Resposta à insulina pode aumentar com o Ginkgo biloba
Experimento revela que essa planta milenar pode favorecer a perda de peso e a manutenção das concentrações de glicose no sangue em indivíduos obesos
Valquíria Carnaúba

O poder do Ginkgo biloba pode ir muito além de sua capacidade de reduzir tonturas, refrescar a memória, aliviar dores e acabar com o zumbido no ouvido
O Ginkgo biloba é uma árvore de origem chinesa considerada fóssil vivo por existir há mais de 150 milhões de anos; a ativação da memória está entre seus diversos poderes medicinais pesquisados e comprovados, mas a lista pode aumentar em breve. Isso porque Bruna Kelly Sousa Hirata, orientada por Mônica Marques Telles, docente de Patologia e Fisiopatologia do Departamento de Ciências Biológicas da Escola Paulista de Medicina (EPM/Unifesp) - Campus São Paulo, traz à luz uma pesquisa que revela forte ligação entre o consumo de Ginkgo biloba e a sensibilidade ao hormônio insulina em indivíduos obesos.
Bruna explica que o estudo, desenvolvido no Instituto de Ciências Ambientais, Químicas e Farmacêuticas (ICAQF/Unifesp)- Campus Diadema, foi levado adiante devido às evidências na literatura médica que apontam para os efeitos benéficos do extrato de Ginkgo Biloba (EGb) sobre a glicemia de animais saudáveis e diabéticos insulino-dependentes (tipo 1), além de melhorar a função pancreática de indivíduos saudáveis. “Em estudo anterior de nosso laboratório, foi evidenciado que a administração do fitoterápico em animais obesos foi capaz de melhorar a resposta glicêmica após estímulo insulínico, além de reduzir a adiposidade corporal e impulsionar etapas da via de sinalização do hormônio em tecido muscular”.

Bruna Hirata (à esq.), orientada por Mônica Marques Telles (à dir.), apresenta dados promissores sobre os efeitos do EGb para a sinalização insulínica
“Com base nos resultados iniciais, o objetivo de minha dissertação de mestrado foi elucidar a ação do extrato de Ginkgo biloba na resistência à insulina e inflamação presentes no tecido adiposo de animais obesos”. A diminuição da captação de glicose, por exemplo, está associada à queda da taxa de fosforilação do IR e IRS-1 (receptor e substrato do receptor de insulina presentes nas células dos tecidos adiposos), além da diminuição das concentrações plasmáticas de adiponectina (proteína plasmática produzida pelo tecido adiposo que possui efeitos anti-inflamatórios). “Além disso, na obesidade estão elevados os níveis de TNF-α, uma importante proteína de sinalização celular promotora do processo de inflamação que está envolvida nas etapas iniciais da resistência à insulina, no plasma sanguíneo e no tecido adiposo de indivíduos obesos”.
Esses fatores citados por Bruna são alguns dos que afetam a homeostase da glicose, ou seja, alteram os níveis da sua concentração no sangue. A insulina, secretada por um grupo especial de células pancreáticas localizadas nas ilhotas de Langerhans, é essencial para a manutenção do equilíbrio de açúcar no sangue. Quando elevados níveis de glicose são detectados nesse órgão, a insulina é liberada no sangue, onde fica disponível até se ligar a receptores presentes na membrana de células musculares ou adiposas. Quando isso acontece, grupos fosfato são transferidos de moléculas doadoras de energia (ATP – adenosina trifosfato) a esses receptores (substratos), processo denominado fosforilação e que tem por objetivo fazer com que ao final da ativação da cascata de sinalização insulínica, o transportador de glicose (GLUT4) seja translocado para a membrana celular, permitindo que o monossacarídeo entre na célula e seja quebrado para a produção de energia.
Metodologia
Para avaliar a influência do EGb nesses processos, ele foi administrado em 34 ratos com obesidade induzida por dieta hiperlipídica, ou seja, rica em açúcares e gorduras, no período de 2 a 4 meses após o nascimento dos animais. A partir do 120º dia, os obesos foram separados em dois grupos de 17 cada um e continuaram submetidos ao regime especial por mais 14 dias. No primeiro grupo, foi realizada gavagem (método de introdução de alimentos líquidos no estômago através de um tubo pela boca) com 1mL de solução salina; na outra metade, foi realizada gavagem com uma quantidade de EGb equivalente a 500mg por quilo do animal diluído em 1mL de solução salina.
Ao final do experimento, os animais tratados com o composto apresentaram redução de 62% do ganho de massa corporal em relação aos não tratados. Além disso, o tratamento contribuiu com um aumento de 33% na expressão do gene Adipo R1 e de 70% no gene IL-10 (outra importante proteína anti--inflamatória); elevou o grau de fosforilação de proteínas envolvidas na via de sinalização insulínica, tais como o IR em 218% e da AKT em 67%, além de reduzir em 36% os níveis de TNF-α no tecido adiposo retroperitoneal e em 60% a fosforilação de NFκB p-65 (proteína responsável pela ativação de genes inflamatórios). Outro efeito interessante que Bruna revela é a diminuição do tamanho dos adipócitos, células do tecido adiposo com capacidade de armazenar triglicerídeos em quantidades entre 80% a 95% do próprio volume. “O EGb diminuiu a capacidade de reserva de gordura dessas células, reduzindo seus tamanhos em 15%, em média”.
“A resistência crônica à insulina, decorrente da obesidade, pode desencadear o diabetes tipo 2; ou seja, a pessoa produz o hormônio, mas ele não funciona, pois a via de sinalização fica prejudicada”, explica Bruna. O experimento sinaliza ser possível o consumo de EGb em seres humanos com igual eficácia, de maneira a melhorar o perfil glicêmico, diminuir a adiposidade corporal, aumentar a sinalização insulínica e modificar a expressão gênica de proteínas anti-inflamatórias, atenuando a inflamação no tecido adiposo retroperitoneal.
A pesquisadora espera que, consequentemente, a planta torne-se uma poderosa aliada no combate à obesidade, doença crônica de causa multifatorial caracterizada pelo excesso de gordura corporal. Considerada uma das doenças mais graves da atualidade, vem apresentando um rápido aumento em sua prevalência nas últimas décadas, tanto em países desenvolvidos como nos em desenvolvimento. “Isso ocorre porque quem possui sobrepeso geralmente tem dificuldade para se adaptar a dietas de restrição alimentar”.
É importante ressaltar que estão sendo analisadas outras vias que podem mediar o efeito do Ginkgo biloba. “Continuamos monitorando o comportamento do tecido adiposo e seu metabolismo, assim como possíveis modificações de incorporação e liberação de lipídios. Também realizaremos a análise proteômica desse tecido para ver se há diferenciação de proteínas expressas em resposta ao tratamento com EGb. Ademais, avaliaremos também a microbiota intestinal, uma vez que na obesidade ocorre alteração de sua composição e esse fator poderia prejudicar a homeostase energética e predispor graves complicações metabólicas. O EGb, por ser rico em flavonóides, poderia atuar como um regulador da microbiota intestinal”, finaliza a pesquisadora.
O projeto foi financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). As bolsas de estudo dos alunos foram fornecidas pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).
Artigos relacionados:
BANIN, R. M.; HIRATA, B. K. S.; ANDRADE, I. S.; ZEMDEGS, J. C. S.; CLEMENTE, A. P. G.; DORNELLAS, A. P. S.; BOLDARINE, V. T.; ESTADELLA, D.; ALBUQUERQUE, K. T.; OYAMA, L. M.; RIBEIRO, E. B.; TELLES, M. M. Beneficial effects of Ginkgo biloba extract on insulin signaling cascade, dyslipidemia, and body adiposity of diet-induced obese rats. Brazilian Journal of Medical and Biological Research, Ribeirão Preto, v. 47, nº 9, p. 780-788, set. 2014. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-879X2014000900780&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 15 abr. 2015.
HIRATA, Bruna K. S.; BANIN, Renata M.; DORNELLAS, Ana Paula S., ANDRADE, Iracema S.; ZEMDEGS, Juliane C. S.; CAPERUTO, Luciana C.; OYAMA, Lila M.; RIBEIRO, Eliane B.; TELLES, Monica M. Ginkgo biloba extract improves insulin signaling and attenuates inflammation in retroperitoneal adipose tissue depot of obese rats. Mediators of Inflammation, artigo 419106, volume 2014. Disponível em: <http://www.hindawi.com/journals/mi/aa/419106/>. Acesso em: 15 abr. 2015.
Antigas indústrias, novas perspectivas
Livro reconhecido com o prêmio Jabuti, em 2014, resgata a memória do processo de instalação das primeiras fábricas em São Paulo e alerta para consequências da especulação imobiliária
Da Redação
Com colaboração de Bianca Benfatti e Flávia Kassinoff
O processo de criação e instalação do parque industrial de São Paulo, ocorrido entre o final do século XIX e as primeiras décadas do XX, constitui uma história de grande significado histórico e cultural, imediatamente perceptível ao observador que percorrer os bairros onde ele ocorreu de forma particularmente intensa, como é o caso do Brás e da Mooca. Construções fabris remetem a um tempo marcado pela chegada de imigrantes que conseguiam emprego e se instalavam em áreas próximas ao local de trabalho, regiões atualmente alvo de intensa especulação imobiliária.
Esse é o tema da pesquisa de doutorado realizada na Universidade de São Paulo (USP) pela arquiteta Manoela Rossinetti Rufinoni, professora do Departamento de História da Arte da Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (EFLCH/ Unifesp) - Campus Guarulhos. Sua pesquisa resultou no livro Preservação e Restauro Urbano: Intervenções em Sítios Históricos Industriais, publicado pelas editoras da Universidade de São Paulo (EDUSP) e da Fundação de apoio à Universidade Federal de São Paulo (FAP-Unifesp), premiado na 56ª edição do Jabuti de 2014, obtendo segundo lugar na categoria Arquitetura e Urbanismo. “Fiquei bastante lisonjeada e surpresa, inclusive em função dos temas abordados. Além de se dedicar a arquiteturas e bairros até então pouco apreciados pelos estudos acadêmicos, o livro toca temas delicados, como a questão do papel do arquiteto nas cidades contemporâneas, poucas vezes entendidas em sua dimensão histórica por aqueles que constroem os novos edifícios. Mas eu acredito que o prêmio seja uma indicação de que há vários profissionais percebendo essa necessidade de olhar a cidade de outra maneira”, comenta a autora.
Manoela investigou a atribuição de valores históricos, estéticos e memoriais aos espaços da industrialização, não focando apenas em São Paulo, mas nas grandes cidades em geral. Segundo a professora, uma das grandes novidades do seu trabalho é analisar o conceito de restauro urbano, ainda pouco explorado no Brasil. Diferentemente do conceito tradicional de renovação arquitetônica, que busca preservar determinada edificação, o que está em pauta são as áreas urbanas com algum interesse histórico e cultural.

Em ordem de leitura: Edifício da Companhia Antarctica Paulista; Galpões da Rua Borges de Figueiredo; Armazém da estrada de ferro em frete à estação de trem Mooca; Edifício do Moinho Matarazzo, no Brás; Remanescentes de antiga fábrica de estopas e edifícios residencias ao fundo
“O foco do trabalho são as antigas áreas industriais, pois têm sido identificadas como patrimônio apenas em tempos recentes e estão ameaçadas por um acelerado processo de esvaziamento e degradação. Devido à extensão que geralmente ocupam, esses sítios históricos são vistos como grandes manchas de terreno ocioso em áreas estratégicas da cidade ”, comenta a pesquisadora. Essas regiões passam, atualmente, por um processo agressivo de valorização imobiliária, sobretudo por estarem localizadas próximas aos centros urbanos e a estações de trem e metrô, além de serem bem servidas em termos de infraestrutura (saneamento, comunicações e serviços essenciais).

