além de convidados que possam contribuir para o debate.
Lançamentos da Editora FAP-Unifesp
Olhares Que Constroem
A criança autista das teorias, das intervenções e das famílias
Rosa Maria Monteiro López
“A que interesses deve responder a oferta de auxílio a crianças que se considera que apresentam algum grau de autismo e suas famílias? O objetivo maior, em todos os casos, não deveria ser o de explorar e desenvolver o mais plenamente possível as potencialidades de tais crianças, em todos os sentidos?” Embora tais indagações não estejam colocadas explicitamente de saída, elas percorrem toda esta obra de Rosa Maria Monteiro López.
A autora, antropóloga com doutorado em saúde coletiva, embasada em sólidos conceitos teóricos e extensa observação empírica, empreende a análise de duas instituições de atendimento a crianças autistas, que representam duas concepções distintas a respeito do autismo, a comportamental e a psicanalítica, e suas repercussões na vida das crianças, nas famílias e nos profissionais, fornecendo um amplo panorama dos debates, dilemas e controvérsias sobre o tema na atualidade.
Apoiada em inúmeros relatos e experiências dos envolvidos na “nebulosa autista” – pais, professores, autistas e profissionais da área da saúde –, a obra procura reconstituir trajetos e caminhos que levam a um ou outro tipo de atendimento. Momento e contexto em que se dá o diagnóstico, recusa ou não dos pais em aceitar a condição da criança, encaminhamento dado pelo profissional de saúde e disponibilidade de atendimento nas instituições especializadas, entre outros, são fatores que acabam sendo determinantes no desenvolvimento da potencialidade da criança diagnosticada como autista. Em todos esses fatores o olhar que cada envolvido nesse universo dirige a essa criança tem papel fundamental e decisivo.
O Cego e o Coxo
Historiografia, erudição e retórica no Brasil do século XVIII
Pedro Telles da Silveira
Nesta obra, o autor Pedro Telles da Silveira reconstitui a história da historiografia tal como ocorrida no Brasil colônia. Sua originalidade está em tomar como ponto de referência e de partida as dissertações históricas da Academia Brasílica dos Esquecidos.
Constituída em Salvador (BA) em março de 1724, por convocação do então governador-geral do Brasil, Vasco Fernandes César de Meneses, a Academia Brasílica dos Esquecidos surgiu na esteira de suas congêneres europeias, “para dar a conhecer os talentos que nesta província florescem, e [que] por falta de exercício literário estavam como que desconhecidos”. Em suas conferências, seus membros disputavam certames, produzindo poemas e orações diversos e as tais dissertações históricas em que debatiam pontos duvidosos da história brasílica em vistas de uma resolução. A Academia realizou dezoito conferências, a última em fevereiro de 1725.
Sua apurada análise dos escritos da academia brasileira se desenvolve em três eixos: a produção letrada na Bahia colonial e o papel das academias históricas na Europa; os debates relativos à escrita da história na passagem do século XVII para o século XVIII, quando a preocupação com a erudição reduz o espaço da retórica na historiografia; e a relação entre a crítica em sentido amplo e a erudição crítica. Mostra como, de maneira singular, ao contrário de uma historiografia que pregava caminhos distintos para a erudição e a retórica na constituição da história como disciplina científica, as dissertações históricas da Academia dos Esquecidos conjugaram erudição e retórica na produção de uma historiografia, daí a alusão à imagem do cego e do coxo que se entreajudam (ou se prejudicam mutuamente) – tema do certame literário de sua penúltima conferência.
Desemprego e Protestos Sociais no Brasil
Davisson Cangussu de Souza
Esta coletânea de artigos, organizada por Davisson Cangussu de Souza, professor de Ciências Sociais da Unifesp, vem questionar a ideia, bastante difundida nos dias de hoje, de que a explicação do mundo do trabalho pela teoria marxista está superada: a classe proletária estaria desaparecendo, o papel ativo nas lutas e nos movimentos sociais já não caberia aos trabalhadores e a luta de classes não bastaria para explicar a dinâmica das sociedades capitalistas atuais e suas mudanças.
Partindo da análise de movimentos de protestos sociais contemporâneos, sobretudo brasileiros, mas também de alguns casos argentinos, busca ampliar a compreensão das relações de classe e dos movimentos sociais, assinalando como se constituem, ao lado de movimentos sindicais organizados e atuantes – ainda primordiais para a análise da estrutura e dos conflitos sociais –, outras formas de participação e reivindicação que não se vinculam a essas entidades, mas que se encontram em um contexto de luta de classes.
Retomando por um viés original o conceito de superpopulação relativa desenvolvido por Marx, esses ensaios mostram que os novos movimentos e as novas formas de protestos sociais são protagonizados por trabalhadores não inseridos no mercado formal de trabalho, excluídos da estrutura sindical, que, entretanto, nem por isso estão à margem das relações de classe.
Onde Tem Fumaça Tem Fogo
As lutas pela eliminação da queima da cana-de-açúcar
José Roberto Porto de Andrade Júnior
A prática da queima da palha da cana-de-açúcar nas áreas de cultivo da cana no Estado de São Paulo teve início no começo da década de 1960, visando à diminuição dos custos de produção e ao aumento da produtividade do setor. Se por um lado propiciou benefícios a produtores de cana, por outro trouxe prejuízos ambientais e de saúde pública.
Com a emergência dos movimentos ecossociais, no final da década de 1980, despontaram as lutas pelo fim da queima da cana-de-açucar no Estado de São Paulo, gerando extensas batalhas jurídicas e legislativas, que culminaram, em 2002, na instituição de uma lei que prevê prazos – longos – para o fim da prática e, em 2007, na assinatura de um protocolo, de adesão voluntária, que estabelecia prazos menores, mas não acarretava sanções em caso de descumprimento. Essas medidas não significaram a solução definitiva do problema, candente e atual.
