Relato escrito por Anderson Kazuo Nakano, professor do Instituto das Cidades; Fotos por Egeu Esteves
Na manhã do dia 14 de Abril de 2023, o arquiteto, desenhista, pintor e escritor Sergio Ferro chegou ao Instituto das Cidades junto com uma bela chuva tropical. Ele veio acompanhado por Pedro Arantes, professor da Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Unifesp. Ambos vieram participar de um diálogo com professoras, professores, alunas e alunos do curso de geografia do Instituto. A conversa se desdobrou em vários assuntos, mas sempre em torno das explorações do trabalho nos processos de produção e construção dos espaços geográficos, urbanos e arquitetônicos, em especial da cidade modernista de Brasília. Essas explorações foram e continuam sendo criticadas por Sergio Ferro ao longo de sua trajetória política, intelectual e profissional, desde seus tempos de estudante e professor na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP nas décadas de 1950-60.
No diálogo com Patrícia Laczynski, Guilherme Petrella e Pedro Arantes realizado com a participação de estudantes do Instituto das Cidades, Sergio Ferro relatou o choque que sentiu ao ter contato, junto com seu amigo Rodrigo Lefèvre, com as condições precárias nas quais os trabalhadores maltrapilhos, famélicos e doentios eram explorados nos lamaçais dos canteiros de obras da construção de Brasília levadas a cabo durante o governo JK, nas décadas de 1950-60. Inseridos no contexto do desenvolvimentismo e da integração nacional, os trabalhadores desses canteiros trabalhavam em ritmo acelerado de manhã, de tarde e de noite para erguer os monumentos arquitetônicos projetados por Oscar Niemeyer. Em pagamento, recebiam baixíssimos salários.
Acidentes de trabalho, muitas vezes fatais, eram recorrentes nos canteiros de obras da construção de Brasília. Trabalhadores morreram soterrados no concreto armado das estruturas arquitetônicas dos palácios e edifícios institucionais brasilienses. Esses trabalhadores representam os custos sociais, muitas vezes ignorados, da construção do país que o Sergio Ferro vê simbolizada na estrutura da catedral de Brasília. Os pilares de seção parabólica e formato hiperbolóide desse belo edifício se distribuem formando uma circunferência a partir da qual se erguem convergindo para o centro e irradiando-se de volta em direção a essa circunferência. É como se o projeto de desenvolvimento brasileiro convergisse para a construção de Brasília no centro do território nacional para, em seguida, irradiar-se em direção às demais regiões do país.
A construção de Brasília, bem como de qualquer cidade do mundo capitalista, contribuiu para a produção e acumulação de mais-valor e, como isso, para a elevação da taxa de lucro à custa do barateamento da mão de obra. Segundo Sergio Ferro, JK não conseguiria trazer o capital internacional se as empresas multinacionais não tivessem a garantia de lucros altíssimos. Isso foi conseguido com a alta exploração da classe trabalhadora, inclusive nos canteiros de obras. Essa lógica se reproduz no tempo e no espaço e alcança todas as grandes cidades distribuídas ao redor do mundo no passado e no presente. Os modos predatórios, exploradores e espoliativos de produção capitalista de cidades e de espaços urbanos disseminaram-se em escala global. Sergio Ferro informou que esse modo rege tanto o funcionamento de canteiros de obras das cidades do Qatar e da China quanto dos empreendimentos do Programa Minha Casa Minha Vida. Encontram-se nos canteiros de obra das cidades de Londres, Berlim, Madri e também na proposta que pretende dobrar o tamanho da área urbanizada de Paris.
Assim, antes de iniciar o diálogo com os professores e alunos do Instituto das Cidades, Sergio Ferro afirmou que a construção de edifícios e de espaços urbanos nos grandes assentamentos humanos atuais coloca-se como uma das principais frentes de ampliação da produção de mais-valor baseada na exploração da classe trabalhadora. Ao mesmo tempo, essas frentes são também lócus potenciais da força revolucionária dos setores manufatureiros desta classe.