Professora Manoela Rossinetti Rufinoni, autora do livro
O mercado imobiliário, em busca do lucro, ameaça derrubar esses edifícios históricos, porém obsoletos, e construir condomínios residenciais. Essa questão, afirma Manoela, coloca um desafio para os profissionais que têm a metrópole como foco de seu trabalho e de suas reflexões: quais são as opções colocadas face ao embate entre o valor cultural e o de mercado?
“O ideal seria que aqueles que atuam sobre a cidade – o arquiteto, o planejador urbano, o administrador público – começassem a se valer de instrumentos que permitissem ver a cidade de outra maneira para intervir sobre ela em uma perspectiva de respeito ao passado, respeito à história, buscando um diálogo”, afirma.
A região analisada em São Paulo faz parte da operação urbana denominada Mooca-Vila Carioca, compreendendo uma área que vai da divisa com São Caetano do Sul até as proximidades do Pari, abrangendo toda a via férrea e seu entorno imediato. Manoela não propõe que toda essa área seja tombada, mas que se faça uma reflexão mais atenta sobre o que existe nesse longo percurso de interesse patrimonial, buscando alternativas de renovação urbana mais criteriosas e menos destruidoras.
Uma discussão muito presente ao longo do livro é a relação conturbada entre o passado e o futuro, entre o antigo e o novo na cidade contemporânea. Em vários projetos de intervenção urbana no Brasil ainda prevalece a visão segundo a qual o desenvolvimento está associado ao projeto do novo e ao apagamento do passado. No entanto, quem constrói o novo nas cidades brasileiras, em grande medida, é a especulação imobiliária. “São construtoras e grandes empreendedoras que não estão participando de uma discussão sobre a qualidade arquitetônica e a qualidade urbana das cidades. O ‘novo’, nesse caso, é um produto meramente voltado para o mercado”, diz a pesquisadora.
Sua pesquisa foi realizada por meio de um financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), com um período fora do país por meio de uma bolsa para cursar um doutorado sanduíche. Assim Rufinoni pôde realizar metade de sua pesquisa em São Paulo e a outra parte na Itália, na Università degli Studi di Roma La Sapienza. Essa experiência foi enriquecedora, pois permitiu que ela estudasse a discussão teórica no ambiente europeu e o contexto da preservação urbana nas cidades italianas. Lá os sítios históricos são numerosos e os debates acerca das intervenções de modernização em contextos urbanos antigos foram intensos ao longo do século XX, sobretudo após a Segunda Guerra Mundial, tanto em ambiente acadêmico quanto em órgãos governamentais voltados à tutela dos bens culturais. Isso é distinto na situação brasileira, onde a valorização do passado das cidades ainda é recente e o projeto do novo geralmente é exaltado como progresso.
Outra questão que difere nos dois contextos é a legislação existente para a proteção de áreas de interesse histórico e cultural. Na Itália, a tradição de discussão sobre o tema permitiu a elaboração de uma série de leis que regulamentam a intervenção arquitetônica e urbana em bens de interesse patrimonial. Esse aparato jurídico denso nem sempre consegue evitar projetos polêmicos e agressivos, mas é uma base mais sólida para uma mobilização maior entre arquitetos e na própria sociedade em defesa da preservação. Aqui no Brasil, o principal instrumento de proteção é o tombamento e sua aplicação para áreas urbanas ou além de gerar polêmica, nem sempre surte real efeito, já que foi originalmente pensado para a tutela de edifícios isolados.
“Áreas muito extensas e em processo de transformação, com são os sítios históricos industriais paulistanos, dificilmente poderão ser totalmente tombadas. Mas não precisamos pensar no tratamento do patrimônio apenas a partir do tombamento. É importante amadurecermos uma leitura de cidade que nos faça compreendê-la em perspectiva histórica, assumindo a cidade como um dado a ser valorizado pelos novos projetos arquitetônicos e urbanos. Transformações são necessárias, certamente, mas precisam ser conduzidas de forma criteriosa, respeitando nossa história e nossa memória”.
Segundo a Secretaria da Cultura do Governo do Estado de São Paulo, são 157 bens tombados na cidade. Na área de estudo abarcada pelo livro estão, por exemplo, a Hospedaria dos Imigrantes, que atualmente abriga o Museu da Imigração (localizado na Rua Visconde de Parnaíba), as Indústrias Reunidas Fábricas Matarazzo (Brás), o Palácio das Indústrias (Parque Dom Pedro II) e algumas vilas operárias como a Vila Maria Zélia (Belenzinho). Já em nível municipal, um tombamento significativo na área é o perímetro formado pelas ruas Borges de Figueiredo, Monsenhor João Filipo, Avenida Presidente Wilson e viaduto São Carlos, na Mooca, abrangendo vários galpões industriais.
Na Unifesp, Rufinoni leciona a disciplina Museologia e Patrimônio na graduação em História da Arte. Também integra o corpo docente do recém-inaugurado programa de pós-graduação da área. Ela enxerga uma perspectiva interessante sobre o tema, a possibilidade de inserir essa discussão do patrimônio no campo da História da Arte.
“Quando falamos sobre Arquitetura e cidade muitas vezes surge a dúvida se seriam temas de interesse para essa disciplina. Eu vejo que sim, os estudos de Arquitetura e de História da Arte podem e devem se aproximar mais e explorar os instrumentos de análise de cada disciplina numa via de mão dupla. E o patrimônio é apenas um dos caminhos nesse sentido. Assim como entendemos hoje o patrimônio em uma perspectiva mais estendida (incorporando bens arquitetônicos e urbanos de tipologias diversas), também no campo da História da Arte e da produção artística, o interesse de estudo tem se alargado a artefatos diversos, de um objeto isolado à própria cidade. O grafite, por exemplo, é uma intervenção artística que assume a cidade como dado cultural, como matéria prima do próprio fazer artístico. Os novos projetos arquitetônicos e urbanos poderiam explorar postura semelhante, não? Seria um debate interessante”, conclui Manoela.

Capa do livro premiado
Artigos relacionados:
RUFINONI, Manoela Rossinetti. Territórios portuários, documentos de história urbana: as intervenções no porto de Gênova e os desafios da preservação. Cidades, Comunidades e Territórios, Lisboa, n. 29, 2014. Disponível em: <http://cidades.dinamiacet.iscte-iul.pt/index.php/CCT/article/view/337>. Acesso em: 30 abr. 2015.
______. Os estudos de Estética Urbana e a percepção da cidade artefato no alvorecer do século XX. Revista CPC, São Paulo, n. 14, p. 6-29, 2012. Publicação da USP. Disponível em: <dx.doi.org/10.11606/issn.1980-4466.v0i14p6-2>. Acesso em: 30 abr. 2015.
______. Intervenções urbanas em sítios históricos industriais: o projeto urbano Ostiense Marconi. Pós: Revista do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da FAU-USP, São Paulo, v. 19, n. 32, p. 62-79, 2012. Disponível em: <dx.doi.org/10.11606/issn.2317-2762.v19i32p62-79>. Acesso em: 30 abr. 2015.
______. A cidade e seus bens culturais: a dimensão urbana da tutela na abordagem dos documentos internacionais. Projeto História: Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados de História, São Paulo, v. 40, p. 223-257, jan.-jun. 2010. Publicação da PUC-SP. Disponível em: <http://revistas.pucsp.br/index.php/revph/article/view/6131/4453>. Acesso em: 30 abr. 2015.
O poder do nosso solo
Pesquisa aponta poder de “filtragem” de vírus de solo brasileiro e sua reação com oxidantes químicos para descontaminação de águas
Ana Cristina Cocolo

A ameaça à nossa água não corre apenas nos leitos dos rios, lagos ou reservatórios. Ela está também abaixo de nós, nos aquíferos, que são os reservatórios subterrâneos móveis de água, provenientes das chuvas, que se infiltra pelo solo e abastece rios e poços artesianos.
Geralmente, essas águas contêm pouca contaminação microbiológica graças à ação das partículas do solo, o que atenua ou inativa o poder dos vírus e dos microrganismos. No entanto, seu uso crescente pela indústria, agricultura e consumo humano coloca em risco mais essa importante fonte do recurso natural. Vazamentos nos sistemas de esgoto, fossas sépticas e atividade agrícola com uso de estrume e chorume como fertilizantes também são algumas das principais causas de contaminação das águas subterrâneas.

O estudo analisou o latossolo das regiões de Piracicaba e São Carlos, interior do Estado de São Paulo
Colocados em colunas distintas, os solos foram analisados quanto ao potencial de filtragem e sua interação com a oxidação química
Controlar a contaminação de aquíferos e lençóis freáticos é um desafio. A adsorção (processo pelo qual os vírus ficam aderidos às superfícies dos materiais que formam os aquíferos) e a inativação (mecanismo pelo qual as partículas virais perdem sua capacidade de infecção) são dois fenômenos naturais que podem colaborar para a desinfecção das águas.
O estudo da capacidade de atenuação dos solos brasileiros, que em sua maioria são formados por latossolos, é parte de um projeto desenvolvido no Laboratório Multidisciplinar de Águas e Solos (Lamas) do Instituto de Ciências Ambientais, Químicas e Farmacêuticas da Universidade Federal de São Paulo (ICAQF/Unifesp) - Campus Diadema, sob coordenação de Juliana Gardenalli de Freitas, professora do Departamento de Ciências Biológicas do campus.
De acordo com ela, há poucos estudos com esse tipo de solo nesse enfoque, sendo necessário utilizar estudos realizados fora do país, com outros tipos de solos. “Muitas vezes estamos errando nas previsões e remediações”, explica. “Conhecer o comportamento e a capacidade dos solos brasileiros nesse processo de atenuação de contaminantes microbiológicos ou de remediação é de extrema importância para mapear os locais mais seguros para a captação de água subterrânea e posterior uso humano”.
Frequentes em regiões tropicais, existem sete tipos de latossolos no Brasil que são classificados, entre outros critérios mais específicos, pela cor e pelo teor de ferro. Em geral, são solos argilosos, constituídos predominantemente por material mineral (óxido de ferro e alumínio), o que justifica sua cor avermelhada. É também um solo pobre em nutrientes e ácido, mas, devido a sua alta porosidade, tornou o cerrado brasileiro o principal produtor de grãos do país.
Filtro natural