Convicto de que o campo do direito pode e deve fazer algo em prol da natureza e do cidadão, em Onde Tem Fumaça Tem Fogo: As Lutas pela Eliminação da Queima da Cana-de-açúcar, José Roberto Porto de Andrade Júnior faz uma reconstituição inédita do histórico dessa luta no Estado de São Paulo, procurando abarcar todos os seus enfrentamentos. Centrado no direito e em documentos jurídicos - tomados como manifestações de práticas sociais de sujeitos -, e respaldado por mapas, gráficos, referência e fontes, o autor analisa as três fases desse movimento, diferenciadas segundo o modo de atuação de cada um de seus diversos atores sociais. Traça panoramas e propostas para contribuir com a eliminação da queima, vislumbra as perspectivas futuras e faz um apanhado da situação no restante do país.
EPM vai ao Xingu, mas paga um preço por isso
Nos mesmos anos anteriores ao golpe em que Marcos Lindenberg esforçava-se por tornar a EPM o núcleo da nova UFSP, criada ainda durante o governo de Juscelino Kubitschek e sob forte influência dos ventos desenvolvimentistas que seriam reprimidos pelo golpe de 1964, formara-se o departamento de Medicina Preventiva da EPM e nele a atuação do professor Roberto Baruzzi foi sempre muito destacada. Em julho de 1963, ele integrara pela primeira vez uma caravana médica ao Araguaia, resultado de um acordo com os dominicanos da prelazia de Conceição do Araguaia, que atuavam na região, com a intenção de oferecer atendimento à saúde para as populações ribeirinhas e indígenas do Araguaia.
Novas caravanas aconteceriam ainda em 1964 e 1965, mas perderam o apoio fundamental da FAB, que transportava os médicos e alunos da escola e, por isso, deixaram de existir. Da caravana de 1965 participaram o dr. João Paulo Botelho Vieira Filho e o então doutorando Paulo de Lima Pontes. Seus relatórios evidenciam a situação precária de saúde da população e, principalmente, a completa ausência do Estado no atendimento às populações carentes. Os dominicanos que organizaram as caravanas vieram a ser severamente perseguidos pela ditadura. Baruzzi foi contatado pelo regime para conduzir o Projeto Rondon, mas considerou que se tratavam de ações meramente esporádicas que não tinham a necessária continuidade e nem beneficiavam a população efetivamente.
Deste seu incômodo com as ações em atendimento à saúde das populações ribeirinhas e indígenas, e dos seus primeiros contatos com Orlando Villas Bôas em 1965, nasceu o Projeto Xingu, até hoje importante para a Unifesp e para as populações xinguanas. João Paulo Botelho Vieira Filho, por sua vez, continuou a atender às populações indígenas do Araguaia por muitos anos. Durante o regime militar, como suas memórias permitem entrever, houve a chegada dos guerrilheiros à região.
De suas memórias, e também das lembranças de Ricardo e Marília Smith, foi possível refazer a trajetória da professora da EPM Heleneide Resende de Souza Nazareth, irmã da guerrilheira Helenira Resende de Souza Nazareth e, por isso, presa várias vezes para que fornecesse informações sobre o paradeiro da irmã. Voltava bem machucada, contou Ricardo. Outra das irmãs, Helenalda, de quem pudemos colher depoimento, embora não fosse ligada à escola, vinha sempre às festas do departamento de Genética e lembra que nas vezes em que foram presas, fotos das festas eram mostradas pelos agentes da repressão.
Estavam, todos os brasileiros, em suspeição... E como João Paulo conseguia entrar no Araguaia? Segundo seu depoimento, porque era parente do general Carlos de Meira Mattos, aquele que produziria o Relatório da Comissão Meira Mattos e que apontaria ao governo militar mecanismos de controle sobre o movimento estudantil. Em meio a tanta repressão, João Paulo encontrou um caminho para atender às populações indígenas, e lembra que parte dos remédios que levava chegavam, também, aos guerrilheiros.
São histórias como essas que estamos narrando no relatório. Histórias dos estudantes presos, de professores e funcionários presos e/ou afastados, histórias de pessoas que resistiram silenciosamente, que protegeram colegas independentemente do seu posicionamento político, mas, também, histórias daqueles que optaram por defender o regime, que aceitaram perseguir colegas.
Unifesp inaugura primeiro curso de graduação a distância
Alunos de Tecnologia em Design Educacional terão nova opção a partir de 2017
Mayara Toni
A Unifesp ofertará, a partir de 2017, seu primeiro curso de graduação a distância, de Tecnologia em Design Educacional, proposto pelo Núcleo da Universidade Aberta do Brasil (UAB). O curso é inédito na modalidade na Unifesp, que até o momento contava apenas com cursos de pós-graduação lato sensu não presencial.
O designer educacional possui um perfil multi e interdisciplinar e suas ações permeiam os campos da Educação, da Tecnologia, Design, Comunicação e a Gestão de Processos. O profissional é alguém que planeja, coordena, implementa e avalia projetos educacionais on-line, presenciais ou híbridos. Nas suas ações, deve buscar construir o diálogo com o aluno, mediado por recursos digitais e eletrônicos, em parceria com os professores, somando suas competências ao conhecimento dos docentes em relação aos conteúdos, metodologias e aos processos didáticos.
A profissão, oficialmente descrita e incorporada à Classificação Brasileira de Ocupações (CBO) em 2008, tinha formação somente em cursos de pós-graduação ou extensão, sendo a Unifesp pioneira na apresentação do curso de graduação.
“O principal diferencial do curso está na constante ação prática do aluno, promovida por um projeto integrador semestral, sendo complementado por outras ações reflexivas a partir dessa prática”, afirma Paula Carolei, coordenadora do curso.
Em cada projeto semestral devem ser contempladas as dimensões sociais, culturais e as características dos atores envolvidos, o planejamento didático e os modelos de gestão, as tecnologias e linguagens e suas lógicas de autoria e colaboração, as teorias e abordagens educacionais subjacentes, os componentes avaliativos e os movimentos de pesquisa e inovação emergentes.
Para a comunidade acadêmica, a escolha do curso foi feita de forma rigorosa e atenta às necessidades da atualidade. “Os professores do Núcleo da UAB/Unifesp buscaram construir um curso, em conjunto com a universidade, inserido no contexto contemporâneo, capaz de articular experiências locais e internacionais, contribuindo para que o nosso aluno seja um profissional crítico e reflexivo, socialmente justo e culturalmente diverso”, afirma Izabel Meister, coordenadora do Núcleo da Universidade Aberta do Brasil da Unifesp.
