A recente manifestação do Presidente da República e de seu Ministro da Educação sobre a redução da oferta de cursos de humanas, nomeadamente de Filosofia e Ciências Sociais, por Instituições Federais de Ensino explicitam tanto uma preocupante falta de compreensão sobre o ensino universitário e sobre as humanidades, quanto um desrespeito intolerável à autonomia universitária e à história dessas instituições no Brasil e no mundo.
A alegada intenção de diminuir a oferta de cursos de Filosofia, Ciências Sociais e da área de Humanidades em geral fere o princípio da autonomia universitária, prevista em lei. Segundo a legislação em vigor, qualquer universidade, pública ou privada, tem autonomia para criar ou extinguir cursos. E as universidades públicas têm autonomia na gestão de seus recursos. De modo que qualquer alteração no quadro de cursos de uma instituição só pode ser feita pela própria universidade, respeitado seu regimento e suas várias instâncias internas. O MEC ou a Presidência da República não têm, e não devem ter, a prerrogativa de interferir no cotidiano das universidades. Ao afirmar que pretendem fazê-lo, o Presidente e seu Ministro desrespeitam a lei, essas instituições e toda a comunidade acadêmica brasileira. Na hipótese de se pretender interferir na autonomia universitária, isto teria que ser feito por meio de alteração na legislação, com uma arbitrariedade que nem a Ditadura Militar ousou propor, e resultaria no desmonte do ensino universitário e da pesquisa no Brasil.
A manifestação do Presidente da República e de seu Ministro evidencia também um grande equívoco na compreensão do lugar e do papel das humanidades no sistema universitário e na sociedade brasileira contemporânea. É evidente que toda sociedade, em seu conjunto, carece de profissionais dedicados às mais diversas áreas de produção, gestão e pesquisa. Há, é certo, áreas de trabalho mais vinculadas às necessidades mais imediatas de sobrevivência, mas todas elas são parte inerente e necessária de nossas vidas e da estruturação e aprimoramento da sociedade. E uma das bases das sociedades modernas é justamente a reflexão sobre si própria e a pesquisa sobre o mundo contemporâneo, a compreensão, crítica e consciência de si, de suas origens e heranças e dos desdobramentos de suas ações. É dessa reflexão que emana o processo de construção das sociedades, sobretudo no ocidente, sua identidade cultural e religiosa, sua ideia de direitos e de democracia, sua vigilância pela igualdade, pelo controle da violência e pelo respeito mútuo. A suposição de que se deve restringir o ensino e pesquisa de Filosofia e Humanidades no Brasil indica no sentido de excluí-lo do grupo de países onde este tipo de trabalho e reflexão se desenvolve, explicitando uma visão que diminui e desqualifica o país, seu povo e sua cultura, concebendo-o como polo passivo que apenas assimila valores e experiências refletidas por outros, a partir de outros contextos, sem sequer a capacidade de mediação crítica desses valores.
A reflexão filosófica é um instrumento de esclarecimento, que sustenta a maioridade de um povo e de um país. No caso da Filosofia no Brasil, esse trabalho é ainda tênue, mas tem amadurecido muito nos últimos anos. A presença da filosofia no Ensino Médio tem exigido da pesquisa em filosofia diálogo mais próximo com a realidade em que se situa. E, ao contrário do desmonte do sistema, a cobrança de que se desempenhe o papel de instrumento de reflexão e crítica é adequada e necessária.
Deve-se, entretanto, ressaltar que a dimensão do ensino universitário de filosofia é bastante reduzida e que seus custos são mínimos. Segundo dados do MEC, o número total de ingressantes em Ensino Superior no Brasil que se matriculam em cursos de Filosofia é equivalente a pouco mais de 4% do número de matriculados em cursos de direito. Os cursos de Humanidades recebem pouquíssimo investimento e operam sem a necessidade de equipamentos especiais ou laboratórios. Por essa razão, a qualificação da pesquisa e ensino na área efetiva-se em geral graças ao empenho pessoal dos pesquisadores e da comunidade universitária, longe de ser o resultado de boas políticas públicas.
Esses dados evidenciam sobretudo que as críticas ao ensino de Filosofia e de Humanidades têm base unicamente ideológica, o interesse em afirmar uma visão particular sobre o país, o desprezo pela elaboração de nosso debate sobre a realidade e a elitização da reflexão, que seria reservada a quem pode pagar por ela. Essa ideologia é, ela própria, um de nossos objetos de reflexão e crítica. É parte de nosso trabalho mostrar seu avesso de violência, elitização e controle.
A reflexão crítica só pode se estabelecer como um bem público! A filosofia e as humanidades têm um papel a desempenhar no cotidiano de nossa sociedade, de lembrar tudo o que nos constitui, de olhar para o tempo e de nos lembrar das várias dimensões em que se situam nossas vidas, de, em meio a um cotidiano em que se acumulam violências e ruínas, apontar para o solo a partir do qual se pode reencontrar o diálogo, o respeito à diversidade de opiniões e de formas de vida, a cultura, os direitos que são de todos e os valores que sustentam a vida.