Juliana Gardenalli de Freitas coordenou e orientou as pesquisas
Juliana explica que o grupo também analisou o comportamento de vírus no Latossolo Vermelho – presente em extensas áreas nas regiões Centro-Oeste, Sul e Sudeste do país – e sua capacidade de inativação e adsorção de vírus. O estudo foi tema do trabalho de conclusão de curso (TCC) para o título de bacharel em Ciências Ambientais de Margarita Nuche Gálvez. De acordo com Juliana, os resultados são promissores e apontam para um grande potencial desse solo.
Para entender esse processo foram colhidas amostras do solo e de água subterrânea da região de Piracicaba, interior do Estado de São Paulo, e levadas ao laboratório no qual foram montadas colunas de solo homogêneo, sem macroporos e heterogeneidades, que simulam as mesmas condições ambientais, inclusive de fluxo da água, às quais o solo colhido encontra-se exposto em sua realidade.
Em seguida, nessas mesmas colunas preenchidas com o Latossolo Vermelho, foi introduzida uma suspensão de fagos (tipo de vírus inofensivo aos seres humanos, que infecta apenas bactérias e é muito usado em laboratório para entender o comportamento de outros vírus patogênicos), que tem a bactéria Escherichia coli (E.coli) como hospedeira. Em forma de bastonete, a E.coli tem como habitat primário o trato intestinal de humanos e é considerada um indicador de qualidade de água por meio da análise de coliformes fecais.
Os fluxos controlados da água subterrânea (colhida anteriormente na mesma região do solo analisado) foram infiltrados nas colunas e as concentrações do vírus foram avaliadas ao longo de sua extensão, a medida que ele foi transportado. Os dados, após as análises, apontaram que quase 100% dos fagos ficaram retidos no solo mesmo após a injeção da água limpa. “Vimos que a retenção do vírus é bem alta e que esse solo tem potencial para evitar a contaminação das águas subterrâneas”, explica Juliana. “O próximo passo, agora, é verificar o quanto o vírus foi inativado e quanto ele foi adsorvido pelo solo e o risco de ser transportado com nova infiltração de água limpa, como a da chuva”.
Ajuda química
Além de estudar o transporte e a atenuação de vírus em solos tropicais, outra linha de pesquisa do grupo de Juliana abrange a remediação de solos e águas subterrâneas contaminadas utilizando a oxidação química (uso de compostos químicos oxidantes para destruir substâncias orgânicas prejudiciais à natureza e à saúde).
De acordo com a pesquisadora, para que a remediação por oxidação química traga resultados é preciso que o composto entre em contato direto com o contaminante. No entanto, quando se injeta o oxidante nessas águas, por meio de um poço – parecido com o de captação –, parte dele pode reagir com outros materiais e minerais contidos no solo, perdendo em parte ou totalmente a eficiência. “Por isso, entender a interação química com o solo é imprescindível para determinar o uso ou não de determinados oxidantes, bem como as quantidades necessárias para o efetivo processo de descontaminação do local”.
Na remediação por oxidação química, as moléculas ambientalmente prejudiciais são transformadas em moléculas menos tóxicas, envolvendo a transferência de elétrons entre reagentes. Enquanto um elemento perde elétrons (oxidação), o outro ganha (redução).
Persulfato em solo brasileiro
O número restrito de pesquisas sobre oxidação química e sua interação com solos tropicais levou os pesquisadores a testarem o persulfato de potássio (composto químico relativamente recente, bem aceito na área de remediação de águas subterrâneas) em três tipos diferentes de solos, comumente encontrados no país: o Latossolo Vermelho (LV), o Latossolo Vermelho-Amarelo (LVA) e o Neossolo Quartzarênico (NQ) – que ocupa 15% do território nacional e tem características distintas dos anteriores, pois é arenoso.
As amostras de solos foram colhidas nas regiões de Piracicaba e São Carlos e levadas ao laboratório para análises físico-químicas, antes da adição da solução de persulfato de potássio em três concentrações distintas – 0 mg/L (controle), 1.000 mg/L e 14.000 mg/L –, e monitoradas por 104 dias.
Os resultados apontaram que, nas concentrações de 1.000 mg/L, o persulfato de potássio decaiu extremamente rápido no LV e em 30 dias não foi mais detectada a sua presença. O mesmo ocorreu com o LVA e com o NQ, no entanto, com um percentual de decaimento menor.
Nas concentrações de 14.000 mg/L, os resultados também não foram animadores. Ao longo dos 100 dias, o percentual de concentração do oxidante foi de apenas 15% no LV contra 40% nos LVA e NQ.
A pesquisa, que foi tema do trabalho de conclusão de curso (TCC) para o título de bacharel em Ciências Ambientais da aluna Renata de Mello Rollo, comprova que fatores como a quantidade e o tipo de argila presentes no solo, bem como matéria orgânica e teores de ferro, podem influenciar no sucesso da remediação. “Quando comparamos com dados da literatura, o nosso solo apresenta um consumo de persulfato que varia de 10 a 100 vezes maior que os solos da América do Norte e Europa”, explica Juliana.
Outro oxidante está sendo estudado pelo grupo para o processo de remediação: o percarbonato de sódio. “Outra linha de pesquisa pretende avaliar quanto o processo de remediação muda o solo e se há impactos nas características físicas e químicas, potencialmente de interesse agronômico, e a liberação de metais pesados que poderiam atingir as águas subterrâneas”, diz a professora.
Artigo relacionado:
FREITAS, Juliana G.; RIVETT, Michael O.; ROCHE, Rachel S.; DURRANT, Megan; WALKER, Caroline; TELLAM, John H. Heterogeneous hyporheic zone dechlorination of a TCE groundwater plume discharging to an urban river
reach. Science of the Total Environment, v. 505, p. 236-252, fev. 2015. Disponível em: <http://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0048969714014053>. Acesso em: 22 Abr. 2015.

Impressora 3D promete revolucionar mercado de próteses de mão
Professora da Unifesp traz para o Brasil método de última geração
Da redação
Com colaboração de Patricia Zylberman

Uma das mais modernas próteses de mão produzida pela professora Maria Elizete Kunkel na impressora 3D
O uso de impressoras 3D para fabricar próteses, já testado com sucesso por Organizações não Governamentais (ONGs) na Europa e nos Estados Unidos, surge como alternativa revolucionária, devido aos preços elevados e à falta de variedade que marcam o setor no Brasil. Apostando nisso, Maria Elizete Kunkel, professora adjunta na área de Engenharia Biomédica do Instituto de Ciência e Tecnologia da Universidade Federal de São Paulo (ICT-Unifesp) em São José dos Campos, decidiu trazer para o país o projeto inovador de fabricação desses aparelhos no equipamento.
Tomando como base um projeto iniciado de uma parceria entre um carpinteiro da África do Sul que, ao perder sua mão em um acidente de trabalho, se uniu a um designer estadunidense e pensou em um modo mais simples e barato de criar uma prótese do que o convencional, a pesquisadora iniciou seus estudos, em 2014, enquanto ainda era professora da Universidade Federal do ABC (UFABC) e havia acabado de voltar do doutorado na Alemanha. “Procurava um projeto ao qual pudesse me dedicar, para desenvolver minha linha de pesquisa na universidade, e entrei em contato com os criadores do método de fabricação. Eles explicaram que havia um modelo de prótese de mão disponível na internet que nós poderíamos usar”, explica Maria Elizete.
Utilizando as medidas de sua própria mão, a pesquisadora iniciou a fabricação da primeira prótese-teste de termoplástico em uma impressora 3D da própria UFABC. Após o teste, Maria Elizete entrou em contato com um paciente do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (USP), que perdeu parte das mãos em consequência de um acidente de trabalho; ele aceitou ser voluntário para testar o protótipo. “Juntamente com uma equipe de Terapia Ocupacional do hospital, nós fomos aprimorando o projeto inicial, melhorando aspectos que possibilitassem a ele uma maior facilidade para pegar os objetos”. O voluntário aceitou realizar os testes com a prótese e a voltar sempre que houvesse alguma questão a ser esclarecida. Ao fim do processo, ele se adaptou aos aparelhos, tendo apenas pequenos problemas com sensibilidade em algumas partes de seu braço ao entrar em contato com alguns tipos de parafusos, mas estes foram alterados minimizando o desconforto.
Ao iniciar seu trabalho como docente na Unifesp, Maria Elizete continuou com seu projeto. Aproveitou, não só para aprimorar as próteses, mas também para reunir alguns alunos de iniciação científica e pós-graduação com o intuito de a ajudarem na pesquisa. O grupo desenvolve seus trabalhos em uma pequena sala no Parque Tecnológico de São José dos Campos e possui apenas duas impressoras do modelo 3DCloner, desenvolvido pela Microbras, a indústria doadora, e que tem um custo bem menor do que a anterior, usada na UFABC, que chegava a custar 300 mil reais.
A impressora, segundo a pesquisadora, “usa um filamento de plástico, que é derretido por uma bobina localizada acima do aparelho. Após o derretimento, ele é lentamente depositado em uma placa em camadas, que obedece um modelo de três dimensões previamente desenhado em um programa de computador e que acompanha as medições de largura e altura do coto do paciente e, assim, a prótese é criada”. O processo total leva cerca de 12 horas para ser finalizado.
Quando pronta, a prótese tem um funcionamento diferente das convencionais. O paciente deve utilizar as articulações de seu punho para movimentar os fios e elásticos existentes nela e, assim, abrir e fechar a mão. Uma novidade idealizada pela pesquisadora são os velcros colocados no aparelho para que ele possa ficar preso ao corpo do paciente, para que, desse modo, seu membro não fique em uma posição incômoda.
Atualmente, por falta de impressoras e pela necessidade de se afiliar a algum hospital nas proximidades do campus, a quantidade de pacientes é escassa. Além disso, segundo a professora, há uma grande falta desse aparelho para crianças no mercado e o Sistema Único de Saúde (SUS) não o disponibiliza. Deve-se ressaltar, ainda, o fato de que os produtos que estão disponíveis são extremamente pesados e não acompanham o crescimento dos indivíduos, fazendo com que eles tenham que ser trocados de tempos em tempos, aumentando muito o custo. Pensando nisso, a pesquisadora e seus colegas têm focado na fabricação, preferencialmente, de próteses infantis.
O passo seguinte à obtenção da prótese pelas crianças é a necessidade de se iniciar um trabalho com um terapeuta ocupacional. “Uma pessoa com muita ânsia para pegar o máximo de objetos com a prótese pode acabar realizando movimentos errados e ter alguma lesão ou tendinite, por isso, precisa--se do treino com um profissional da área de saúde”, afirma a pesquisadora. Nos EUA, por exemplo, onde o processo de confeccionar próteses por meio de impressoras 3D já está sendo realizado há mais tempo, qualquer um pode fazer esse tipo de dispositivo e doá-lo. No Brasil, o procedimento é outro; a prótese precisa ser indicada por um médico.
A pesquisadora espera que no futuro próximo haja um aumento do patrocínio e das iniciativas para a fabricação de próteses pela impressora 3D, diversificando a oferta de modelos e barateando os custos. “Os dispositivos tradicionais que existem hoje para adultos são as próteses estéticas, que imitam uma mão perfeita, porém não possuem função motora alguma, permanecem somente na função estática”, contou a pesquisadora e admitiu que, além disso, se uma parte da prótese rasgar ou for manchada não terá conserto e o equipamento precisará ser trocado. Ademais, as próteses feitas em uma impressora 3D utilizam plástico, o que diminui consideravelmente o custo para a fabricação.
O projeto da pesquisadora conta com outros docentes da Unifesp, como Jean Faber e Henrique Amorim da área de Neuroengenharia, que criam e testam diferentes dispositivos médicos que possam ser confeccionados por uma impressora 3D. Outro projeto da pesquisadora é uma prótese de quadril para bebês que nascem com essa parte do corpo não encaixada perfeitamente e, por essa razão, têm que ser imobilizados com as pernas em posição de 90 graus por meses. Atualmente se utiliza gesso para essa imobilização; com a impressora, o material empregado seria o plástico, muito mais leve e confortável. Esse projeto conquistou a segunda colocação no Prêmio Jovem Pesquisador no Congresso Brasileiro de Engenharia Biomédica de 2014. Outra proposta que está em andamento é um projeto destinado aos deficientes visuais que estudam Anatomia. Produzidas por impressão 3D, peças anatômicas teriam texturas diferentes para cada tecido, facilitando a aprendizagem daqueles que não conseguem enxergar.
No momento, Maria Elizete e seu grupo não estão focados apenas em aperfeiçoar a prótese já existente. “Pretendemos realizar mudanças estruturais e desenvolver modelos automáticos, além de mecânicos, que já permitem que a criança tenha a mobilidade para pegar um objeto, brincar, entre outras atribuições”, conta a pesquisadora. “Nós iremos realizar algumas modificações na prótese. Por exemplo, colocaremos uma ponteira nos dedos para que a pessoa possa utilizar o computador ou o teclado do celular”, acrescenta ela. Para que tais mudanças tenham início, o grupo está criando uma campanha chamada Mao3D para arrecadação de financiamento pela internet denominado “crowdfunding”. Com ele, qualquer um pode doar dinheiro e ajudar o projeto e, a partir disso, mais e mais modelos poderão ser confeccionados.
Recentemente a pesquisadora, um aluno de iniciação científica da UFABC e três alunas da Unifesp foram selecionados para apresentar seus projetos de tecnologia assistiva na Feira de Tecnologia da Campus Party.