Fruto de um trabalho intenso de quase dois anos, a graduação deve ser ofertada já em 2017, com a possibilidade de ingresso por meio do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) de 2016. “A Unifesp, ao propor este curso, traz visão de futuro e ousadia. Este é o primeiro curso de graduação a ser ofertado em uma área do conhecimento que hoje é contemplada pelos cursos de pós-graduação”, completa Meister.
Portal registra 4 milhões de acessos por semestre
Instituição aposta no Facebook para ampliar os canais de diálogo entre instituição, comunidade acadêmica e sociedade
Valquiria Carnaúba
Levantamento realizado pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), no início desse ano, mostra que os canais de diálogo entre instituição, comunidade acadêmica e sociedade estão se aprimorando cada vez mais. Dados organizados pelo Departamento de Comunicação Institucional (DCI/Unifesp) apontam que, desde o lançamento do novo site da Unifesp, em outubro de 2014, o número total de acessos, por semestre, saltou de 3 milhões para mais de 4 milhões. O comparativo foi realizado entre o segundo semestre de 2014 e o mesmo período do ano de 2015.
Focada em alcançar o público que se concentra nas redes sociais, a Reitoria decidiu pelo lançamento da página oficial da universidade no Facebook. Criada em junho do ano passado, totaliza mais de 3.000 seguidores em menos de um ano. O conteúdo passa por uma avaliação coletiva e prioriza temas como produção científica, atividades culturais, eventos institucionais, vestibulares, cursos, campanhas de conscientização e recrutamento de voluntários para pesquisas, organizados em cronogramas semanais.
Desde então, é possível monitorar quais os assuntos de maior interesse dos seguidores. Por meio do Google Analytics e do painel administrador do Facebook, a equipe de comunicação auferiu que os picos de acesso ao portal, por meio da rede social, coincidem com as notícias mais curtidas e compartilhadas, a exemplo do anúncio da conquista da primeira carta patente (com 152 compartilhamentos e mais de 8 mil pessoas alcançadas) e da criação do primeiro programa de mestrado público federal em Serviço Social de São Paulo (1.200 compartilhamentos e mais de 21 mil pessoas alcançadas).
Diálogo com a sociedade
O posicionamento da atual Reitoria reflete a consciência acerca da importância da comunicação pública e do jornalismo universitário. Em uma época de interesse crescente sobre as ações do Poder Público, maior entendimento das finalidades da Lei da Transparência e a interatividade exigida atualmente das instituições, facilitar o acesso à informação tornou-se uma das grandes prioridades da Unifesp.
Posto o resultado desse empenho, é possível afirmar que tanto a reorganização do portal (www.unifesp.br) quanto a criação da página oficial do Facebook estão cumprindo com sucesso três objetivos centrais: proporcionar ao usuário maior rapidez no acesso a informações e documentos, otimizar a busca por informações que possibilitem um entendimento mais claro da missão atual da instituição e a criação de uma nova identidade visual.
A universidade deve olhar para a periferia
Antonio Saturnino
Dez anos atrás, João Carlos Alves Duarte decidiu prestar concurso para compor o quadro de servidores da Unifesp. Em 2007, no momento de sua posse, ele optou por atuar em Diadema e recebeu a seguinte missão: erguer um novo campus. Quando pisou no prédio do bairro Eldorado, havia apenas algumas cadeiras e mesas. Não tinha computador, linha telefônica ou internet. Em pouco menos de um mês, carregando as coisas de um lado para o outro e correndo atrás de fornecedores, já estava tudo organizado para a matrícula dos alunos. “Acho que os estudantes sequer perceberam que tudo foi feito às pressas, pois conseguimos criar a infraestrutura necessária para recebê-los”, lembra João Carlos.
Nascido na Bahia, no município de Iguaí, João Carlos mudou para São Paulo em 1979, quando estava próximo de completar 15 anos. Ele chegou a cogitar morar em Salvador, incentivado por seus padrinhos, mas decidiu se instalar na capital paulista por ter um número maior de parentes vivendo em uma mesma casa, próximo à represa de Guarapiranga. Ao todo eram mais de 20 pessoas, entre os avós, tios e irmãos.
Ele saiu de sua cidade natal acompanhando seus pais, Sadraque e Maria, que também pretendiam tentar a vida em São Paulo. Porém, apenas João se adaptou ao cotidiano da metrópole e, no ano seguinte, seus pais mudaram para Itabuna, na Bahia. Seu pai faleceu em 1998 e, desde então, sua mãe, hoje com 76 anos, mora com a irmã caçula dele.
Logo nos primeiros dias de sua estada na capital paulista, ele, que vinha com boas notas no colégio onde estudava, se deparou com a nova realidade de precisar conciliar o trabalho e os estudos. Como resultado, foi reprovado.
Suas notas não foram satisfatórias nas disciplinas de exatas e hoje, por ironia, além de atuar na administração do Campus Diadema, leciona Matemática na rede estadual, na periferia da cidade. Ele o faz por acreditar nos jovens e, principalmente, por saber que a educação é a única forma de ajudá-los a almejar um futuro promissor. “Tento mostrar como é importante levar a sério os estudos. Procuro fazer um trabalho diferenciado para que se preparem melhor para as provas de vestibular e do Enem. O meu sonho é ver meus estudantes dentro da Unifesp”.
Para ele, as condições do ensino público na periferia, tanto para o aluno como para o professor, são muito precárias. São escolas ditas preparadas tecnologicamente, mas os educadores não conseguem utilizar os computadores, por exemplo, pois existem poucas unidades, e nem todos funcionam. A evasão escolar ainda é muito grande, principalmente no período noturno, pois, muitas vezes, a entrada no mercado de trabalho é priorizada.
O professor está desenvolvendo um projeto que consiste em ministrar aulas de reforço gratuitas, preparatórias para o Enem, para alunos do terceiro ano do ensino médio, já que as perspectivas para os jovens são bem poucas. “Há um equívoco quando dizem que eles são desinteressados, quando na verdade nós precisamos chegar até eles. A impressão que eu tenho é que as políticas públicas não os atingem na totalidade. As tecnologias são acessíveis e precisam ser melhor utilizadas. Eles precisam ver que a educação é a mola propulsora para o futuro deles e que nós estamos ali para abrir caminhos”, afirma.
