A disciplina estreita relação entre conhecimentos acadêmicos e tradicionais por meio de encontros com mestres de diferentes matrizes
Por Juliana Cristina
O Campus Baixada Santista da Unifesp promove a primeira edição do Encontro de Saberes, com a disciplina Encontro de Saberes em Saúde. Proposta como atividade do Eixo Trabalho em Saúde do Instituto Saúde e Sociedade (ISS/Unifesp), com a participação de docentes dos demais eixos do instituto, e em parceria com a Cátedra Kaapora, órgão complementar da Pró-Reitoria de Extensão e Cultura (Proec), a disciplina acontece ao longo deste semestre sob condução de quatro mestres de diferentes matrizes, com intuito de trazer conhecimentos de populações indígenas e de matriz africana para dentro da universidade. O projeto nasceu da parceria entre o Instituto de Inclusão no Ensino Superior e na Pesquisa da Universidade de Brasília (INCTi-UnB) e os ministérios da Educação e da Cultura em 2010 e, atualmente, reúne cerca de 20 universidades públicas do Brasil incluindo, agora, a Unifesp.
"O Encontro de Saberes em Saúde vem reforçar um importante movimento de enriquecimento do saber acadêmico e da universidade. A possibilidade de estudantes e docentes dialogarem e aprenderem com mestres dos povos tradicionais é uma oportunidade de tornar a ciência mais complexa, e faz a diferença na construção da visão de mundo de todos os envolvidos. Exercita-se a multiplicidade de olhares, a intensificação da sensibilidade, se produz novas formas de pensar e de incluir as diferenças", aponta Fernando Kinker, diretor do ISS/Unifesp.
O membro pesquisador da Cátedra Kaapora e professor adjunto no Departamento de Ciências Sociais (EFLCH/Unifesp - Campus Guarulhos), Rodrigo Barbosa Ribeiro, complementa que “a primeira coisa a frisar é o orgulho e felicidade em poder começar um diálogo um pouco mais sistemático junto com populações historicamente excluídas do debate acadêmico. É importante reconhecermos que indígenas e populações de matriz africana são detentores de um saber e de práticas de conhecimento que merecem lugar de destaque no interior da universidade. Estamos diante de pessoas que têm muito a nos ensinar, e poder colocar isso de uma maneira bastante firme, trazendo eles nas condições de docentes de uma unidade curricular (ainda que não seja colocado assim formalmente, na prática são eles que estão ministrando cursos, começando o diálogo com a universidade), me deixa muito feliz, finalmente estamos dando esse passo! Por outro lado, precisamos reconhecer também que é um passo tardio, é importante dizer que ainda temos muito para avançar nesse campo”.
O programa da disciplina é conduzido por encontros com quatro mestres de diferentes matrizes: Lucely Moraes Pio, quilombola da Articulação Pacari de Plantas Medicinais do Cerrado; Carlos Papá, líder espiritual dos Guaranis de Silveira-Bertioga; Catarina Santos, tupi-guarani de São Vicente; e Makota Kidoialê, líder comunitária do quilombo urbano e candomblé Manzo Ngunzo Kaiango de Belo Horizonte, Minas Gerais, e mestra do Programa de Formação Transversal de Saberes Tradicionais da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). A ação propõe-se também a experimentar linguagens diferentes das usuais e matérias de expressão que vão além dos cânones formais da academia, como vídeos, podcasts, grafismos e artes visuais.
Montagem feita pelo professor Vinicius Terra com criações fotográficas realizadas pelos(as) alunos(as) da disciplina Encontro de Saberes em Saúde
Lucely Moraes Pio, quilombola da Articulação Pacari de Plantas Medicinais do Cerrado e Goiás (Comunidade Quilombola do Cedro, município de Mineiros - Goiás), comenta que a comunidade foi fundada em 1830 com a chegada de seu tataravó "Chico Moleque" e que, nela, é realizado um intenso trabalho acerca das plantas medicinais. Pio atua desde 2010 na Universidade de Brasília (UnB) e, posteriormente, também na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), e ensina sobre o uso das plantas medicinais para a saúde, a maneira correta de utilizá-las, dosagens, horários, além de falar sobre a energia das plantas e necessidade do cuidado com o meio ambiente. "A experiência dentro do projeto Encontro de Saberes é fantástica! Porque a gente conhece novas pessoas, a maneira de cada um, mesmo sendo virtual, o anseio em querer aprender, querer conhecer, melhorar a vida usando as plantas medicinais, então é muito bom estar em um projeto como esse. Eu gosto muito de trabalhar e ensinar as pessoas, além de cuidar da saúde, também o cuidado com o meio ambiente, com o cerrado e com a planta quando você cultiva ela. Sempre falo nas reuniões que cada um de nós tem o dever de deixar o meio ambiente melhor do que encontrou, temos que sempre cuidar desse meio onde vivemos pra que a gente tenha uma energia boa e plantas que fiquem pros nossos filhos, netos e bisnetos", ela comenta.
O estudante de Fisioterapia no Instituto de Saúde e Sociedade (ISS/Unifesp - Campus Baixada Santista) Luis Felipe Aguião faz parte da primeira turma da disciplina Encontros de Saberes em Saúde. Ele reflete que, "nos últimos anos, a universidade tem se questionado sobre melhores formas de aprender e ensinar. E essaa disciplina é um reflexo da importância de considerarmos dentro desse processo todas as formas de saber, isto é, aproximar o conhecimento dito tradicional, ou popular, com o conhecimento científico ou acadêmico. Com ela temos a oportunidade de conhecer, experimentar e vivenciar práticas que exploram diferentes aspectos de saúde (biológico, psicológico, social, ecológico e espiritual), ampliando nossos horizontes sobre o ato de cuidar e apresentando várias ferramentas para atuar nesse sentido. Por exemplo, o uso de plantas e raízes trazido pelas mestras Lucely e Ivanita Pio. Com elas encontramos riquíssimos saberes envolvendo formas de avaliação, diagnóstico e técnicas práticas de cuidado pessoal e coletivo utilizando aquilo que nasce da terra e exala vida; conhecemos relatos e materiais produzidos no nosso Cerrado e fomos estimulados, com tamanha generosidade, a contemplar esse modo de fazer saúde. Como resultado, a turma foi convidada a expressar os afetos e afetações desses encontros por meio de produções livres em arte audiovisual e/ou corporal utilizando recursos multimídia, performances ou materiais plásticos". Aguião considera-se privilegiado e grato pela oportunidade de participar do Encontro de Saberes em Saúde e o chama de "processo de ampliação dos diálogos" dentro da universidade. "Sabe quando você sente gratidão por encontrar o melhor lugar possível para estar? Pois é, essa é uma das sensações que emergem ao juntarmos pessoas de bom coração, conhecimentos verdadeiros e vivências singulares - ambiente que expressa esta proposta em dialogar com outros saberes. Sinto um prazer inenarrável em ter esse tipo de proposta dentro da universidade, pois é algo que eu não imaginava possível nem nos meus melhores sonhos e hoje está acontecendo", celebra.
Kinker ressalta que a experiência tem sido bastante rica e demonstrado que o projeto veio para ficar. "Esperamos que a proposta possa se disseminar por toda Unifesp e que possamos religar os saberes para a construção de um mundo melhor", finaliza.
Os(as) estudantes já realizaram algumas atividades propostas pelas mestras Ivanita e Lucely Pio, as quais podem ser melhor compreendidas nos links: Encontro de Saberes_Protocolo para o Vazio n.1 [Planta, Papel e Pele] e Encontro de Saberes Protocolo 2 [Imagens do Acaso, Figuras do Ocaso].