A evolução das próteses de mãos produzidas pela impressora 3D
Artigos relacionados:
MUNHOZ, R.; MORAES, C. A. C.; KUNKEL, M. E.; TANAKA, H. Modelamento tridimensional de órtese para displasia do desenvolvimento do quadril por fotogrametria. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE ENGENHARIA BIOMÉDICA, 24., 2014, Uberlândia. Anais... Uberlândia: SBEB, 2014. p. 1601-1604. Disponível em: <http://www.canal6.com.br/cbeb/2014/artigos/cbeb2014_submission_476.pdf>. Acesso em: 12 Maio 2015.
Realidade ignorada
Pesquisas apontam que os traumas e a violência doméstica afetam a saúde mental de 67% das crianças que trabalham nas ruas
Da Redação
Com a colaboração de Bianca Benfatti

Ao andar de carro pelas ruas de São Paulo, muitos aspectos chamam a atenção, incluindo – é claro – o trânsito e a poluição. A grande quantidade de crianças e adolescentes que trabalham nos semáforos – localizados principalmente nos bairros com maior concentração de renda – foi, porém, o que instigou a médica psiquiatra Andrea de Abreu Feijó de Mello, do Departamento de Psiquiatria da Escola Paulista de Medicina (EPM/Unifesp) – Campus São Paulo.
Após concluir o doutorado em Ciências pela Unifesp com bolsa-sanduíche de um ano na Brown University (EUA), onde estudou estresse e depressão em adultos, percebeu que a maioria dos indivíduos com resposta alterada tinha histórico de trauma na infância.
De volta ao Brasil, publicou sua tese de doutorado e resolveu desenhar um projeto em nível de pós-doutorado para investigar o efeito de intervenções específicas, realizadas no período de crescimento de crianças, evitando-se riscos de problemas de saúde mental no futuro. Sua pesquisa foi possibilitada por uma parceria entre o Programa de Atendimento e Pesquisa em Violência (Prove) da Unifesp, do qual faz parte, e o Instituto Rukha, uma organização não governamental hoje desativada, que assistia crianças que trabalhavam nas ruas. A principal proposta dessa entidade foi o Projeto Virada, que objetivava retirá-las do trabalho nas ruas, oferecer apoio financeiro aos pais e fortalecer os vínculos familiares por meio de um rígido acompanhamento.
O projeto de pós-doutorado, que originou o trabalho intitulado Avaliação de um Programa de Enriquecimento Ambiental como Fator Protetor para o Estresse em Crianças em Situação de Rua, analisou 191 crianças e jovens entre 7 e 14 anos. “Escolhemos essa idade, pois já havia na literatura outros estudos sobre situações de abuso nessa faixa etária, mostrando que é possível realizar intervenções que possam ser protetoras”, esclarece a pesquisadora. Orientada por Jair de Jesus Mari, professor titular do Departamento de Psiquiatria, a pesquisa teve duração de dois anos (2008 a 2010) e foi apresentada em março de 2014.

A médica psiquiatra Andrea Feijó de Mello, que iniciou a pesquisa
A referência ao enriquecimento ambiental, adotado como procedimento na pesquisa, provém de estudos de estresse em animais, segundo Andrea. Criados em cativeiro, sem nenhum tipo de recurso lúdico, eles tornam-se cada vez mais irritados e estressados. Transferindo essa concepção para a realidade dos seres humanos, a pesquisadora indagou qual seria a repercussão no âmbito psicossocial ao melhorar o ambiente dos menores avaliados. Nesse aspecto destacou-se o trabalho do Instituto Rukha, o qual consistia em removê-los das ruas e colocá-los na escola; fornecer ajuda financeira aos adultos responsáveis e integrá-los a um programa de geração de renda, por meio de ensino profissionalizante, de modo que não dependessem mais dos filhos. Além disso, os menores eram incentivados a participar regularmente de atividades culturais e esportivas nos períodos livres.
A maior parte dos inscritos no projeto morava na região do Capão Redondo (zona sul de São Paulo) e foram abordados nos semáforos da av. Brigadeiro Faria Lima, via que atravessa áreas nobres da cidade. Dos 191 selecionados na primeira fase, dois terços (ou seja, 126) trabalhavam nas ruas e os 65 restantes permaneciam em casa, de acordo com informação repassada pela Ong. A seleção e arregimentação dos menores – no período de outubro de 2008 a março de 2009 –, coube aos educadores do Instituto Rukha, que foram – inclusive – treinados pelos médicos do Prove para a aplicação correta dos questionários de avaliação. “Como cientistas não podíamos interferir no ambiente nem no tipo de intervenção que a Ong realizava; só participávamos como observadores”, afirma Andrea. Dois anos depois, o número de indivíduos – que fora reduzido para 177 – foi reavaliado para compreender se havia ocorrido melhora das condições psicossociais após as ações de enriquecimento ambiental.
A maior parte dos instrumentos de análise foi utilizada nas duas fases do projeto, e todos os pesquisadores puderam apropriar-se dos dados colhidos, direcionando--os aos objetivos dos respectivos estudos. O Childhood Trauma Questionnaire (QUESI, na sigla em português), que foi respondido pelo próprio participante, contém perguntas do tipo: “Você tem comida em casa?”, “Já foi ameaçado?”, “Alguém já bateu em você?” etc. As questões abordam diversos aspectos, desde a negligência física e emocional até o abuso físico, emocional e sexual.
O World SAFE Core Questionnaire destina uma parte das perguntas às mães, relativamente às medidas punitivas que adotam com os filhos (se põem de castigo, batem, esganam, provocam queimaduras etc.). Havia, portanto, o temor entre os pesquisadores de que os responsáveis não fossem responder às perguntas – bastante diretas – do questionário, porém isso não ocorreu. O sigilo mantido sobre o estudo ajudou na investigação dos casos de abuso. Esse instrumento – que é utilizado no mundo todo pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e foi adaptado para os países de baixa renda, inclusive para o Brasil – aborda também questões sociodemográficas, religiosas e raciais.
O Questionário de Capacidades e Dificuldades (SDQ, na sigla em inglês) procura colher informações sobre sintomas de transtornos mentais nas crianças e jovens, permitindo detectar comportamentos significativos, mas não a doença em si. Por meio desse instrumento – que é de rastreamento e não de diagnóstico –, apurou-se que para 67% da amostra havia sintomas de transtorno mental. Submetendo-se esse grupo a nova avaliação, por meio do questionário denominado Schedule for Affective Disorders and Schizophrenia for School-Age Children (K-Sads), confirmou-se que 25% do total evidenciava algum diagnóstico psiquiátrico, número que pode ser considerado alarmante, se comparado com a média de 10-15% em estudos populacionais. “Situações como a extrema pobreza, desagregação familiar, abuso e negligência, perda dos pais e violência parental são todas relacionadas a um risco aumentado de ansiedade, depressão e transtorno de estresse pós-traumático ao longo da vida”, resume Jair Mari.
No grupo dos 67%, o diagnóstico mais frequente foi enurese noturna – que corresponde à perda involuntária de urina durante o sono –, seguido por transtorno de oposição e desafio, deficit de atenção e hiperatividade, transtorno de conduta, depressão e fobia. Um dado interessante em relação às punições físicas é que 50% das crianças e jovens afirmaram que eram agredidos, ao passo que 67% das cuidadoras confessaram o abuso. Dois anos depois da avaliação inicial, as respostas se repetiram: “Achamos que talvez a criança achasse que aquilo era tão corriqueiro que não fosse significativo ou tivesse vergonha de relatar a verdade quando questionada”, explica Andrea.
Cortisol e genética no estudo do estresse
Um dos desdobramentos do projeto de pós-doutoramento conduzido por Andrea de Mello foi a aferição dos níveis de cortisol nos menores trabalhadores de rua, antes e depois das ações de intervenção. Para esse estudo, denominado Factors Related to the Cortisol Awakening Response of Children Working on the Streets and Siblings, before and after Two Years of a Psychosocial Intervention, foram colhidas amostras de saliva e medidos os níveis de estresse.
O cortisol é um hormônio produzido pelas glândulas suprarrenais que serve para ajudar o organismo a controlar o estresse, entre outras funções. Sua quantidade no sangue varia durante o dia: é maior pela manhã e tende a diminuir até a noite, atingindo o menor índice quando o cansaço e o sono aparecem. Em situações de estresse muito intenso, o fluxo do cortisol é alterado. Se isso ocorre com frequência, o sistema pode tornar-se permanentemente hiper ou hiporresponsivo a estímulos ambientais. O nível alto desse hormônio está relacionado à depressão do tipo melancólico e o baixo, ao estresse pós-traumático.
No caso dos indivíduos incluídos no estudo, nenhuma diferença foi notada entre o quadro inicial e o final (após o período de intervenção), relativamente aos volumes de cortisol mensurados. Já havia sido detectado que os que trabalhavam nas ruas possuíam cortisol elevado no início do estudo, provavelmente porque eram submetidos a um estresse contínuo que ativava esse sistema de resposta. Dois anos depois, todos haviam deixado de trabalhar nos locais mencionados, enquanto os que continuaram a ser agredidos fisicamente em casa apresentavam volumes baixos de cortisol. Ambos os casos podem estar relacionados ao risco existente para desenvolver quadros psiquiátricos – a medida ideal do hormônio em questão estaria situada numa faixa intermediária. “Nós não podemos dizer que a intervenção mudou ou melhorou o padrão, o que era a hipótese inicial. Não chegamos a essa conclusão”, atesta Andrea.
Polimorfismos genéticos – correspondentes a alterações genéticas que decorrem de mutações – também foram investigados nas diminutas porções de saliva. Isso porque na literatura científica há estudos que afirmam que a presença deles torna os sujeitos mais suscetíveis a apresentar sintomas de depressão e estresse pós-traumático na vida adulta. Uma nova pesquisa, descrita no artigo denominado Lack of Association between the 5-HTTLPR and Positive Screening for Mental Disorders among Children Exposed to Urban Violence and Maltreatment, foi então desenvolvida por Giuliana Cláudia Cividanes, mestre em Psiquiatria e Psicologia Médica pela Unifesp, que é também pesquisadora do Prove, concluindo-se que não havia relação entre a presença de polimorfismos e os problemas de saúde mental observados nos componentes da amostra.
Os indicadores de saúde mental, dois anos depois

Elis Viviane Hoffmann, psicóloga e pesquisadora do Prove
Elis Viviane Hoffmann, psicóloga e colaboradora do Prove, propôs-se a estudar a saúde mental das crianças e jovens após a aplicação do programa criado pelo Instituto Rukha. A finalidade era saber se havia ocorrido melhora nos indicadores de saúde mental e quais eram os fatores que influenciaram esse resultado. A conclusão a que chegou foi que os participantes não mostraram recuperação significativa porque as mães ou cuidadores também apresentavam problemas psiquiátricos, em geral de depressão e ansiedade. “Isso demonstra a intensa ligação entre a saúde mental da criança e a da mãe; a correlação de melhora é intrínseca a esse fato”, resume Elis.
A partir desse estudo, a pesquisadora desenvolveu sua tese de doutorado, orientada pelo médico e docente Marcelo Feijó de Mello, que é também coordenador e um dos fundadores do Prove. O artigo científico que sintetiza a tese em questão foi submetido a análise para publicação, mas ainda não foi aprovado.
Violência transgeracional
De onde vêm os abusos e atos de negligência cometidos pelas mães contra seus filhos? Por que isso ocorre? É possível evitar esse tipo de comportamento? A essas e outras perguntas Mariana Rangel Maciel, médica psiquiatra que integra o corpo clínico do Prove e exerce suas atividades no Ambulatório de Transtornos de Personalidade (Amborder), buscou responder em sua dissertação de mestrado. Com base nesse estudo – orientado por Marcelo Feijó de Mello e Andrea de Abreu Feijó de Mello – produziu o artigo Children Working on the Streets in Brazil: Predictors of Mental Health Problems, que avaliou a infância das mães responsáveis pelos indivíduos que compuseram a amostra inicial e se isso estava relacionado com a violência doméstica. Neste caso, os resultados basearam-se nos dados colhidos na primeira fase, mediante visita dos educadores da Ong aos domicílios das famílias envolvidas no projeto.
As mães relataram infância problemática, com negligência física e emocional, além de abuso físico, emocional e sexual. Na maior parte dos casos, seu desenvolvimento psicológico havia sido alterado pelas circunstâncias referidas; após o nascimento dos filhos, as próprias mães agiam de forma violenta com eles ou não conseguiam protegê-los adequadamente das ameaças. Tudo se passava como se não conseguissem defendê-los corretamente, porque também elas não haviam sido protegidas de início. Desse modo, a violência acabava por transmitir-se de geração a geração, caracterizando os abusos transgeracionais. “Nós entendemos que, se for implantada uma política para tentar amparar essa população trabalhadora de rua, será necessário olhar para a família, para o seu funcionamento”, pondera Mariana.