Para ele, a universidade precisa estar cada vez mais inserida na cidade, principalmente na periferia, e cita como exemplo uma série de projetos, como o cursinho popular, que promove aulas na unidade Manoel da Nóbrega, e a iniciativa que leva estudantes da Unifesp para dar aulas de reforço em escolas de bairros carentes de Diadema. Ambas as propostas têm ajudado os alunos a melhorar o desempenho em provas oficiais.
Divorciado, ele tem dois filhos do casamento, o Vinícius e o Caio. Ele namora, há oito anos, com Rosana, que foi a sua paixão na adolescência. Ele a reencontrou quando teve a ideia de reunir os amigos da escola. Ambos estavam saindo de um matrimônio de cerca de 22 anos e se reaproximaram. Atualmente, moram no mesmo prédio, porém em apartamentos diferentes. Ele brinca que, como ambos foram casados e não deu certo, agora preferem apenas namorar.
Ao falar sobre os filhos, embora sejam muito diferentes um do outro, ele se orgulha por tê-los criado sem preconceitos e com ideais de uma sociedade harmônica, mais igualitária e de aceitação das diferenças religiosas, de gênero, de sexualidade ou políticas. Um deles, o Caio, trabalha com sistemas de informação. “Aos 20 anos, ele me comunicou que estava indo morar na Austrália. Ficou lá cinco meses, onde teve uma experiência de vida ótima. Lá ele conheceu e conversou com pessoas das mais diversas nacionalidades”.
Já Vinícius, que chegou a integrar a turma de servidores de 2010 da Unifesp e cursa Química Industrial no Campus Diadema, mostra aptidão para a música e o engajamento político. Durante as manifestações de junho de 2013, Vinícius foi uma das vítimas de um governo arbitrário e truculento. Em um dos protestos, ele estava com um grupo que tentava sair de uma área onde manifestantes enfrentavam a tropa. Enquanto tentavam fugir da confusão, foram acuados pela Polícia Militar, que começou a jogar bombas de gás lacrimogênio. Asfixiados, pediram abrigo e foram socorridos pelos funcionários de um hotel, que, em seguida, seria invadido pela polícia.
“As autoridades alegaram que o hotel estava sendo depredado. Eu fui lá, logo após o episódio, e não havia nada fora do lugar, nada havia sido quebrado. Nenhum piso, espelho, assento ou balcão”, diz João Carlos. Ele diz possuir uma sequência com cerca de 25 fotos, em que seu filho aparece agachado atrás do sofá, com as mãos estendidas. Vinícius levou vários golpes de cassetete, até que um desses atingiu sua cabeça e o fez cair. Ele ficou com o corpo cheio de hematomas, perdeu seis dentes e um deles, que era de titânio, entortou, tamanha a violência do golpe. “Queriam que ele não chegasse vivo no hospital. Ele foi levado ao pronto-socorro no carro da viatura e, no caminho, fizeram barbaridades. Fizeram um caminho maior que o necessário e com tamanha truculência, que ele foi batendo a cabeça o tempo todo”.
João Carlos lembra que ao chegar em São Paulo o Brasil vivia sob ditadura, o que não o impediu de assumir uma militância política. Comparando os tempos do regime militar aos atuais, afirma: “Na época da ditadura, a gente tinha pouca informação, mas conseguia enxergar e questionar. Hoje nós temos muita informação, mas não fazemos nada com ela. Se um político comete um erro, ele precisa pagar, independentemente da posição que ocupa ou a que partido é afiliado. Meu receio é ver as coisas acontecendo e a mídia passando a impressão que tudo está centrado em um único partido, sendo que nosso país tem uma história de 500 anos de corrupção”.
Ele continua: “Estão tentando descaracterizar tudo que foi feito no âmbito social nos últimos anos. Essa intenção de apagar as coisas que ocorreram não é o melhor caminho, pelo menos para nossa democracia. Eu espero que essas investigações que estão acontecendo realmente se ramifiquem o máximo possível e peguem todas as pessoas envolvidas”.
Unifesp contribui para recuperar Mariana
Universidade coloca pesquisadores à disposição de força-tarefa criada para oferecer saídas para a catástrofe
Décio Semensatto
Na mesma semana em que ocorreu o desastre do rompimento das barragens de rejeitos da mineradora Samarco, em Mariana (MG), atingindo toda a bacia hidrográfica do Rio Doce, a Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) iniciou uma ação de mobilização de seus pesquisadores para oferecer às diversas instituições envolvidas (ministérios e governos) sua disposição em colaborar com assessoramento técnico e científico. A percepção era a de que a Samarco ofereceria propostas de soluções e intervenções que demandariam análises qualificadas sobre sua pertinência e aplicabilidade.
Conhecendo a limitação do número de pessoal disponível nos órgãos técnicos para analisar essas propostas, a Unifesp compreendeu que o momento exigia todo o apoio em inteligência por parte das universidades públicas. Ofícios foram enviados a ministérios, agências federais de fiscalização e aos governos dos Estados de Minas Gerais e Espírito Santo. Em paralelo, a comunidade de pesquisadores da Unifesp foi convidada a integrar esse grupo, tendo respondido 41 docentes, contemplando todos os campi e diversas áreas do conhecimento.
A proposta da Unifesp, para que as universidades pudessem contribuir de forma efetiva com a situação, foi a de que fosse formada uma rede de universidades e institutos de pesquisa para acompanhar o desenvolvimento dos cenários de impactos e aconselhar as ações corretivas e mitigadoras. Esse foi o mesmo entendimento de outras universidades federais, como a UFMG, UFOP e UFES, que também se disponibilizaram para colaborar desde o primeiro momento.