Mariana Rangel Maciel, psiquiatra e pesquisadora do Prove
Já era do conhecimento da pesquisadora que a maioria das crianças e jovens (75%) trabalhava nas ruas há um ano; comparados com os que permaneciam em casa, às vezes da mesma família, eram mais velhos e mais frequentemente de cor negra, sofrendo – além disso – mais agressões físicas no ambiente doméstico. “O que nos faz refletir sobre se a criança escolhe ir para a rua porque sofre agressões ou se tem um comportamento mais difícil e, por isso, é mais agredida em casa”, acrescenta. No geral, os tipos de constrangimento autorreferidos e avaliados abrangiam violência urbana, violência doméstica (causada pelos responsáveis), abuso e negligência.
A fim de entender os motivos pelos quais os menores manifestavam sinais de transtornos mentais (67%), foi efetuada uma análise bivariada, que considera duas variáveis por vez, separadamente. No caso, foram estudados tais sintomas e os possíveis fatores que poderiam estar associados a eles: trabalho nas ruas, sintomas depressivos e de ansiedade apresentados pela mãe, agressões físicas domésticas, baixa renda e perturbação no funcionamento familiar. Este último foi mensurado por meio da Escala de Avaliação Global de Funcionamento nas Relações Familiares (GARF, na sigla em inglês). Para que todos os fatores fossem considerados ao mesmo tempo (em uma análise multivariada), reproduzindo situações mais próximas do real, foi aplicada a fórmula de regressão logística, fornecida pela estatística. Verificou-se, então, que quatro fatores eram determinantes: sintomas ansiosos e depressivos observados na mãe e sofrimento por punição física grave em casa aumentavam o risco de problemas de saúde mental; por sua vez, o bom funcionamento familiar e a presença do companheiro no lar diminuíam esse risco.
Ou seja, na apuração final o fato de o menor estar ou não na rua não interferia no quadro observado. Esse resultado – surpreendente – indicou, portanto, que todos os fatores que mais influenciaram no desencadeamento dos problemas de saúde mental estavam associados ao ambiente doméstico, não à rua. Ressalte-se, inclusive, que todos os cadastrados no Projeto Virada tinham casa e cuidadores e nenhum deles morava nas ruas. “Trabalhar no farol vendendo bala, coletando material para reciclagem ou só pedindo dinheiro era algo muito prejudicial, porém era apenas a ponta do iceberg”, analisa Mariana.
Outro ponto de interesse comentado pela pesquisadora refere-se ao fato de que mais da metade das mães apresentava sintomas de depressão e ansiedade e níveis de abuso e negligência na infância ainda mais altos que os relatados pelas crianças. Ainda que existisse um possível viés da memória autobiográfica influenciando a narrativa dessas mulheres e eventualmente inflacionando os relatos de experiências traumáticas na infância, ficou claro que as responsáveis por prover o cuidado das crianças foram também submetidas a violência.
O que seria preciso afinal para melhorar a vida dessa população e evitar a perpetuação da violência? “Para o crescimento saudável é fundamental um ambiente familiar agradável, com amor e proteção dos pais; ao mesmo tempo, é preciso que estes saibam impor limites – usando, quando necessário, de punições não violentas – e estimulem a criança do ponto de vista cognitivo e emocional”, observa Jair Mari.
Qualidade de vida das mães que lideram famílias é investigada
Utilizando os mesmos dados coletados na pesquisa principal, a médica psiquiatra e colaboradora do Prove Luciana Porto Cavalcante da Nóbrega resolveu investigar as mudanças na qualidade de vida das mães que lideravam as famílias participantes do projeto, após as ações previstas no programa. “Além de conhecer melhor essa população pouco estudada devido à dificuldade de acesso a seu local de moradia, procuramos saber se o trabalho da Ong estava surtindo efeito ou não”, observa Luciana.
Para esse novo estudo, que constituiu o foco de sua dissertação de mestrado, foram selecionadas 79 famílias lideradas apenas por mães, entre as cem que estavam cadastradas no projeto. Sob a orientação de Marcelo Feijó de Mello e a coorientação de Andrea de Abreu Feijó de Mello, a pesquisadora produziu o trabalho denominado Qualidade de Vida de Mães de Crianças Trabalhadoras de Rua da Cidade de São Paulo, que analisou o “antes” e o “depois” da intervenção.
“Ao considerar a qualidade de vida, é necessário abordar a questão sob quatro aspectos (de bem-estar e satisfação): físico, psicológico, das relações sociais e do meio ambiente”, explica Luciana.
O aspecto físico – no qual se identificou o maior nível de bem-estar – está vinculado principalmente à saúde física, à presença da dor, à capacidade de locomoção e à necessidade de tratamento médico, embora a satisfação com a aparência física tivesse sido também questionada.
O aspecto psicológico envolve os sintomas emocionais – como ansiedade e depressão –, tendo sido observado que a avaliação (e a percepção) da qualidade de vida estava fortemente associada a eles. Assim, mães que apresentavam tais sintomas ou que tinham filhos com problemas mentais referiram os níveis mais baixos de satisfação em relação aos aspectos físico, psicológico e do meio ambiente. Por outro lado, o fato de terem sofrido violência doméstica perpetrada pelo parceiro (21,8% dos casos) – quando sua figura estava presente no lar – ou de terem sido vítimas de abuso na infância não mostrou correlação com a satisfação de vida. Esta condição está em parte relacionada à forma como viam sua posição na sociedade, no contexto e na relação com seus pares. Além disso, quanto maior o número de filhos – a média era de quatro ou mais – mais alto o nível de bem-estar demonstrado, concluindo-se daí que a criança assumia um papel importante na família, pois a maioria delas trabalhava na rua e produzia recursos.
Examinando o histórico dessas mulheres, foi possível perceber a falta de cuidados que tiveram de suportar desde a infância. Ao responderem ao QUESI (Childhood Trauma Questionnaire) para adultos, os resultados foram preocupantes em razão dos altos índices relativos ao abuso emocional, físico e sexual, paralelamente à negligência emocional e física. No caso dos atos de violência cometidos pelos companheiros que, no último ano da pesquisa, conviveram com as mulheres entrevistadas, enumeram-se as agressões por tapa ou soco, espancamentos e ameaças com arma.
Verificou-se também que metade da amostra (51,8%) apresentava sintomas de depressão e ansiedade, embora o instrumento utilizado – um conjunto de 20 questões que abordavam desde alterações do sono até ocorrências mais graves – não fosse apropriado para estabelecer diagnósticos precisos. Os sintomas mais referidos foram: dor de cabeça, transtornos do sono, sobressaltos constantes, má digestão e dificuldade de pensar com clareza.
O aspecto das relações sociais, que basicamente se refere ao isolamento das genitoras, não apresentou melhora significativa – ou seja, do ponto de vista estatístico, não houve alteração nesse segmento do estudo.
O aspecto do meio ambiente compreende a satisfação com a segurança, os meios de transporte, o acesso aos recursos de saúde e lazer e as condições do ambiente físico (clima, ruídos e poluição). A análise do conjunto desses fatores revelou os piores níveis de satisfação, apesar da relativa melhora após o período de intervenção.
As conclusões do estudo apontaram que, no final do experimento, houve um aumento geral nos níveis de satisfação (exceção feita ao segmento das relações sociais), registrando-se ainda uma recuperação expressiva das mães que apresentavam transtornos mentais.
“Quando vemos crianças nos faróis, pedindo dinheiro, pensamos sempre na figura da mãe: quem é e o que estaria fazendo. Então, para combater essa triste realidade é preciso olhar para a família, a qual – na maior parte dos casos – é liderada por mulheres. Melhorar o funcionamento da família é um objetivo importante, pois a percepção da qualidade de vida ou o nível de satisfação pessoal demonstrado pela mulher depende desse fator”, conclui Luciana.
O financiamento global da pesquisa proveio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e sua concessão – intermediada pelo professor Jair de Jesus Mari – beneficiou todos os envolvidos no projeto. Os recursos complementares foram obtidos por meio de duas modalidades de bolsa (pós-doutorado e mestrado), concedidas pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e pela Capes respectivamente às pesquisadoras Andrea de Abreu Feijó de Mello e Elis Viviane Hoffmann.
Artigos relacionados:
MACIEL, Mariana R.; MELLO, Andrea de A. Feijó de; FOSSALUZA, Victor; NÓBREGA, Luciana P.; CIVIDANES, Giuliana C.; MARI, Jair de Jesus; MELLO, Marcelo Feijó de. Children working on the streets in Brazil: predictors of mental health problems. European Child and Adolescent Psychiatry, [s.l.], v. 22, n.3, p. 165-175, mar. 2013. Disponível em: <dx.doi.org/10.1007/s00787-012-0335-0>. Acesso em: 20 maio 2015.
CIVIDANES, Giuliana C.; MELLO, Andrea de A. Feijó de; SALLUM, Juliana M.; FOSSALUZA, Victor; MEDEIROS, Marcio de; MACIEL, Mariana R.; CAVALCANTE-NÓBREGA, Luciana P.; MARI, Jair de Jesus; MELLO, Marcelo Feijó de; VALENTE, Nina L. Lack of association between the 5-HTTLPR and positive screening for mental disorders among children exposed to urban violence and maltreatment. Revista Brasileira de Psiquiatria, São Paulo, v. 36, n. 4, p. 277-284, 2014. Disponível em: <dx.doi.org/10.1590/1516-4446-2013-1150>. Acesso em: 21 maio 2015.
MELLO, Andrea F.; MACIEL, Mariana R.; FOSSALUZA, Victor; PAULA, Cristiane S. de; GRASSI-OLIVEIRA, Rodrigo; CAVALCANTE-NÓBREGA, Luciana P.; CIVIDANES, Giuliana C.; SOUSSUMI, Yusaku; SOUSSUMI, Sonia P.; PERISSINOTTI, Dirce N. M.; BORDIN, Isabel A.; MELLO, Marcelo F.; MARI, Jair J. Exposure to maltreatment and urban violence in children working on the streets in São Paulo, Brazil: factors associated with street work. Revista Brasileira de Psiquiatria, São Paulo, v. 36, n. 3, p. 191-198, 2014. Disponível em: <dx.doi.org/10.1590/1516-4446-2013-1185>. Acesso em: 21 maio 2015.
MELLO, Andrea Feijó; JURUENA, Mario Francisco; MACIEL, Mariana Rangel; CAVALCANTE-NÓBREGA, Luciana Porto; CIVIDANES, Giuliana Claudia; FOSSALUZA, Victor; CALSAVARA, Vinicius; MELLO, Marcelo Feijó; CLEARE, Anthony James; MARI, Jair de Jesus. Factors related to the cortisol awakening response of children working on the streets and siblings, before and after 2 years of a psychosocial intervention. Psychiatry Research, [s.l.], v. 225, n. 3, p. 625-630, 28 fev. 2015. Disponível em: <dx.doi.org/10.1016/j.psychres.2014.11.034>. Acesso em: 21 maio 2015.
Polímeros condutores à prova do tempo
Pesquisadores do Campus Diadema desenvolvem estudos para compreensão de estruturas moleculares que visam ao aperfeiçoamento desses materiais
Valquíria Carnaúba
Você se lembra da última vez que utilizou algum polímero? Eles estão presentes em nossa vida em inúmeros produtos: utensílios domésticos, eletrodomésticos, brinquedos, componentes de automóveis e computadores. Além disso, constituem nosso corpo – o DNA, que contém o código genético, é um polímero – e os alimentos, como é o caso das proteínas e do amido.
Os polímeros – do grego polys (muitos) e meros (parte ou porção) – são grandes moléculas (macromoléculas) formadas por inúmeras outras menores, chamadas monômeros (monos, que significa um). A lista de facilidades que eles trouxeram à vida moderna é grande, e a preocupação em torno de suas propriedades também mobiliza há anos pesquisadores de todos os países. Isso porque o mundo moderno exige uma abordagem consciente para questões como a diminuição da dependência de polímeros orgânicos derivados do petróleo e o combate à obsolescência funcional desses materiais (que ocorre quando a baixa qualidade encurta o tempo de vida do produto), de modo a permitir a redução de seu descarte na natureza.
O grupo orientado por Laura Oliveira Péres Philadelphi, docente do Instituto de Ciências Ambientais, Químicas e Farmacêuticas (ICAQF/Unifesp) - Campus Diadema, desenvolve estudos promissores relacionados ao entendimento em nível molecular de substâncias que tornam os polímeros mais resistentes à deterioração, aumentando sua eficiência e durabilidade. Camila Gouveia Barbosa, Giovana Artuzo Parolin, Henrique de Lima Secco, Thays Cristina Fernandes dos Santos, Cecília Gonçalves Soares e Beatriz Pesco são alguns alunos que participam do grupo e decidiram focar suas pesquisas em torno dos chamados “metais sintéticos”, como são conhecidos os polímeros condutores – que possuem propriedades elétricas, magnéticas e ópticas próprias aos metais e aos semicondutores.
O mais adequado seria chamá-los de “polímeros conjugados”, pois são formados por cadeias que contêm ligações simples e duplas, alternadas entre átomos de carbono (conforme mostra a ilustração à página 67). A conjugação das cadeias de carbono, aliada ao processo de dopagem – que consiste na adição ou remoção de elétrons (reações de redução e oxidação, respectivamente) nas cadeias poliméricas –, é o que torna esse material condutor. Uma propriedade interessante que se obtém quando esses processos ocorrem é o chamado eletrocromismo, evidenciado pela mudança de cor do material. Mas, condutor ou não, o polímero tem um ponto fraco: é sensível à ação de agentes naturais. “Buscamos as formas como esse material pode ser protegido contra qualquer tipo de degradação”, explica Laura. Segundo a pesquisadora, o grande problema da deterioração dos metais sintéticos é a perda de eficiência na emissão de luz e na transmissão de dados, levando a seu descarte precoce. Recentemente, descobriu-se que isso pode ser revertido com o aumento da cristalinidade desses polímeros, ou seja, do alinhamento parcial de suas cadeias moleculares.
Para os polímeros, a cristalinidade é associada à compactação das cadeias de moléculas, de modo a produzir uma matriz atômica ordenada. Qualquer desalinhamento faz a estrutura tornar-se amorfa. O grau de cristalinidade afeta, até certo ponto, diversas propriedades físicas dos polímeros. Os polímeros cristalinos são geralmente mais fortes, além de mais resistentes à dissolução e ao amolecimento por calor.
Além de o material estar protegido para evitar a degradação, é preciso que as moléculas dispostas em torno do polímero original estejam alinhadas, de forma que as cadeias possam absorver e emitir luz polarizada, assim conhecida como o feixe de luz que se propaga em uma só direção. Nesse contexto, a técnica de Langmuir-Blodgett – que é uma das selecionadas pelos pesquisadores para o desenvolvimento de filmes finos destinados à proteção dos polímeros – é bastante promissora, pois por meio dela torna-se viável a produção de filmes com elevado grau de orientação, necessário ao transporte de dados, e organização estrutural.
Tecnologia sustentável
É importante ressaltar que o grupo aposta na criação de filmes protetores com materiais híbridos, formados por polímeros orgânicos, como os polifluorenos, politiofenos e poli (fenilenos-vinilenos) – estes conhecidos como PPV –, e materiais inorgânicos, como a sílica e a argila, que funcionam como meios de proteção. A vantagem dessa mistura é a sustentabilidade: “Se o sistema possuir algo entre 5% e 10% de polímero, podemos garantir a mesma eficiência, em termos de emissão, que um material formado apenas pelos polímeros conjugados.” Para a pesquisadora, uma taxa de eficiência em torno de 25% em relação ao padrão já justificaria a distribuição desses filmes protetores no mercado.
As lâmpadas de LED poliméricas, que prometiam substituir as superfícies de cristal líquido presentes em monitores de computadores, telas de TV e celulares, já não são mais alvo de avanços no setor. Agora, os cientistas começam a focar o desenvolvimento de novos tipos de lâmpadas e células poliméricas fotovoltaicas orgânicas. “Como a aplicação de filmes protetores contribui para a condutividade por meio da orientação das cadeias poliméricas, teremos no futuro painéis de captação solar maleáveis tão eficientes quanto os mesmos equipamentos produzidos com materiais rígidos disponíveis hoje”, garante Laura.
Aplicações em outras áreas, como no desenvolvimento de dispositivos fabricados com polímeros condutores para detecção de ácido úrico no organismo humano, marcadores de tumor e até os “narizes eletrônicos” (capazes de identificar determinadas propriedades de um material por meio de sensores químicos), já são visadas pelos pesquisadores. Mas o aperfeiçoamento desses sistemas ainda é um desafio a ser transposto. “Essa classe de materiais apresenta alguns problemas que dificultam seu emprego industrial, como a degradação térmica e química quando expostos à luz”, finaliza a pesquisadora.
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SOARES, Cecilia Gonçalves; CASELI, Luciano; BERTUZZI, Diego Luan; SANTOS, Fabio Santana; GARCIA, Jarem Raul; PÉRES, Laura Oliveira. Ultrathin films of poly (2,5-dicyano-p-phenylene-vinylene)-co-(p-phenylene-vinylene) DCN-PPV/PPV: A Langmuir and Langmuir-Blodgett films study. Colloids and Surfaces A: Physicochemical and Engineering Aspects, [s.l.], v. 467, p. 201-206, fev. 2015. Disponível em: <dx.doi.org/10.1016/j.colsurfa.2014.11.033>. Acesso em: 27 mar. 2015.
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Prevenção é adotada por minoria das escolas na cidade de São Paulo
Falta de verbas e de treino, além do temor de represálias do narcotráfico, bloqueia a expansão de programas contra o uso de drogas entre os jovens
Da Redação
Com a colaboração de Flávia Kassinoff

Menos da metade (42,5%) das escolas de ensino fundamental e médio em funcionamento no município de São Paulo adota programas de prevenção ao uso de drogas e álcool, ao passo que 48% dos responsáveis por essas instituições classificam como “extremamente alta” ou “alta” a necessidade de implementá-los. A adesão insuficiente explica-se por vários fatores: falta de verba para a aquisição de material adequado, grade curricular totalmente preenchida e ausência de treinamento para os professores.
Essas são as principais conclusões do estudo realizado por Ana Paula Dias Pereira, em parceria com o Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (Cebrid) e sob a orientação de Zila van der Meer Sanchez Dutenhefner, integrante desse órgão e professora do Departamento de Medicina Preventiva da Escola Paulista de Medicina (EPM/Unifesp) - Campus São Paulo. Em seu estudo – que resultou na dissertação de mestrado apresentada ao programa de pós-graduação em Saúde Coletiva – a autora analisou 263 escolas públicas e privadas, assim distribuídas: 42% pertencentes à rede estadual, 35% à municipal e 22% à particular.
“As escolas públicas não oferecem atividades desse tipo, pois não têm dinheiro para adquirir o material didático ou investir em cursos; as particulares não enfrentam tais problemas. Por outro lado, algumas escolas públicas localizadas em regiões onde existe tráfico de drogas não mantêm os programas de prevenção por medo de represálias por parte dos criminosos”, explica Ana Paula.
Um dos objetivos do Cebrid – que foi criado há mais de 30 anos e atualmente é vinculado ao Departamento de Medicina Preventiva – é auxiliar na formulação desses programas, avaliando os procedimentos adotados contra o uso de drogas (lícitas ou não) nas redes de ensino público e privado. Com base nas observações obtidas, os pesquisadores propõem práticas e métodos aperfeiçoados. Os projetos são realizados em parceria com diversos órgãos, mediante financiamentos provenientes do Ministério da Saúde, CNPq, Fapesp e United Nations Office for Drugs and Crime (UNODC). “Observamos o aumento de alguns padrões do consumo de drogas, mas nada muito bem estruturado vem sendo feito na área da prevenção. Nosso propósito é oferecer ao adolescente brasileiro programas de qualidade que efetivamente reduzam o consumo e os riscos associados”, diz Zila.
O trabalho elaborado por Ana Paula não se deteve na análise qualitativa dos programas adotados, pois o número de unidades de ensino estudadas era consideravelmente alto. A pesquisadora formulou, entretanto, uma reflexão crítica sobre o Programa Educacional de Resistência às Drogas e à Violência (Proerd), que é aplicado em 68% das instituições de ensino que participam da iniciativa e é prevalente nas redes estadual (66,7%) e municipal (77,8%). As escolas particulares também o utilizam (56%), embora – no caso – seja mais comum que a equipe da própria unidade desenvolva conteúdos sobre o tema (68%).
“Existem evidências em estudos internacionais que demonstram a ineficácia do Proerd. Os adolescentes sabem o que é uma droga, o que não é e conhecem os riscos. A dificuldade que têm hoje é dizer não”, afirma Ana Paula. Outro método criticado é o de realização de palestras com ex-usuários de drogas: como o palestrante ocupa uma posição de autoridade, com o vício superado, isto pode produzir a percepção de que é possível utilizar as drogas por um certo tempo e depois abandonar esse hábito, sem grandes consequências para a saúde e para a vida em geral.
O melhor modelo de programa de prevenção, de acordo com Ana Paula, é aquele que desenvolve habilidades para a vida, pois muitas vezes o jovem busca a bebida e as drogas para superar dificuldades de sociabilidade, como a timidez. O objetivo seria, portanto, aumentar os fatores de proteção e diminuir os fatores de risco. “A ideia é você desenvolver no adolescente a autonomia, entre outras habilidades, para que ele valorize tanto a independência quanto a qualidade de vida e perceba que, a longo prazo, o consumo de drogas não é a melhor opção. Um programa que é focado apenas em informação ou terrorismo sobre drogas acaba não atingindo os objetivos mais amplos de promoção da saúde”, pontua a orientadora Zila.
A equipe do Cebrid que avalia a distribuição e as características do programa de prevenção de drogas divulgará em breve os dados relativos à análise efetuada com base na amostra de mais de 1.300 escolas, localizadas nas cinco regiões brasileiras, ampliando assim as informações que já foram coletadas para a cidade de São Paulo.
As baladas e o esquenta
Outro grande projeto coordenado pela professora Zila e financiado pela Fapesp tem por objetivo compreender o contexto da utilização de drogas no ambiente noturno, principalmente em baladas. “Uma equipe de 20 pesquisadores foi alocada para a coleta de dados. Enquanto um grupo permanecia no exterior dos estabelecimentos, recrutando baladeiros para a pesquisa, o outro – atuando internamente – descrevia o ambiente físico e registrava a conduta social dos participantes”, informa Zila.
Mariana Guedes Ribeiro Santos, orientanda da professora Zila no programa de pós-graduação em Saúde Coletiva e uma das componentes da equipe, analisou a prática do esquenta, que consiste no ato de ingerir bebidas alcoólicas antes de frequentar o ambiente de festas. A pesquisa – objeto de sua dissertação de mestrado – foi realizada em 31 estabelecimentos noturnos da cidade de São Paulo, durante a entrada e a saída do público, por meio da técnica de coleta de dados, com o uso de bafômetro e a aplicação de questionário sobre comportamentos de risco e consumo de álcool e outras drogas.
Foram entrevistados 2.422 baladeiros, dos quais 44,3% eram adeptos do esquenta – para estes, os principais motivos para a mencionada prática era “chegar desinibido” (39,0%) e “economizar dinheiro” (31,7%). Esta última alegação foi, inclusive, desmistificada ao final da pesquisa: “O baladeiro diz que prefere o esquenta para economizar, mas descobrimos que ele é quem bebe mais na balada. Sai mais intoxicado e gasta mais”, explica Zila.
Os riscos associados a esse hábito são numerosos, pois o indivíduo fica sob a influência do álcool durante toda a noite, podendo assumir comportamentos violentos, comprometer a saúde nas relações sexuais e utilizar outras drogas. O esquenta aumenta ainda a chance de o indivíduo envolver-se em acidentes de carro, pois alguns dirigem embriagados após a saída da balada.
“A intoxicação por álcool nesses eventos está associada a diversos comportamentos de risco”, analisa Mariana. “Isso ocorre, também, pelo fato de que na legislação brasileira não há restrições à venda de bebidas alcoólicas para pessoas já alcoolizadas. Seria interessante desenvolver um trabalho diretamente nesses locais, apontando os efeitos, consequências e problemas associados ao abuso de álcool – como violência, direção imprudente e outras condutas de risco”, completa.
Os indivíduos que praticam o esquenta são majoritariamente jovens, brancos (72,1%), do sexo masculino (72,4%), na faixa etária de 18-25 anos (61%), com ensino médio completo (57%), que exercem atividade profissional (80%) e ainda vivem com a família de origem (65%). A ingestão prévia de bebidas alcoólicas ocorre principalmente na própria casa (33,0%), na rua (30,7%) e em bares (26,5%). As bebidas mais consumidas nessas ocasiões compreendem a cerveja (59,5%), vodca (32,7%) e energéticos (10,9%). “Alguns autores internacionais apontam que os hábitos no consumo de álcool estão modificando-se, especialmente entre a população feminina, cuja taxa de adesão ao esquenta tem aumentado”, aponta Mariana.
Qual seria a melhor solução para reduzir o abuso de álcool e diminuir os riscos dele decorrentes? Mariana aponta algumas possíveis soluções como a fiscalização rigorosa nos locais mais comuns de compra de álcool pelos jovens, como padarias, postos de gasolina, lojas de departamento, supermercados e afins. Outra alternativa seria restringir o acesso às bebidas para aqueles que já se encontram embriagados. Deve-se ponderar, por outro lado, que a maior taxação sobre as bebidas alcoólicas no ambiente interno das baladas poderia não surtir o efeito desejado, pois seu preço iria aumentar – e consequentemente o esquenta também aumentaria, visto que um dos principais motivos apontados para sua prática é a economia de gastos. A professora Zila argumenta, entretanto, que “estudos internacionais defendem a elevação da taxação do álcool em todos os estabelecimentos de venda, incluindo supermercados e lojas de rua, como a medida mais eficaz na redução da intoxicação alcoólica dos jovens”.