Nesta perspectiva, o recomendado foi que fundações de apoio e de fomento às universidades fossem as entidades a gerenciar os recursos necessários para viabilizar a atuação dos pesquisadores. Acolhendo a ideia, a Capes lançou em abril um edital para contratar projetos em rede de universidades, disponibilizando aporte de pouco mais de R$ 11 milhões em conjunto com o CNPq, ANA (Agência Nacional de Águas), Fapemig e Fapes (fundações de apoio à pesquisa em Minas Gerais e Espírito Santo) para selecionar diversos projetos que congreguem no mínimo três universidades diferentes, sendo obrigatória a participação de uma universidade de Minas Gerais ou do Espírito Santo em cada proposta.
Os temas prioritários são: Estudos Socioeconômicos, Uso do Solo, Qualidade de Vida, Recuperação de Áreas Degradadas, Qualidade da Água, Biota, Mata Atlântica, Ecossistemas de Estuário, Redução de Resíduos, Saneamento Básico e Governança. Além do custeio de análises, o edital também prevê o pagamento de bolsas de pós-graduação para estudantes de mestrado e doutorado atuarem no problema, desde que orientados por pesquisadores que integrem as propostas que serão selecionadas. O edital estará aberto até junho e os resultados deverão ser divulgados em agosto, com início dos projetos em setembro.
De todas as instituições que receberam o ofício de apoio da Unifesp, o governo de Minas Gerais foi quem respondeu de forma mais assertiva. Por um decreto estadual, foi estabelecida uma força-tarefa interinstitucional com o objetivo de providenciar um diagnóstico sobre os danos ambientais, materiais, humanos e econômicos na bacia, nos domínios do Estado, com prazo de conclusão em janeiro de 2016.
No início de dezembro, a reitora Soraya Smaili recebeu em seu gabinete o coordenador dessa força-tarefa, o sub-secretário de Estado de Desenvolvimento Regional, Política Urbana e Gestão Metropolitana (SEDRU), Bruno Alencar. Também participaram da reunião os docentes Andrea Rabinovici, Décio Semensatto, Geórgia Labuto e Zysman Neiman, todos do Campus Diadema.
Neste encontro, o secretário descreveu um panorama da situação do local e do planejamento de ações, além de explicar quais as demandas mais importantes para a força-tarefa. As tratativas resultaram no compromisso da Unifesp em elaborar um texto sobre questões de diagnóstico e monitoramento ambiental para integrar o relatório final da ação, que foi redigido de forma conjunta pelo grupo de pesquisadores voluntários da Unifesp, tendo sido encaminhado ao sub-secretário ainda em dezembro.
Na primeira quinzena de janeiro, a força-tarefa se reuniu por quatro dias em Belo Horizonte para concluir seu trabalho, congregando dezenas de representantes de vários segmentos da sociedade, tanto nacionais como internacionais. A Unifesp foi representada por Semensatto, assessor da chefia de Gabinete da Reitoria. Em cada dia, foram organizados debates sobre os resultados para o diagnóstico geral, com os temas Danos Ambientais, Danos Humanos, Danos Econômicos e Governança.
Alguns entendimentos predominaram na maior parte das intervenções dos participantes, como a necessidade de diversificação econômica da bacia hidrográfica para reduzir a dependência da atividade minerária (80% da receita da prefeitura de Mariana provém da Samarco), o pronto atendimento de forma digna e atenciosa às vítimas do desastre, a reconstrução do povoado de Bento Rodrigues em outra localização com a participação efetiva de seus antigos moradores, a exigência da mudança de paradigma de exploração mineral para a Samarco retornar à atividade no local, a necessidade de melhor articulação dos entes públicos (executivo e judiciário) para lidar com a Samarco, além de intervenções para acelerar a recuperação ambiental de todos os ecossistemas atingidos.
O documento final da força-tarefa servirá para orientar as ações do governo de Minas Gerais em curto, médio e longo prazo para a recuperação ambiental, econômica e social da bacia do Rio Doce. O relatório completo, construído com o apoio da Unifesp, pode ser acessado em: www.urbano.mg.gov.br/images/NOTICIAS/2016/ relatorio_final.pdf
Quem manda nas políticas públicas no Brasil?
Retrocessos na questão ambiental precisam ser revertidos, sob o risco de assistirmos a novos episódios tristes como os de Mariana, Belo Monte e Sistema Cantareira
Juliana Maria de Barros-Freire e Zysman Neiman
Um pequeno grupo de 147 entre 43.060 grandes corporações transnacionais, principalmente financeiras e mineiro-extrativas, controlam 40% da riqueza da economia global, indica um estudo publicado em outubro de 2011, realizado por pesquisadores do Instituto Federal de Tecnologia de Zurique (Suíça). No mundo globalizado, a economia da maioria dos países depende do crescimento das empresas instaladas em seus territórios e, portanto, de uma boa saúde financeira do mercado privado. Com isso, a autonomia para a regulação da atividade econômica pelo Estado, com o objetivo de atender prioritariamente aos interesses comuns, fica seriamente comprometida, pois esse controle afeta as atividades do setor empresarial.
Essas empresas, por seu lado, investem grandiosas quantias para financiar projetos públicos e campanhas eleitorais de políticos em todo o mundo. No Brasil, apesar da reforma eleitoral de 2006 prever a regulação das doações privadas, impondo limites para contribuições de cada pessoa física ou jurídica, isso não garantiu barreiras efetivas para as doações, pois as mesmas continuaram a se dar com base em outros critérios que não a renda dos doadores.
Considerando que no mundo empresarial essas doações são entendidas como “investimentos”, tal falta de limites compromete a independência dos candidatos beneficiados e seus futuros mandatos ante o poder econômico de seus financiadores. Uma vez eleitos, esses representantes podem não exercer seus mandatos de forma independente como seria esperado.
Uma pesquisa produzida pelo Comitê Nacional em Defesa dos Territórios Frente à Mineração, por exemplo, mostra a influência política das empresas mineradoras junto aos parlamentares que discutem no Congresso o Novo Código da Mineração (PL 37/2011 e apensos). O estudo traz detalhes sobre as doações de campanha feitas por empresas nas eleições de 2010, revelando que a Vale – a maior empresa mineradora do Brasil - doou para os comitês nacionais de campanha R$ 29,96 milhões (PT - R$ 10,38 milhões, PSDB - R$ 6,95 milhões e PMDB - R$ 5,76 milhões), e outras empresas vinculadas a ela financiaram mais 9 partidos, com valores mais “modestos”.
O Estado de Minas Gerais tem uma economia fortemente atrelada à atividade mineradora, que constitui 7,5% do seu PIB, segundo dados do IBGE (2003). A Associação dos Municípios Mineradores (AMIG) estima que 20 cidades mineiras dependam exclusivamente da mineração. O município de Mariana (MG), atingido pela tragédia do rompimento da barragem da Samarco/Vale, tem 80% de sua arrecadação atrelada à atividade mineradora.
O rompimento da barragem da Samarco/Vale em novembro de 2015, que despejou no rio Doce um volume de rejeitos entre 50 a 60 milhões de m3, torna o acidente, segundo um estudo da Bowker Associates, o pior já registrado no mundo, equivalente, praticamente, à soma dos outros dois maiores acontecimentos do tipo, ambos nas Filipinas. Para esse mesmo estudo, este é apenas um exemplo de como o Estado nacional tem falhado na sua política de mineração, pois nenhuma “ação foi tomada pelo governo em nível estadual ou federal para identificar quais foram os problemas e evitar a sua manifestação com novas falhas repentinas”. A evidente negligência na fiscalização, a corresponsabilidade do poder público pelo acidente teria que ser investigada.
A tragédia revela que, no Brasil, ainda estamos distantes de realizar projetos de atividades econômicas que atendam, minimamente, aos princípios da sustentabilidade. Tal conceito pode ser resumidamente compreendido de três modos distintos.
O primeiro, desenvolvimentista, no qual poderíamos enquadrar boa parte das empresas que investem no capitalismo produtivo, considera que o crescimento econômico prejudica o meio ambiente, apenas até que certo nível de riqueza seja alcançado, pois a partir desse patamar, a tendência se inverteria e o crescimento auxiliaria a conservação ambiental.
No segundo, da economia ecológica, a humanidade deve retrair o consumo dos recursos naturais transformados em produtos para que o desenvolvimento possa continuar a ocorrer. Ou seja, apenas uma “condição estacionária” (crescimento zero) pode evitar a decadência ecológica.
Por fim, o terceiro tenta avançar pelo “caminho do meio”, mas apenas no âmbito conceitual. Nessa vertente - a hegemônica na sociedade atual -, o adjetivo “sustentável” associado ao termo “desenvolvimento”, tem uma forte dimensão de soluções técnicas, ou seja, a preservação de potenciais produtivos aparece como o principal critério de sustentabilidade. No entanto, apesar dessa preservação ser uma condição necessária, ela não é suficiente, pois não há mudança no paradigma principal que considera desenvolvimento como sinônimo de crescimento.
Ante essas três visões e para que haja um equilíbrio mais satisfatório entre os anseios econômicos privados e os interesses coletivos regulados pelo Estado, fica patente a necessidade de elaboração e implementação de políticas públicas que possam evitar que o crescimento econômico beneficie apenas uma minoria.
A primeira condição é o fortalecimento e o aperfeiçoamento do processo político, da democracia e das instituições republicanas, reconhecendo a centralidade da política como instrumento de transformação social. Nas últimas décadas há um debate sobre quais medidas e políticas são necessárias para que cada país e a comunidade internacional formulem juntos um caminho ou uma transição rumo à sustentabilidade.
Existe, no Brasil, uma iniciativa pioneira, levada a cabo pela Rede de Ação Política pela Sustentabilidade (RAPS) que, em uma atuação suprapartidária e multidisciplinar, procura produzir novas e exclusivas propostas de agendas, por meio da cooperação e da amizade cívica de seus membros, com a construção de uma visão compartilhada de sustentabilidade. A reforma política, com o intuito de minimizar as influências do poder econômico sobre as políticas públicas, é um dos seus temas de debate e atuação.
Somente com a estruturação de um debate robusto o suficiente para garantir a diversidade de visões e novas referências metodológicas de análise poderá se apontar caminhos alternativos. O compromisso e o alinhamento com os valores e princípios da ética, transparência e sustentabilidade impõem a todos nós, como sociedade civil, a tarefa de participar deste debate.
Retrocessos na questão ambiental, como os que vêm ocorrendo no cenário político nacional, precisam ser revertidos, sob o risco de assistirmos a novos episódios tristes como os de Mariana, Belo Monte, Sistema Cantareira, Código Florestal, dentre tantos outros. Cabe, assim, a cada setor da sociedade (academia, setor produtivo, governo, sociedade civil, etc.) dar a sua cota de contribuição para a transformação dessa realidade.
Há base para a Base Nacional Comum Curricular?
Antonio Simplicio de Almeida Neto
A proposta de criação de uma Base Nacional Comum Curricular (BNCC) tem ocupado o noticiário, os debates acadêmicos e as redes sociais. Entre as diferentes disciplinas escolares referidas nesse documento, História despertou súbito e inusitado interesse pelo passado que é ensinado para nossas crianças e jovens e muito se tem discutido sobre esse tema, para além dos círculos específicos de interesse. Nunca antes na história desse país isso ocorreu com tal intensidade.
Tal proposição, nos termos do MEC, faz parte de um mesmo pacote de ideias que envolve sistemas de avaliação, gratificação por bônus, produtividade escolar, ranking de escolas, produtos educacionais, sistemas apostilados e toda sorte de procedimentos que apontam para a padronização do ensino. Tornou-se líquido e certo que a educação é um produto como outro qualquer e que sujeitos exteriores à escola é que devem determinar o que vai dentro da sala de aula. Tidas como inevitáveis, tais concepções e seus pressupostos tornaram-se hegemônicos, de modo que as vozes contrárias a esse modelo e seus procedimentos soam anacrônicas.
O jogo soma zero com formas as mais sofisticadas e intrincadas de controle de todas as etapas do processo educativo, passando pela definição de conteúdos e das atividades pedagógicas, pela elaboração, produção e distribuição de materiais didáticos, pelos processos avaliativos de professores e alunos e sua premiação e/ou certificação, pelos modelos de gestão e de gerenciamento. A organização da BNCC baseada em objetivos de aprendizagem a serem atingidos e, posteriormente, avaliados, revelam a concepção de currículo avaliado que subjaz à proposta, o que fará recair fortemente sobre alunos e professores a responsabilização pelos resultados do processo.