Relação entre consumo de álcool por estudantes do ensino médio e classe social
Um estudo realizado pelo Cebrid avaliou o consumo de drogas em escolas públicas e particulares do ensino fundamental e médio, estabelecidas nas capitais dos 26 Estados e no Distrito Federal. No âmbito desse levantamento, a professora Zila buscou descrever as características do consumo de bebida alcoólica entre estudantes do ensino médio, de acordo com a respectiva classe social. No caso, foram selecionadas escolas das cinco macrorregiões do país, registrando-se a participação de estudantes com idade variável entre 14 e 18 anos.
Ao contrário do que se observa nos países desenvolvidos e do que relata a literatura mundial, os estudantes brasileiros pertencentes às classes sociais mais altas são os que mais aderem ao binge drinking, que consiste em ingerir cinco ou mais doses seguidas. Verificou-se que essa prática é mais comum entre jovens do sexo masculino que cursam escolas particulares. O estudo descartou a hipótese de que no Brasil a pobreza é um fator de risco para o abuso de álcool entre os adolescentes. Ressalte-se que na Europa e nos Estados Unidos os levantamentos mostraram que o consumo de álcool é maior entre os estudantes mais pobres.
Outras conclusões indicaram que o impacto social e emocional de ter boas condições financeiras em um país desenvolvido pode ser diferente daquele de ser rico em uma economia emergente com alta desigualdade social. Além disso, o índice de desigualdade – de acordo com pesquisas recentes – também é um fator de risco para o uso de drogas.
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SANCHEZ, Zila M.; LOCATELLI, Danilo P.; NOTO, Ana R.; MARTINS, Silvia S. Binge drinking among Brazilian students: a gradient of association with socioeconomic status in five geo-economic regions. Drug and Alcohol Dependence, [s.l.], v. 127, n. 1-3, p. 87-93, jan. 2013. Disponível em: <dx.doi.org/10.1016/j.drugalcdep.2012.06.018>. Acesso em: 29 abr. 2015.
SANCHEZ, Zila M.; SANTOS, Mariana G.; PEREIRA, Ana Paula D.; NAPPO, Solange A.; CARLINI, Elisaldo A.; CARLINI, Claudia M.; MARTINS, Silvia S. Childhood alcohol use may predict adolescent binge drinking: a multivariate analysis among adolescents in Brazil. The Journal of Pediatrics, Filadélfia, Pensilvânia (EUA), v. 163, n. 2, p. 363-368, ago. 2013. Disponível em: <dx.doi.org/10.1016/j.jpeds.2013.01.029>. Acesso em: 29 abr. 2015.
SANCHEZ, Zila M.; RIBEIRO, Luciana A.; MOURA, Yone G.; NOTO, Ana R.; MARTINS, Silvia S. Inhalants as intermediate drugs between legal and illegal drugs among middle and high school students. Journal of Addictive Diseases, Londres, v. 32, n. 2, p. 217-226, 2013. Disponível em: <dx.doi.org/10.1080/10550887.2013.795472>. Acesso em: 30 abr. 2015.
SANCHEZ, Zila M.; NOTO, Ana R.; ANTHONY, James C. Social rank and inhalant drug use: the case of lança-perfume use in São Paulo, Brazil. Drug and Alcohol Dependence, [s.l.], v. 131, n. 1-2, p. 92-99, jul. 2013. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1016/j.drugalcdep.2012.12.001>. Acesso em: 30 abr. 2015.
SANTOS, Mariana G. R.; PAES, Angela T.; SANUDO, Adriana; SANCHEZ, Zila M. Factors associated with pre-drinking among nightclub patrons in the city of São Paulo. Alcohol and Alcoholism, [s.l.], v. 50, n. 1, p. 95-102, 2015. Disponível em: < http://dx.doi.org/10.1093/alcalc/agu055>. Acesso em: 30 abr. 2015.
PEREIRA, Ana Paula Dias. Levantamento sobre os programas de prevenção ao uso de drogas nas escolas de ensino fundamental e médio das redes pública e privada de ensino do município de São Paulo. 2014. 90 f. Dissertação (Mestrado em Saúde Coletiva) – Escola Paulista de Medicina, Universidade Federal de São Paulo, São Paulo.
SANTOS, Mariana Guedes Ribeiro. O fenômeno de “esquenta” entre jovens: características e fatores associados ao beber pré-balada. 2014. 153 f. Dissertação (Mestrado em Saúde Coletiva) – Escola Paulista de Medicina, Universidade Federal de São Paulo, São Paulo.
Pesquisa na Mata Atlântica abre perspectiva de novos medicamentos
Baccharis retusa DC., original da Serra da Mantiqueira, apresenta resultados positivos nas ações biológicas
Da Redação
Com colaboração de Bianca Benfatti
A Serra da Mantiqueira, localizada nos Estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, é recoberta pela Mata Atlântica, um dos biomas com maior diversidade do planeta, lar de mais de 20 mil espécies de plantas, sendo 8 mil endêmicas. E é sobre esse meio ambiente que os pesquisadores do Instituto de Ciências Ambientais, Químicas e Farmacêuticas da Universidade Federal de São Paulo (ICAQF/Unifesp) - Campus Diadema, se debruçam desde 2008 à procura de compostos com atividade farmacológica em diversas plantas oriundas das regiões de campos de altitudes.
As atividades descritas acima são desenvolvidas com financiamento no âmbito Jovem Pesquisador da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). A tarefa inicial buscou prospectar majoritariamente espécies da família das Asteraceae, cujo representante mais famoso é o girassol. Após muitos estudos etnofarmacológicos, foi encontrada a Baccharis retusa DC., pertencente à referida família. “Naquele momento, quando nós iniciamos os trabalhos com a Baccharis retusa, era nosso objetivo pesquisar compostos com ação antiparasitária, investigar protótipos para o desenvolvimento de remédios no tratamento de leishmaniose e doença de Chagas”, conta João Henrique Ghilardi Lago, professor adjunto do campus e um dos pesquisadores envolvidos no projeto. A equipe de cientistas também é composta por Patrícia Sartorelli, professora adjunta do mesmo instituto.
Depois de análises do extrato da Baccharis retusa, chegou-se em um resultado positivo para atividade in vitro. Assim começaram os estudos, primeiramente por meio de análise de desreplicação do extrato bruto, visando conhecer os principais compostos presentes nessa matriz complexa, seguido pela análise química biomonitorada ou bioguiada, com o objetivo de descobrir dentro de inúmeras substâncias, qual ou quais delas, presentes no extrato, eram responsáveis por aquela ação. Após obtenção do composto isolado, ou seja, em elevado grau de pureza, iniciou-se o processo de caracterização química, usando ferramentas espectroscópicas para conhecer a arquitetura molecular da substância ativa.
No caso da Baccharis retusa, a desreplicação do extrato mostrou que o mesmo é composto por dez flavonoides diferentes, além de três ácidos clorogênicos. Esses compostos, também conhecidos como polifenólicos, são substâncias de origem vegetal e desempenham um papel fundamental na proteção da planta contra agentes oxidantes (raios ultravioletas, poluição, etc.). Porém, apenas um deles mostrou-se ativo no alvo biológico, a sakuranetina, cuja ocorrência é majoritária no extrato (presente em cerca de 50%). A cada cinco gramas, eram isolados de um a dois, fato raro, segundo os estudiosos. É mais comum existirem metabólitos (produto do metabolismo de uma determinada substância) na faixa de até 1% e possuir uma diversidade enorme de compostos, diferente dos quase 20% encontrados na Baccharis retusa. Além dos resultados obtidos, é importante afirmar que essa espécie nunca havia sido estudada quimicamente, nem biologicamente, apesar de ter algumas utilidades etnofarmacológicas, o que permite trazer contribuições significativas a cerca da quimiossistemática do gênero Baccharis, além de informações sobre o potencial biológico dessa espécie.
O processo de coleta das plantas não é um processo aleatório. Além de estudos prévios sobre qual será retirada do ambiente, há ainda a necessidade de autorizações. “Portanto, nós precisamos dos nossos colaboradores na área de Botânica, que possuem todas as permissões para acesso e manipulação do material”, relata Patrícia. Os botânicos da equipe sabem qual é a espécie certa que os pesquisadores precisam, taxonomicamente falando; colhem, trazem para o laboratório, onde será secada, moída, extraída e submetida aos estudos químicos e biológicos.
Caso os compostos obtidos da Baccharis retusa virem protótipos para o desenvolvimento de fármacos, é de extrema importância que a síntese em laboratório seja simples, evitando o risco de extinção da planta. “Existem dois parâmetros para estudo que eu sempre cito para os meus alunos: é necessário ter quantidade do material na natureza e a estrutura da substância que está sendo caracterizada deve ser relativamente fácil de ser sintetizada. É isso que a indústria quer”, afirma Lago. O taxol, por exemplo, medicamento extraído de planta e utilizado contra o câncer de mama, apresenta uma estrutura extremamente complexa para se reproduzir em escala laboratorial, sendo inviável comercialmente. Ao contrário da aspirina, que apresenta uma estrutura simples, baseada em produto natural e cuja síntese é totalmente feita no laboratório em larga escala.
Atividades biológicas encontradas
A sakuranetina, o flavonoide ativo da planta em questão, apresentou nos modelos testados atividades anti-inflamatória, antimicrobiana e antiparasitária. Doenças parasitárias como a leishmaniose, malária e doença de Chagas, patógenos humanos como o cryptococcus e a cândida, além de bactérias e leveduras também estão sendo analisados pelo grupo.