Além desses aspectos, que por si só guardam algo de sórdido, os mentores da BNCC propugnam haver “conhecimentos essenciais aos quais todos os estudantes brasileiros têm o direito de ter acesso”, escamoteando o fato de que a definição de qualquer currículo implica seleção e que selecionar é uma operação de poder entre grupos sociais, por definir quais conhecimentos são mais legítimos, podendo ser objeto de estudo nas escolas e, consequentemente, quem será representado e quem será excluído desse jogo.
O suposto e propalado consenso sobre os “conhecimentos essenciais”, portanto, é uma peça de abstração que nem sempre explicita os interesses envolvidos na questão, como os das fundações Lemann, Roberto Marinho, Victor Civita e Airton Senna, Institutos Natura e Millenium, Itaú, Bradesco, Telefônica, Gerdau, Camargo Correa e Volkswagen, Cenpec, Amigos da Escola, Todos pela Educação e editoras (nacionais e internacionais). Tais sujeitos privados participam mais ou menos direta e ostensivamente em parceria com alguns sujeitos públicos, como o MEC, Consed, CNE e Undime, organizando eventos, produzindo documentos, financiando hospedagem, deslocamento e alimentação.
Sobre a disciplina História - certamente a que gerou mais polêmica -, o debate midiático orbitou quase que exclusivamente em torno de quais conteúdos seriam os mais adequados e legítimos: América ou Europa, gregos ou negros, índios ou egípcios, história cultural ou história social. Uma primeira versão da BNCC foi denominada “ideológica”, quando não “bolivariana”, por ampliar a carga de história indígena e história da África e afro-brasileira (aliás, em conformidade com as Leis 10.639/03 e 11.645/08, que tornam obrigatórios o ensino de cultura e história africana/afro-brasileira e indígena), em detrimento de uma história eurocêntrica. Enviesou-se o debate, como se um currículo zeloso dos conteúdos canônicos eurocentrados fosse menos ideológico.
Alguns pesquisadores de História, ao analisarem mais detidamente o documento, apontaram que o maior problema estaria em não situar com clareza os motivos pelos quais devemos estudar História na sociedade brasileira e global atual e quais os objetivos centrais dessa disciplina na atualidade, de modo a justificar as opções curriculares: ênfase no Brasil e suas relações com a história global, o lugar do Brasil no mundo globalizado, contribuindo para uma crítica ao eurocentrismo, sem que se excluísse história antiga e medieval (ver o documento Manifestação Pública da Anpuh sobre a Base Nacional Comum Curricular, disponível no site da instituição). Não obstante o destaque que lhe rendeu o epíteto de “ideológica”, são perceptíveis as fragilidades na concepção de história indígena que a restringe à história do contato com os europeus e da africana que a torna apêndice dos europeus pela escravidão.
Curiosamente, o destaque centrou-se nos conteúdos. Não houve grande celeuma sobre os princípios e pressupostos que fundamentam a existência de um currículo único para o país e suas implicações, o que legitima a iniciativa, que ainda tem vários outros pontos obscuros, como, por exemplo:
a) a inserção de ensino religioso como “disciplina” das Ciências Humanas, o que certamente não é o caso, ao lado de História, Geografia, Sociologia e Filosofia, disciplinas que discutem o tema religião;
b) a anunciada divisão entre 60% de conteúdo comum e 40% de conteúdo diversificado (a ser definido pelos Estados e municípios) pode tornar os 60% em 100%, uma vez que os sistemas de avaliação recairão sobre essa parte do currículo, fazendo com que muitas escolas e sistemas de ensino priorizem o treinamento de seus alunos para essas provas. Além disso, soube-se em debate promovido pelo Comfor/Unifesp, realizado em 4 de dezembro, por uma representante do MEC, que essa divisão percentual não consta em nenhum documento oficial;
c) nesse mesmo debate, soube-se que não houve qualquer definição sobre as formas de tabulação das mais de 12 milhões de contribuições inseridas na plataforma da BNCC (a 2ª versão do componente curricular História, por exemplo, ficou pronta muito antes de 15 de março, término do prazo de entrega das contribuições);
d) há uma grande incerteza e apreensão sobre o que ocorrerá com os cursos de licenciatura do país, que podem ser reduzidos a cursos de treinamento de professores para melhor aplicar a BNCC. Já está em curso a criação de uma Base Comum de Formação de Professores.
Se fosse destacar algum aspecto positivo nisso tudo, certamente diria que foi o intenso debate suscitado em diferentes setores da sociedade: universidades, imprensa, redes sociais, escolas e associações.
Estado deve assumir suas responsabilidades
Para pesquisador da Unifesp, motivações da reforma da rede de ensino público proposta pelo governo Alckmin foram puramente econômicas
Daniel Patini e José Luiz Guerra
Em setembro de 2015, a Secretaria de Educação do Estado de São Paulo anunciou um plano de reestruturação da rede de ensino público que implicaria no fechamento de 94 escolas, atingindo mais de 300 mil alunos e 70 mil professores. A reorganização separaria a maior parte das escolas em Unidades de Ensino Fundamental para crianças do 1º ao 5º ano (I); do 6º ao 9º ano (II); e ensino médio. A iniciativa, supostamente, melhoraria o rendimento e o aprendizado. Mas, face aos protestos e ocupações de escolas por parte dos alunos, o governo suspendeu a reforma, cujo sentido é avaliado, em seguida, por José Alves da Silva, docente do curso de Licenciatura Plena em Ciências do Campus Diadema da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e doutor em Educação pela Universidade de São Paulo (USP).
Entrementes: Qual a sua opinião sobre a proposta de reorganização da rede estadual de ensino?