Os professores João Lago e Patrícia Sartorelli, responsáveis pela pesquisa
A metodologia utilizada para chegar aos resultados das atividades biológicas específicas envolve entender o mecanismo de ação da droga, estudos sobre a estrutura e atividade, para desse modo identificar quais grupos funcionais na molécula são mais importantes; pesquisas in vitro e in vivo, de toxicologia, para avaliar quão nociva é essa substância. Em relação à bioatividade apresentada pela planta em questão, um estudo conduzido pela professora adjunta Carla Máximo Prado, também do ICAQF/Unifesp, mostrou que a sakuranetina teve excelente atividade anti-inflamatória em modelo respiratório, “Esse modelo foi fantástico, um desempenho muito interessante comparado a dexametasona, anti-inflamatório padrão de controle positivo nos ensaios conduzidos”, relata Lago.
A próxima questão a ser resolvida pelo grupo diz respeito à averiguação quanto à toxicidade in vivo da amostra, ou seja, a avaliação, no modelo animal, com relação à quantidade de toxinas dessa substância. Possuindo em mãos a concentração nociva in vitro, as prospecções toxicológicas virão em seguida. Essa etapa já se iniciou com a Baccharis retusa. “Não sendo tóxica, nós partimos para os estudos pré-clínicos, pois não basta dizer se é ativo ou não; é ativo sim, mas prejudicará o ser humano? Vale a pena investigar para se tornar um futuro fármaco?”, comenta Patrícia.
A grande vantagem desse trabalho, de acordo com os cientistas, é a interdisciplinaridade. Começa com o botânico em campo coletando as plantas, depois entra o químico no laboratório para processar, purificar, isolar e caracterizar o material bioativo. Na sequência, entram os estudos na parte da Farmacologia, da Biologia Molecular, Biologia Celular, ou seja, há uma enorme gama de estudos.
A pesquisa, com essa e outras espécies vegetais bioativas, já dura dez anos e vem sendo financiada por meio de diversos outros projetos apoiados pela Fapesp, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), além das bolsas da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) que os alunos do programa de pós-graduação em Biologia Química e Ciência e Tecnologia da Sustentabilidade recebem, ambos do ICAQF/Unifesp. “Nós podemos dizer que depois de dez anos, temos quatro ou cinco protótipos que valem a pena investirmos, para pensar em etapas pré-clínicas posteriores e até, porque não, estar nas clínicas”, reflete o pesquisador.
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GRECCO, Simone S.; DORIGUETO, Antonio C.; MARTO, Kevin; LIMA, Ricardo; LANDRE, Iara; SOARES, Marisi G.; PASCON, Renata C.; VALLIM, Marcelo A.; CAPELLO, Tabata M.; ROMOFF, Paulete; SARTORELLI, Patrícia; LAGO, João Henrique G. Structural crystalline characterization of sakuranetin - an antimicrobial flavanone from twigs of Baccharis retusa (Asteraceae). Molecules, v. 19, nº 6, p. 7528-7542, jun. 2014. Disponível em: <http://www.mdpi.com/1420-3049/19/6/7528/htm>. Acesso em: 14 Abr. 2015.
TOLEDO, A. C.; SAKODA, C. C. P.; PERINI, A.; PINHEIRO, N. M.; MAGALHÃES, R. M.; GRECCO, S. S.; TIBÉRIO, I. F. L. C.; CÂMARA, N. O.; MARTINS, M. A.; LAGO, J. H. G.; PRADO, C. M. Flavanone treatment reverses airway inflammation and remodelling in an asthma murine model. British Journal of Pharmacology, v. 168, nº 7, p. 1736-1749, abr. 2013. Disponível em: <http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/bph.12062/full>. Acesso em: 14 Abr. 2015.
GRECCO, Simone S.; REIMÃO, Juliana Q.; TEMPONE, André G.; SARTORELLI, Patrícia; CUNHA, Rodrigo L. O. R.; ROMOFF, Paulete; FERREIRA, Marcelo J. P.; FÁVERO, Oriana A.; LAGO, João Henrique G. In vitro antileishmanial and antitrypanosomal activities of flavanones from Baccharis retusa DC. (Asteraceae). Experimental Parasitology, v. 130, nº 2, p. 141-145, fev. 2012. Disponível em: <http://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0014489411003298>. Acesso em: 14 abr. 2015.
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GRECCO, Simone S.; REIMÃO, Juliana Q.; TEMPONE, André G.; SARTORELLI, Patrícia; ROMOFF, Paulete; FERREIRA, Marcelo J. P.; FÁVERO, Oriana A.; LAGO, João Henrique G. Isolation of an antileishmanial and antitrypanosomal flavanone from the leaves of Baccharis retusa DC. (Asteraceae). Parasitology Research, v. 106, nº 5, p. 1245-1248, abr. 2010. Disponível em: <http://link.springer.com/article/10.1007/s00436-010-1771-8/fulltext.html>. Acesso em: 14 abr. 2015.
Corte orçamentário e o passo sem pé do governo federal
Juliano Quintella Dantas Rodrigues
Aluno de doutorado do programa de pós-graduação em Farmacologia
Henrique Camara
Aluno de mestrado do programa de pós-graduação em Biologia Molecular
Gabriel Andrade Alves
Jornalista, com doutorado em Ciências pela Escola Paulista de Medicina

As recentes medidas econômicas da presidente Dilma para manter as contas equilibradas afetam, e muito, as universidades federais. A verdade é que não é possível ter ideia do atraso que será causado com o grande corte de verbas proposto pelo governo no ano de 2015.
A Unifesp é uma universidade em pleno processo de expansão. Para que sua estrutura e funções possam ser mantidas, são gastos cerca de R$ 680 milhões anualmente. No entanto, os recursos recebidos todos os anos são defasados em algumas dezenas de milhões de reais, e isso faz com que a universidade precise, repetidamente, de complementação de verba. Então vem a notícia do Palácio do Planalto de que haverá um corte na educação. Se não bastasse a tristeza que é receber tal novidade, imagine que o corte orçamentário do MEC está em 600 milhões por mês. Traduzindo, é como se o país perdesse, apenas em 2015, todo o empenho e a produção de uma universidade como a Unifesp durante mais de dez anos.
Claro, isso é mais grave se considerarmos que a Unifesp passa por um processo de expansão que ainda não chegou a seu auge. O que era prioridade para o governo (expandir o alcance das universidades federais) terá agora de ser feito de maneira capenga, após um corte em torno de 30% do orçamento. Será que chegaremos, de fato, à zona leste da capital?
Na área de pesquisa, vamos fazer um replanejamento no orçamento dos projetos. Os animais de experimentação terão de ser bancados e mantidos com o dinheiro para custeio do pesquisador, o que antes era garantido por verbas da universidade. O dinheiro que seria direcionado, por exemplo, para a compra de reagentes e a participação em congressos agora será investido na criação e manutenção dos animais.
Entre as áreas que prioritariamente sofrerão cortes estão as diárias e os contratos de prestadores de serviço. Sem o pagamento daqueles valores não é possível ter pesquisadores visitantes e, sem a prestação de serviços, como garantir o mínimo de estrutura necessária para fazer pesquisa? O ministro Aldo Rebelo (da Ciência, Tecnologia e Inovação) prometeu empenho em restaurar as verbas. Vamos, então, aguardar seus próximos pronunciamentos.
Por que brigar pela manutenção de verbas em um momento delicado das contas públicas como este? A verdade é que o Brasil ainda está muito atrasado. A educação insiste em permanecer entre as piores do mundo. No ranking do Fórum Econômico Mundial, o ensino de Matemática e Ciências no Brasil ocupa o 112º lugar entre 122 países avaliados.
Apesar da melhora sentida e reconhecida ao longo das últimas décadas na pesquisa científica, estamos entre os mais ineficientes do mundo. No ranking elaborado pela revista Nature, nossa eficiência (trabalhos publicados em revistas de prestígio em proporção ao dinheiro investido) é pior que a de países como o Paquistão e o Irã.
O Brasil só será uma potência econômica quando nossos dirigentes e a sociedade civil aceitarem a ideia de que ciência e educação são investimentos, e não gastos.
Perder verbas na educação e no sistema de ciência, tecnologia e inovação para ganhar “leveza orçamentária” é a mesma coisa que serrar uma perna para perder peso. Como vamos ganhar a corrida em busca de um país desenvolvido se dar um passo já é tão difícil e doloroso?
A melhor atitude que Dilma poderia tomar é ser menos autoritária e discutir com os representantes de associações e movimentos sociais a maneira correta de conter verbas, e não atrasar – em “medida imensurável” – o desenvolvimento do país.
Universidade pública assume o seu papel na crise hídrica
Soraya Smaili
Reitora da Unifesp
Momentos de crise têm o mérito de interpelar as instituições e os indivíduos pertinentes que, em princípio, teriam o dever de apontar as soluções mais adequadas para o problema em pauta. Não é durante a normalidade amena da vida cotidiana que as aptidões e competências são testadas, mas sim em épocas que demandam respostas emergenciais. À primeira vista, tudo isso é evidente. Mas, muitas vezes, ocorrem situações de crise que sequer são reconhecidas enquanto tais – por incompetência técnica, por interesses políticos e ideológicos ou por falta de sensibilidade; não importam os motivos.

A questão da responsabilidade diante da crise foi apontada, há milênios, por Hipócrates (c. 460–377 a.C.). Para o “pai da Medicina”, caberia ao médico o dever de identificar a ocorrência de um estado crítico a partir dos sintomas apresentados pelo paciente, para, em seguida, fazer o diagnóstico e recomendar o tratamento. Reconhecer a existência de uma crise, portanto, é um primeiro passo necessário para resolvê-la. A tradição aberta por Hipócrates configura uma ética, uma forma de agir que, obviamente, extrapola os limites da prática médica e deve ser respeitada pelo profissional, qualquer que seja a sua área de atuação.
A crise do sistema de abastecimento de água no Estado de São Paulo constitui um momento que, no âmbito da Administração Pública, interpela o governo e seus agentes e, no campo da compreensão científica do fenômeno e formulação de propostas, indaga a universidade pública e os seus pesquisadores. A instituição pública de ensino superior vem tentando cumprir com o seu papel.
Há anos, os pesquisadores, professores e especialistas das universidades públicas federais e estaduais, em especial os paulistas, vêm alertando para a necessidade de agir com o objetivo de evitar a crise hídrica. Tradicionalmente, boa parte das pesquisas sobre o tema é realizada no interior dessas instituições. A Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) financia estudos realizados segundo rigorosos padrões nacionais e internacionais.
Vários encontros, seminários e simpósios produziram propostas que poderiam ter sido melhor aproveitadas pelo poder público, além de contribuir com os esforços feitos por entidades ambientalistas e institutos especializados, incluindo o Conselho da Cidade de São Paulo, a Academia Brasileira de Ciências e a Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental. Apesar de todas essas manifestações e da amplitude da crise, as universidades não obtiveram as informações necessárias e suficientes, por parte dos órgãos gestores da administração pública, para determinar o impacto exato implicado pela crise hídrica.
As universidades públicas querem, podem e devem contribuir e oferecer soluções no melhor interesse do conjunto da sociedade. Além do plano emergencial para nossas próprias instituições, propomos a instalação de um Painel Técnico-Acadêmico de Recursos Hídricos, com a participação das universidades estaduais (USP, Unesp, Unicamp) e federais (Unifesp, UFSCar e UFabc) em São Paulo, além do IFSP. Sua missão é a de apresentar estudos concretos e de relevância científica e tecnológica sobre a questão hídrica. As primeiras providências e medidas aprovadas no âmbito do painel incluem:
1. Demandar e ajudar a implantar um Plano de Contingência geral e coordenar os planos de cada universidade e seus órgãos associados (hospitais, clínicas, bibliotecas, estações);
2. Obter e contribuir para um Plano de Comunicação da Crise, com o objetivo de manter a população em geral, e em especial a comunidade universitária, plenamente informada;
3. Indicar e ajudar a implantar o Programa de Gestão e de Demanda na região da macrometrópole;
4. Verificar e fazer cumprir o monitoramento integrado da quantidade e da qualidade das águas;
5. Obter e trabalhar para adquirir planos de ações de incentivo financeiro e solicitar linha de crédito federal e estadual para adequação das estruturas ao contingenciamento;
6. Reformular e dinamizar as atividades de pesquisa e desenvolvimento tecnológico, juntando especialistas de nossas universidades e associações científicas.
Exagerando um pouco no uso da técnica interpretativa, em abril de 1959, John Kennedy afirmou: “Quando escrita em chinês, a palavra crise é composta por dois caracteres. Um representa perigo e o outro representa oportunidade”. A afirmação de Kennedy, repetida inúmeras vezes nas décadas seguintes, nos mais variados cenários, pretendia mostrar que situações críticas também abrem novas possibilidades de crescimento. O “exagero” vem do fato de que o caractere chinês “ji”, ao qual ele se refere, pode significar muitas outras coisas, até mesmo “oportunidade”. Mas a ideia é boa.
Cabe ao governo, em todos os níveis, aproveitar o momento para valorizar a universidade pública, transformá-la em parceira e estimular a comunidade científica em nome dos interesses maiores da sociedade brasileira. Nós, junto com Hipócrates, fazemos a nossa parte.