José Alves da Silva: Em princípio, a intenção de haver escolas destinadas a adolescentes e outras às crianças poderia ser interessante. Pesquiso adolescência no contexto escolar e a literatura registra o quanto prédios, mobiliários, currículos, etc. não são adequados a este público. Para fazer esta reorganização, não bastaria simplesmente transferir alunos de prédios, sem a mínima adequação de mobiliário, elaboração de novos currículos, criação de espaços para atividades esportivas, boas bibliotecas, anfiteatros, espaços de convivência, etc. Mas isso é caro e o governo não quer gastar. A gente pode se perguntar, também: se o governo propusesse fazer este tipo de preparo para adequar escolas de adolescentes, eles seriam contrários? Muito provavelmente não. Não há garantia nenhuma de que o fato de haver escolas exclusivas para adolescentes ou para crianças aumentaria seu rendimento escolar. É um palpite, fortemente enviesado.
E: O senhor concorda que o tema foi pouco discutido e implementado de forma arbitrária?
JAS: Concordo plenamente. Não há transparência nenhuma sobre os critérios utilizados pelo governo para uma escola específica ou um determinado turno serem fechados. Tome-se, por exemplo, uma escola ocupada em Embu das Artes, que fechou o turno noturno. Os alunos seriam transferidos para outra escola, distante mais de 2 km. Quem mora nas periferias sabe o quanto a escolha do lugar de estudo já leva em consideração a violência local, a condução, etc. Ou seja, andar 500 metros a mais, dependendo do lugar e do horário, pode fazer toda a diferença. Como é possível que o mesmo critério utilizado para o fechamento dela seja igual ao de outra escola, em um bairro central, com mais conduções e menores índices de violência?
E: Ainda segundo a Secretaria de Educação, a iniciativa melhora o rendimento e o aprendizado dos alunos, pois crianças e jovens teriam demandas específicas.
JAS: Trata-se de uma inverdade. Tem havido uma melhoria no ensino fundamental I no Brasil todo. No fundamental II e no médio, o problema é mais grave e é estrutural, dada a forma como seu currículo foi implementado, com a formação de professores voltada a conhecimentos específicos e desconsiderando o universo adolescente, com o grau de abandono dos jovens, com as características da pós-modernidade (que afeta a educação de jovens do mundo todo) e por aí vai. Escolas bem-sucedidas apresentam razões multifacetadas para seu sucesso. Nunca é uma medida única. O governo paulista já fez uma reorganização, em 1997, alocando crianças e adolescentes em prédios diferentes. Os índices não melhoraram, em especial nas escolas exclusivas para adolescentes. A própria secretaria desmente essas informações, ao fechar escolas com bons índices. Moro a menos de 500 metros de uma escola chamada Sinhá Pantoja, que sempre costuma ser uma das mais bem colocadas nos índices de aprendizagem da região comandada pela Diretoria de Ensino Sul II, que abrange M´Boi Mirim, Jardim Ângela e Capão Redondo. Ela fica no meio de uma favela. Seu Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) no fundamental I é o melhor de todas as escolas. E ela seria fechada. Um crime. O objetivo é econômico, tão somente.
E: O governo também alega que houve uma redução do número de jovens em idade escolar, por conta da queda da taxa de natalidade.
JAS: Tem havido uma redução no número de alunos da rede estadual. Há diferentes razões para isso, inclusive a deterioração da rede estadual nos últimos anos, que tem gerado uma fuga de alunos para outras redes com melhor qualidade (há boas redes municipais). Também há uma significativa estabilização das taxas de natalidade e de migração. Mas esses dados deveriam servir para o governo, enfim, dar um salto de qualidade: diminuindo a quantidade de alunos por sala de aula, ressignificando os espaços ociosos (se existirem) com atividades extraclasses, cursos de outra natureza, ensino integral, aulas de reforço, aulas de música, etc. Há muito que fazer para educar os jovens. As escolas são, quase sempre, o único prédio público de muitas localidades pobres. Se seus prédios servissem para outras finalidades, juntamente com salas de aulas, todos sairiam ganhando.
E: Alguma consideração final?
JAS: Creio que falta analisar um contexto mais amplo do que ocorreu nas ocupações. O ano de 2015 começou com mais de 3.000 salas de aulas da rede estadual fechadas, gerando superlotação em várias regiões. Em seguida, houve a maior greve de professores da história, que só acabou após o governador dizer que anunciaria um reajuste em julho, que não houve. Recentemente, um famoso portal anunciou que 2015 bateu o recorde de pedidos voluntários de demissão de professores na rede. E o ano terminou com a transferência compulsória de escola de mais de 311 mil alunos, fechamento de 93 unidades e de centenas de turnos de estudo. O estranho é a gente se espantar com a resposta que os alunos deram a tudo isso. E eles fizeram, brilhantemente, à sua maneira, longe do descrédito dos sindicatos, da política organizada, dos métodos tradicionais de lutas dos movimentos sociais. Precisamos escutá-los. O governo precisa ceder.
Conselho de Graduação repudia proposta
Ao tomar conhecimento do plano de reestruturação da rede de ensino público, o Conselho de Graduação, os docentes vinculados ao Comitê Gestor Institucional de Formação Inicial e Continuada de Profissionais da Educação Básica (Comfor) e ao Prodocência da Unifesp aprovaram uma moção crítica, cujos principais trechos reproduzimos em seguida:
“A mudança está baseada em um palpite do atual governo de que escolas organizadas em diferentes ciclos de ensino apresentam melhores indicadores educacionais e melhor desempenho dos alunos. Essa visão unidimensional do processo educativo já foi devidamente rechaçada por inúmeras pesquisas da área.
Não surpreende que a sociedade esteja se manifestando contrariamente a essa medida, entre outros motivos, pelas consequências nefastas que promove (...) O governo estadual busca explicar a medida, também, pela expressiva redução do número de jovens em idade escolar em virtude da queda da taxa de natalidade no Estado. Entretanto, esse fato poderia ensejar um movimento completamente distinto do proposto, como a diminuição do número de alunos por turma e o maior envolvimento dos docentes com seus estudantes.
O mais surpreendente, entretanto, foi a resposta violenta e pouco educativa do governo estadual em relação à exigência da população por mais diálogo: enviou às escolas a Polícia Militar para conter a justa manifestação de jovens estudantes e profissionais de instituições públicas de ensino, que tiveram cerceados os direitos de livre expressão e exercício pleno da cidadania”.